Dos anjos ao pecado

José Horta Manzano

Quem se lembra do trem-bala que, em 2010, nossa “presidenta” garantiu que estaria pronto para as Olimpíadas de 2016? Era pra ligar São Paulo ao Rio de Janeiro. As duas pontas de linha estão até hoje esperando o apito de um trem que não vem.

Detalhe: para confirmar nosso jeitinho “Me engana que eu gosto”, a ínclita presidenta foi perdoada pela engabelação; paulistas, cariocas e também os outros brasileiros votaram nela e a reelegeram.

Em matéria de trem, os Estados Unidos foram do tudo ao quase nada. Me explico. O grande progresso do país se deu nos cem anos que correram entre meados do séc. 19 e meados do séc. 20, ao mesmo tempo que o desenvolvimento das estradas de ferro.

Naquela época em que o trem supria praticamente todas as necessidades de transporte de cidadãos e de mercadoria, a costa Atlântica se ligou ao Pacífico, cidades brotaram, o país se instalou de verdade no território e se transformou na potência que é hoje.

De repente, a partir de meados do séc. 20, o transporte por via férrea foi minguando, dando lugar às estradas de rodagem. Gente e mercadoria passaram a ser levados de carro, de ônibus e de caminhão. E o trem quase desapareceu da paisagem.

Neste ano, estamos a exatamente quatro anos das próximas Olimpíadas, programadas para 2028 em Los Angeles. Mês passado, Joe Biden autorizou o início da construção da primeira linha de verdadeiro trem-bala do país. Deverá ligar Los Angeles a Las Vegas, numa viagem de 2h10, em trens que rodarão a até 320 km/h! O mesmo trajeto em automóvel leva no mínimo 4h30.

Em espanhol, como sabem meus espertos leitores, Los Angeles quer dizer Os Anjos. Em inglês, Las Vegas, a cidade dos jogos e do strip-tease, tem o apelido de “Sin City” (= a cidade do pecado). Fica explicada a brincadeira feita no título deste artigo: Dos anjos (Los Angeles) ao pecado (Las Vegas).

Fico muito curioso pra saber se o trem-bala americano ficará pronto em 4 anos, que é pouquíssimo tempo, ou se dará com os burros n’água como o brasileiro. Dá vontade de rodar o filme para a frente só pra ver no que deu.

Suicídio à catalã

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 outubro 2017.

Em 1939, disparado o último tiro da sangrenta guerra civil, a Espanha mergulhou numa ditadura longeva. Foram quase quarenta anos durante os quais nem Catalunha nem província espanhola alguma tinha direito de utilizar a língua regional. Pra se exprimir na língua materna, catalães, bascos, galegos e demais bilíngues tinham de fechar portas e janelas. E falar baixo, que o controle era pesado. Foram décadas de medo e de opressão, em que pai desconfiava de filho e irmão desconhecia irmão.

Promulgada três anos depois da morte do caudilho, a Constituição de 1978 devolveu aos cidadãos espanhóis as liberdades que lhes haviam sido sonegadas pela ditadura. Ampla autonomia foi concedida às províncias históricas. Dos catalães, o referendo convocado para validar a carta magna recebeu aprovação de 91%, taxa superior à média nacional. A língua local ganhou estatuto oficial em pé de igualdade com o castelhano. De lá pra cá, nas ruas, nas escolas, nas administrações e no governo provincial, o catalão é língua veicular. Nove em cada dez funcionários públicos respondem à administração local e não a Madrid. Os cidadãos contam com assembleia provincial eleita pelo sufrágio universal. Têm até um corpo de polícia regional. Não se pode, em sã consciência, classificar os catalães como povo oprimido.

No entanto, já faz anos que os dirigentes da província vêm soprando as brasas do sentimento nacionalista. Cada um dos sucessivos presidentes da região parece nutrir a vaidade de se tornar um Bolívar dos tempos modernos, um herói da independência. De tanto apregoarem que a secessão traria riqueza e felicidade para todos, conseguiram convencer parte dos cidadãos. Muitos acreditaram e o movimento foi crescendo até desembocar num plebiscito organizado à valentona e considerado ilegal por Madrid.

A partir daí, episódios desastrosos se sucederam. Por um lado, manifestações independentistas; por outro, passeatas unionistas. Intervenção enérgica da polícia nacional contra benevolência da polícia local. Declarações madrilenhas ancoradas na Constituição versus pronunciamentos barceloneses assentados numa (romântica) exaltação nacionalista. Se revoluções não estivessem fora de moda, todas as condições estariam reunidas para um levante armado. Por sorte, povo de barriga cheia não costuma pegar em armas.

Mas o dinheiro ‒ ou a perspectiva de empobrecer ‒ está forçando os catalães a encarar a realidade. Inquietas com a querela, muitas empresas se estão prevenindo contra más surpresas. Cerca de 1500 delas, por recear dupla tributação, já se transferiram para outros recantos da Espanha. De fato, o temor é de que tanto Madrid quanto a província rebelde cobrem impostos, o que criaria um enrosco fiscal inaceitável.

Tem mais. Para existir, um estado independente tem de ser reconhecido. A União Europeia já deixou claro que não reconhecerá o novo país. Dado que numerosas regiões europeias nutrem veleidades separatistas, a aceitação da independência catalã encorajaria movimentos semelhantes na França, na Itália, na Bélgica, no leste europeu. Nenhum Estado vê com bons olhos manobras que possam afetar sua integridade territorial. O novo país teria até dificuldade em se tornar membro da ONU, pois França, Rússia e China, que têm direito a veto, tenderiam a bloquear a adesão. Uma Catalunha independente periga ficar solta no mapa, como navio fantasma, um Estado não reconhecido.

Na altura em que escrevo, é impossível prever o desenrolar dos fatos num futuro próximo. Os dirigentes provinciais ultrapassaram a linha vermelha e se meteram num dramático dilema. A opinião pública catalã exige que cumpram o que alardearam e proclamem, por fim, a independência. Se o fizerem, no entanto, incorrerão em crime de alta traição, passível de ser punido pela justiça espanhola com 30 anos de cárcere. Foram longe demais, ultrapassaram a encruzilhada. Sero in periclis est consilium quærere ‒ quando se está no meio do perigo, é tarde demais para pedir conselho.

Por essas e outras, os independentistas catalães têm de botar água na fervura. Na (remota) hipótese de conseguirem o que pretendem, seriam rejeitados e boicotados por todos os vizinhos. Não teriam outra solução senão tornar-se semicolônia russa ou chinesa. Ou centro europeu de jogatina, uma espécie de Las Vegas mediterrânea. Seria verdadeiro suicídio. Mais vale deixar como está.

Nota
Artigo escrito antes do simulacro de proclamação de independência encenado pela assembleia provincial catalã em 27 de outubro.