Os santos de gelo

José Horta Manzano

Você sabia?

Um dos espantalhos dos agricultores da Europa centro-meridional é o gelo. Não falo do frio do inverno, quando a natureza adormecida está preparada para receber neve e temperaturas glaciais. Falo das geadas de primavera.

A partir de março, a primavera faz ressurgirem brotos e flores. Em abril, a floração das árvores chega ao máximo. Cerejeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, abricoteiros colorem a paisagem. No começo de maio, as flores murcham, caem e, pouco a pouco, cedem lugar aos frutos.

Nessa época, as frutinhas são ainda pequeninas e frágeis. Uma tempestade de granizo ou um frio extemporâneo pode dar cabo delas. A preocupação maior dos agricultores é a de uma geada que sobrevenha e arrase a plantação.

Desde a alta Idade Média, o povo acostumou-se a invocar a proteção dos chamados santos de gelo. São santos cuja existência é às vezes posta em dúvida mas que figuram assim mesmo na hagiografia cristã. Implora-se a eles que intercedam junto ao Altíssimo para evitar geada nesse período crítico. A partir de junho, já não faz falta invocar nenhuma entidade: o perigo já está esconjurado pela força do verão.

Conforme o país e a região, cultuam-se diferentes santos de gelo. Na maior parte da França e da Suíça, o povo pensa em São Mamerte, São Pancrácio e São Servásio, cujas festas caem dias 11, 12 e 13 de maio respectivamente. É que esta época marca o fim do perigo de geadas. Nada é garantido, mas é raríssimo que o frio volte depois da metade do mês de maio.

Regiões situadas mais ao norte preferem invocar santos cuja celebração ocorre alguns dias mais tarde. Ao contrário, territórios meridionais dirigem súplicas a santos comemorados logo no começo de maio. Cada um escolhe aqueles cuja festa coincida com a subida da temperatura.

Este ano, com invocação ou sem ela, a primavera anda meio preguiçosa. Ainda semana passada, tivemos neve alta. Os dias se alongam, é verdade. Flores já apareceram, já se foram, pássaros já procriaram e continuam cantando. Mas o sol ainda se faz raro. Chove muito. A verdade é que já não se fazem mais santos de gelo como antigamente. Ou será que o povo, imprudente, se descuidou e deixou de invocá-los?

Observação
O distinto leitor provavelmente jamais chegou a conhecer alguém chamado Mamerte. Nem Servásio. Dificilmente terá cruzado um Pancrácio. É interessante notar que a atribuição de prenome também segue moda. Em uma ou duas gerações, já dá pra notar a diferença. Nomes relativamente comuns na minha infância hoje são raridade. É o caso de Benta, Gertrudes, Porfírio, Filomeno. Mas a roda gira e costumes reaparecem. É bem capaz de Mamerte, Pancrácio e Servásio voltarem qualquer dia. Para quem for original e quiser se adiantar à moda, fica a sugestão.

Inexperiência hibernal

José Horta Manzano

Você sabia?

Nunca faça isso. É perigoso.

Nunca faça isso. É perigoso!

A Folha de São Paulo deste 30 de janeiro traz uma foto surpreendente. Trata-se de um automobilista que, ao sair de casa de manhã, elimina de seu para-brisa a fina camada de geada que se formou com o frio da noite.

Até aí, nada demais. É a chatice quotidiana de quem mora em lugar frio e tem de deixar o carro na rua. O que surpreende é a maneira pra lá de original que o cidadão encontrou para se livrar do gelo.

Raspadeira simples. Funciona a muque.

Raspadeira simples. Funciona a muque.

Entornar água quente num para-brisa gelado? É um contrassenso por duas razões. A primeira é que o choque térmico pode até causar dano ao vidro. A segunda, certeira, é que a água quente formará uma poça no chão bem no lugar onde estava o carro. Com o frio, vai-se criar uma placa de gelo mais escorregadia que casca de banana.

Se alguém tiver a má sorte de pisar ali mais tarde, periga levar um tombo daqueles de quebrar o colo do fêmur. Sem contar que o próprio automóvel, quando retornar à noite, pode patinar e ficar incontrolável.

Raspadeira ultrassofisticada

Raspadeira elétrica ultrassofisticada

Nunca vi ninguém jogar água quente em para-brisa gelado. Para remover a placa de gelo, tem de raspar. Há no comércio diversos aparelhinhos, do mais simples ao mais sofisticado, funcionando todos a partir do mesmo princípio. Cada motorista escolherá o que melhor lhe convier.

Caso você se encontre um dia nessa situação, a última coisa a fazer é jogar água quente. Raspe. Demora um pouco, mas é mais seguro.

Miscelânea 02

José Horta Manzano

Lá como cá
Sylvie Andrieux, de 51 anos, é deputada socialista francesa há 15 anos. Acaba de ser condenada a 3 anos de prisão. Terá de cumprir o primeiro ano em regime fechado. Durante os dois anos seguintes, estará em liberdade condicional.

