Cara de pau

José Horta Manzano

Segundo informações da Agência Brasil, repercutidas pelo DCI e pelo Estadão, a Câmara Federal outorgou ao Lula a Medalha da Suprema Distinção, concedida a quem presta relevantes serviços públicos à sociedade brasileira (sic). O Correio Braziliense apimenta a notícia ao nos dar conta da agressão cometida por um segurança contra um repórter. Um efeito colateral certamente indesejável, mas real.Interligne 23

A motivação dessa homenagem que suas excelências prestaram ao preclaro mandachuva me faz lembrar o relato que ouvi, tempos atrás, de um conhecido. Ele vivia, não fazia muito tempo, com uma companheira chinesa. Ela já tinha chegado à Europa na idade adulta. Embora fosse inteligente e de boa educação, as minúcias do dia a dia ocidental não lhe eram totalmente familiares.

Meu amigo, profissional liberal, explicou um belo dia à namorada que tencionava dar um aumento de mérito a algumas de suas assistentes para o ano seguinte. A chinesa olhou sem entender e perguntou o significado da expressão. Ele explicou que era um aumento de salário que patrões costumam conceder a funcionários que se tenham mostrado esforçados.

Espanto visível no rosto da chinesa. «É mesmo? Que coisa estranha!». E continuou: «No meu país, todo empregado tem obrigação de se esforçar. Não é matéria sobre a qual se discuta. Falar em aumento de mérito, na China, não faz sentido. Quem não fizer por merecer perde o emprego».Interligne 23

O senhor Lula da Silva foi presidente do País durante 8 anos. De alguém que ocupou o cargo maior da República, espera-se que tenha prestado bons serviços públicos à sociedade ― faz parte de suas atribuições. Portanto, a outorga da medalha não faz sentido. Ou se concede essa distinção a todos os que tiverem ocupado o posto, ou não se concede a nenhum.

Homenagem ao Lula vista por Alberto Alpino, cartunista capixaba

Homenagem ao Lula
vista por Alberto Alpino, cartunista capixaba

Quando o presidente não presta, a lei permite aos cidadãos apeá-lo do cargo e mandá-lo de volta pra casa. Esse direito, naturalmente, terá de ser exercido através dos parlamentares, os representantes do povo. A destituição (ou impedimento) de um presidente é mais conhecida no Brasil por seu nome em tupiniquim genuíno: impeachment. Se, ao final do mandato, o presidente não tiver sido destituído, é sinal de que prestou bons serviços. É natural, foi eleito justamente para isso.

Em seu discurso aos parlamentares, Luiz Inácio ousou uma daquelas suas afirmações vazias que causam impacto no auditório: preconizou uma reforma política para o País. Ou ele está zombando da memória de todos nós ou algum tipo precoce de demência já anda consumindo os neurônios que lhe restam. O Lula foi presidente omnipotente durante oito longos anos durante os quais o Senado, a Câmara e a camarilha vinham comer na sua mão. Excetuando-se tempos ditatoriais (Estado Novo e ditadura militar), foi certamente o presidente que maior poder deteve. Se não promoveu uma reforma política enquanto estava no pedestal foi porque não quis. Soa muito hipócrita vir a público ― justamente agora que os ventos estão mudando de quadrante ― conclamar outros a fazerem aquilo que ele mesmo, por oportunismo ou pusilanimidade, não fez.

Não parou por aí o autoincensamento do medalhão. Recordou manifestações da década de 70, como se delas tivesse participado. Não é o que a História registrou. Seu nome não começa a surgir senão no entardecer da ditadura, quase nos anos 80. E não como locomotiva de alguma ideia política, mas como líder sindical e agitador de massas. Se um partido se formou em volta dele foi porque ideólogos e alguns oportunistas se aglomeraram em roda do homem que lhes pareceu representar um bom canal de vulgarização de suas elucubrações para as camadas populares. Sem a matéria prima e o apoio daqueles intelectuais de primeira hora, nosso messias ainda estaria discursando em porta de fábrica.

