Myrthes Suplicy Vieira (*)
Não é estória de pescador. Foram eventos reais e tão surpreendentemente reveladores das minhas limitações que eu os havia enterrado bem fundo no meu baú de memórias.
Eu era muito jovem na ocasião. Recém-formada, sem experiência no mundo profissional, carente de autoconfiança, tudo conspirava para fazer de mim uma pessoa tímida, defensiva e impressionável. Trabalhava no departamento médico de uma empresa paraestatal, respondendo sozinha pela coordenação do setor de seleção de pessoal.
Um de meus colegas de departamento era uma médica psiquiatra, já madura e experiente. Mulher muito alta e corpulenta, a simples presença dela era suficiente para impor respeito. Um sorriso sempre nos lábios e seu caloroso olhar acolhedor, no entanto, deixavam claro que ela era dona de espírito crítico e senso de humor refinado, que não precisava usar a autoridade como arma para intimidar ninguém. Foi ela quem me deu a primeira e mais preciosa lição a respeito do que significa inteligência emocional, um conceito que só seria formulado décadas mais tarde.
O chefe do departamento era um médico cardiologista um tanto limitado intelectualmente, visceralmente machista, que acreditava que todos os conflitos internos podiam ser resolvidos através de sua lábia e comportamento pretensamente sedutor. Eu me esforçava o quanto podia para driblar seus assédios, fechando a cara, me empertigando e tentando parecer séria.
A primeira vez em que a vi reduzir a pó sua fachada de segurança aconteceu durante uma reunião de departamento. Ele havia aberto o encontro com ar compenetrado, explicando que havia recebido ordens da diretoria no sentido de otimizar os recursos humanos do departamento. Para tanto, propunha ele, era necessário que nós duas elaborássemos um levantamento estatístico do número de casos atendidos por mês, separando-os por categoria diagnóstica. Ou seja, ele queria saber quantos candidatos “normais” e quantos portadores de distúrbios mentais ou psicológicos, como esquizofrênicos, psicopatas, neuróticos de todos os matizes, epiléticos, alcoólicos crônicos, etc. haviam passado por nossas mãos.

by Tania Messaoudi (1989-), desenhista francesa
Estupefata, eu buscava, sem sucesso, algum meio de comunicar a ele do modo mais educado possível a implausibilidade de seu pedido. Sentada a meu lado, a psiquiatra, ao contrário, parecia se divertir com a situação. Com serenidade, ela tomou a palavra e disse literalmente: “O senhor está parecendo um chefe de família que decide entrevistar a esposa e cada um dos filhos para saber quantas vezes eles defecam por semana para, dessa forma, poder planejar a compra de papel higiênico para o próximo mês”.
Afrontado e ridicularizado, ele reagiu com indisfarçável sarcasmo: “Da sua boca, minha senhora, só se pode esperar m… só sai porcaria mesmo”.
Gargalhando, ela prontamente retrucou: “Doutor, a merda está na sua cabeça, não na minha boca”.
Foi o que bastou. A reunião foi encerrada ali e ele nunca mais trouxe o assunto de volta à baila. Profundamente impressionada com essa aula magna de perspicácia, eu passei a buscar o aconselhamento dela para outras situações difíceis de trabalho. Poucos meses depois, a empresa foi chamada a cuidar do processo de seleção de juízes de primeira instância para uma vaga no Tribunal de Justiça Militar.
Era época de ditadura e eu me sentia extremamente atemorizada para fazer valer meu poder de aprovar ou rejeitar qualquer daquelas figuras de autoridade. Era uma tarefa hercúlea para quem sabia não dispor de suficiente isenção para avaliar o psiquismo de militares, nem equilíbrio emocional suficiente para enfrentar eventuais recursos e apelações.
Um dos candidatos era um tipo asqueroso, que não demonstrava qualquer pudor em lançar mão dos recursos mais vis para alcançar seus objetivos. Eu o havia submetido a testes psicológicos que apontavam sérios desvios comportamentais, mas hesitava em colocar no papel um diagnóstico claro de inadequação para a função.
Talvez por já antever uma reprovação, o tal indivíduo achou por bem subornar um funcionário administrativo para ter acesso ao arquivo com os exames e laudos, o que foi feito de madrugada. Inteirado de sua periclitante situação, na manhã seguinte ele procurou e pagou um psiquiatra particular para elaborar um laudo que negasse as suspeitas levantadas.
A prova final era uma entrevista com minha colega psiquiatra. Eu a procurei logo cedo e falei da minha angústia para expor fatos tão graves ao juiz-presidente do tribunal. Afinal, era minha palavra contra a dele e contra a de um outro profissional, mais qualificado que eu. Ela me acalmou, sugerindo que eu deixasse a cargo dela a tarefa de desmascarar o sujeito.
Ansioso, no dia marcado ele chegou para a entrevista com algumas horas de antecipação. Aboletou-se numa cadeira da sala de espera, fingindo descontração e autocontrole. A cada candidato que saía da sala após a entrevista, ele investigava que tipo de pergunta ela fazia, que tipo de testes eram feitos e como cada um havia respondido. Descobriu dessa maneira que teria de passar por um exame neurológico, que consistia em ficar em pé no meio da sala, descalço e de olhos fechados, fazendo um quatro com as pernas.
Quando chegou sua vez, ele entrou na sala com ar arrogante e foi logo desamarrando os sapatos. Levantou-se, pôs-se na posição, sem que nada lhe houvesse sido solicitado. Ela, em total silêncio, deixou que ele passasse vários minutos na posição. Incomodado com a falta de outras orientações, o sujeito finalmente abriu os olhos e percebeu que ela o encarava com um olhar de surpresa e divertida interrogação.
Candidamente, ela então perguntou: “O senhor costuma fazer isso com frequência?“. Constrangido, ele ainda tentou disfarçar: “Isso o quê?”
“Ficar nessa posição esquisita sempre que entra num consultório médico”, respondeu ela.
Dali para frente, como bem se pode imaginar, o indivíduo perdeu o controle da situação e caiu em seguidas contradições. Quando ele saiu, ela me chamou para mostrar seu laudo. Em poucas palavras, ela havia condensado com maestria as táticas empregadas pelo candidato e redigido seu parecer de tal forma que ele não pudesse vir a contestar uma só palavra.
Estava escrito algo como: “Indivíduo ansioso, impulsivo, que atropela o bom senso, tomando iniciativas esdrúxulas, sem que tenha havido demanda externa. Falta-lhe ponderação, argúcia e controle emocional para lidar com decisões delicadas, o que o inabilita para assumir as graves tarefas pretendidas por esse egrégio tribunal”.
Sua candidatura foi inapelavelmente rejeitada pelo tribunal.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.
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