Seu crime? Desvio de dinheiro público. O tribunal reconheceu que a deputada favorecia ongs fictícias e associações inexistentes. Ao final, o dinheiro servia para comprar votos. O montante total do «malfeito» foi de 740 mil euros.

No Brasil, desvio de dinheiro público para compra de votos é «malfeito» tão banalizado que já não comove ninguém. Caso a Justiça decidisse mandar todos os infratores para a prisão, melhor seria cercar o Congresso.

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O exílio fiscal
Gérard Depardieu, o ultraconhecido ator francês, é russo fresco, ou seja, tornou-se cidadão russo há poucos meses. Declarou que se sente muito orgulhoso da nova nacionalidade.Gérard Depardieu 2

Para respeitar a obrigação que têm todos os habitantes do território russo, declarou seu endereço às autoridades competentes. Reside à Rua da Democracia n° 1, em Saransk. Sem brincadeira.

O ator acaba de desembarcar em Grojny, na Tchetchênia, para começar a rodar Turquoise, seu novo filme.

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Azeite «do bom»
Mesas de restaurantes europeus costumam servir de morada permanente a uma cestinha meio ensebada onde se alojam o sal, a pimenta, o tempero em pó e a indefectível garrafinha de azeite. Até restaurantes «de bandeja» ― semelhantes àqueles que no Brasil são chamados «por quilo» ― exibem a cesta.Cesta condimentos 2

Como Big Brother, a União Europeia cuida da saúde de seus súditos. Os europeus podem dormir tranquilos, que seus interesses estão em boas mãos. Acaba de ser editado um novo regulamento visando à proteção da saúde dos habitantes.

A partir de 1° de janeiro de 2014, os europeus dirão adeus àquelas garrafinhas bojudas que, raramente lavadas, eram preenchidas de azeite à medida que se iam esvaziando. A regra entra em vigor simultaneamente em todos os países-membros.

A administração da UE não quer mais ouvir falar em garrafinhas gordurosas contendo azeite de origem duvidosa. Os novos modelos terão de ser fabricados de forma a impedir a recarga. Uma vez comprados e utilizados, terão obrigatoriamente de ser descartados.

Sei não. Aqui como lá, sacumé, fatta la legge, fatta la burla(*). Já deve ter gente tentando encontrar um meio de recarregar as garrafinhas.

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Les saints de glace
Um dos espantalhos dos agricultores da Europa centro-meridional é o gelo. Não falo do frio do inverno, quando a natureza adormecida está preparada para receber neve e temperaturas glaciais. Falo das geadas de primavera.

A partir de março, a primavera faz ressurgirem brotos e flores. Em abril, a floração das árvores chega ao máximo. Cerejeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, abricoteiros colorem a paisagem. No começo de maio, as flores murcham, caem e dão lugar aos frutos.

Nessa época, as frutinhas são ainda pequeninas e frágeis. Uma tempestade de granizo ou um frio extemporâneo pode dar cabo delas. A preocupação maior dos agricultores é que uma geada sobrevenha e arrase com a plantação.

Desde a alta Idade Média, o povo acostumou-se a invocar a proteção dos chamados saints de glace ― santos de gelo. Trata-se de santos cuja existência é às vezes posta em dúvida, mas que figuram assim mesmo na hagiografia cristã. Implora-se a eles que intercedam junto ao Altíssimo para que não venha nenhuma geada nesse período crítico. A partir de junho, já não faz falta invocar nenhuma entidade: o perigo já está esconjurado pela força do verão.Saints de glace

Conforme o país e a região, cultuam-se diferentes santos de gelo. Na maior parte da França e da Suíça, o povo pensa em São Mamert, São Pancrácio e São Servásio, cujas festas são em 11, 12 e 13 de maio, respectivamente.

Regiões situadas mais ao norte preferem invocar santos cuja celebração ocorre alguns dias mais tarde. Ao contrário, territórios meridionais dirigem suas súplicas a santos comemorados logo no começo de maio.

A razão é simples: no norte da Europa, o perigo das geadas vai até o fim de maio, enquanto nos países mediterrâneos já praticamente desaparece no fim de abril.

Este ano, com invocação ou sem elas, a primavera ainda não se fez sentir. Os dias se alongam, é verdade. Flores já apareceram, já se foram, pássaros já procriaram. Mas o sol ainda não apareceu. Chove diariamente. A previsão é de fraca queda de neve sexta-feira 24 de maio, coisa que não se vê há muitas décadas.

Já não se fazem mais santos de gelo como antigamente. Ou será que o povo se descuidou e deixou de invocá-los?

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(*) Nem bem foi feita a lei, já se inventa a maneira de burlá-la. Provérbio italiano.