Para coroar, o figurão enfatizou a Assembleia Constituinte, da qual foi deputado de apagada atuação. A menção à Constituição de 1988 tem o intuito evidente de fazer que as novas gerações imaginem que ele tomou parte ativa em sua elaboração. Curiosamente, ele «esqueceu» de dizer que seu partido reprovou a Lei Maior e votou contra ela. Que não venha agora tentar colher louros que não plantou.

STF e mensalão

José Horta Manzano

Finalmente, a presidente desvelou o nome de seu preferido para ocupar a 11a. cadeira do Supremo Tribunal Federal. Cabe agora ao Congresso nacional referendar a concessão da toga ao ungido. Nossos representantes podem até, numa remotíssima hipótese, desautorizar a indicação presidencial e negar assento no STF ao postulante. Com o Congresso que temos, porém, essa conjectura está mais para delírio do que para realidade.

Até pouco tempo atrás, raros brasileiros acompanhavam as atividades do STF. Acredito até que a maioria nem sequer soubesse para que servia esse tribunal, nem quem eram seus componentes. O cidadão comum se interessava pela composição do colegiado do STF tanto quanto se importava com a diretoria do IBGE ou da Embrapa.

Mas… o mensalão perpassou pelo cenário nacional. E o palco para o qual se orientaram todos os holofotes foi justamente o Supremo. Como por acaso, o Brasil descobriu que o regime dispõe de um terceiro (ou seria apenas segundo?) poder, independente e autossuficiente. No ideário do brasileiro médio, o STF passou a exercer o papel que antes cabia à oposição. É a única instância que ousa enfrentar o governo. Aliás, muitos chegam a enxergar em seu atual presidente um sério concorrente a ocupar o Palácio do Planalto.Boi

No Brasil deste século XXI, um Executivo hipertrofiado mascara um Legislativo encolhido, afônico e submisso. O Planalto não se limita a orientar sua maioria no Congresso, mas frequentemente se susbtitui a ela. Sob forma de medidas provisórias, leis importantes são costuradas diretamente no seio do Executivo, passando ao largo de deputados, de senadores e de debate público. Os congressistas têm-se tornado meros referendadores de pacotes já decididos e embrulhados sabe-se lá por quais obscuras camarilhas. Pacotes que já vêm prontos, acabados e com laço de fita.

O 11° ministro do STF começou bem. Constitucionalista de formação, não parece apreciar a atual confusão de papeis. Fiel a Montesquieu, continua achando que decisões políticas devem ser tomadas pelos que foram eleitos para isso. Em resumo, cabe aos legisladores legislar, aos governantes governar, aos magistrados dirimir conflitos. É uma questão de bom-senso, mercadoria assaz escassa no País ultimamente.

Todos se perguntam como se comportará Luís Roberto Barroso com relação ao epílogo do julgamento do mensalão. Tanto pode declarar-se incompetente para interferir num processo que já vai adiantado quanto pode considerar-se apto a apanhar o bonde andando e participar das decisões que estão por vir. O tempo dirá.

Quanto ao mensalão, uma eventual confirmação das condenações não deverá alterar o estado atual das coisas. Muito pelo contrário. Após meses de processo público e ultramidiatizado, o Brasil pensante já formou sua convicção.

Conquanto alguns medalhões petistas tenham sido condenados por crimes vários, num acachapante revés para o principal partido situacionista, a popularidade da presidente não parece ter sofrido. É curioso, mas assim é.

Uma eventual confirmação da condenação, portanto, não deverá alterar o quadro. Já uma atenuação das penas pronunciadas ou ― pior ― a absolvição de condenados pode envenenar a situação e gerar uma onda de indignação, descrédito e revolta. Não seria bom para a atual maioria.

Paradoxalmente, os que se sentem contentes com a maneira pela qual o Brasil vem sendo dirigido nos últimos dez anos devem torcer para que a entronização do novo ministro no STF faça pender a balança no sentido da confirmação das penas.

Se assim acontecer, os condenados terão representado o papel de boi de piranha: sacrifica-se uma meia dúzia para permitir que o grosso da tropa de companheiros atinja incólume a outra margem do rio. Tanto a presidente quanto seu partido conservarão todas as chances de continuar no topo por mais alguns anos.

É melhor entregar os aneis para não perder os dedos.