No entiendo

José Horta Manzano

Você sabia?

Plantamos e ceifamos o trigo, mas nunca provamos do pão branco.
Cultivamos a videira, mas não bebemos o vinho.
Criamos os animais, mas não comemos a carne (…) (*)

Imigração 6Assim, em poucas e comoventes palavras, um imigrante italiano respondeu a um ministro de seu país, que ralhava contra conterrâneos que abandonavam a terra natal em busca de dias melhores no estrangeiro.

No século decorrido entre 1850 e 1950, a Itália viu partir 30 milhões de cidadãos em busca de dias melhores. A maior parte deles veio dar com os costados em terras americanas – Brasil, Argentina e EUA em especial. A Itália é, com folga, o país europeu que maior contingente de emigrantes despachou.

Ninguém jamais saberá o número exato dos que que lá saíram. Mais difícil ainda será afirmar, com precisão, o destino de cada um. Que dizer, então, da contagem dos descendentes, os «oriundi»? Na falta de dados exatos, restam as estimativas.

Os Missionários de São Carlos – os escalabrinianos – são uma congregação religiosa italiana que se dedica, entre outras missões, a assistir os italianos dispersos pelo planeta. São os mais bem aparelhados para fornecer estimativa sobre o número de originários da península.

Segundo a congregação, o Brasil abriga a mais numerosa comunidade de «oriundi», calculada em mais de 27 milhões de pessoas. Em seguida, vêm a Argentina (20 milhões) e os EUA (17 milhões). Os demais países seguem bem atrás – o quarto colocado, a França, não abriga mais que 4 milhões de descendentes.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Estatística não é o ponto forte do Brasil. Assim mesmo, costuma-se dizer que, nos anos 1920, metade dos habitantes da cidade de São Paulo era estrangeira. Desse contingente, metade eram italianos. Se não for verdade, não estamos longe.

Uma curiosidade: a população de nossa hermana República Argentina é constituída de 47% de «oriundi», um de cada dois habitantes do território. Sem sombra de dúvida, é o mais italiano dos países. Além da Itália, naturalmente.

Imigração 7Ainda hoje, sobrevivem por volta de duzentos periódicos editados em língua italiana fora da Itália. Nestes tempos de internet, praticamente todos abandonaram a edição em papel para dedicar-se unicamente à versão digital. A maioria espaçou a tiragem: de diária, passou a semanal; de semanal, passou a mensal. E assim por diante.

Na Venezuela, que conta com um milhão de descendentes, algumas publicações resistem. Entre elas, La Voce (= A Voz), diário fundado em 1950, hoje disponível unicamente online. Resiste em todos os sentidos.

Corajoso, o quotidiano dá notícia da incrível erosão da popularidade de dona Dilma. Talvez, por ser dirigido a público específico, seja menos visado pela truculência dos mandatários. Ou, mais provável, os censores – ignorantes por natureza – não estão em condições de entender nenhuma língua estrangeira. Melhor assim.

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(*) Citação afixada no Museu da Imigração, em São Paulo. O museu nasceu em 1887 como Hospedaria de Imigrantes. Para ali eram encaminhados os recém-chegados, que desembarcavam em Santos sem lenço e sem dinheiro, mas cheios de esperança e prontos pra arregaçar as mangas.

Nacionalidade

José Horta Manzano

Você sabia?

Os primeiros europeus começaram a se estabelecer nas Américas por volta de 500 anos atrás. Nos primeiros tempos, brotaram apenas núcleos de povoamento, um aqui, outro ali, mais ou menos estáveis, sujeitos a desaparecer subitamente. Bastava uma epidemia, um ataque de indígenas, uma invasão de piratas ou de corsários para apagar a colônia do mapa.

Naqueles tempos recuados, vigorava o sábio e ancestral costume segundo o qual filho de peixe peixinho é. As colônias fundadas no continente eram mera extensão dos povos europeus que as tinham criado. Assim, um cidadão da Nova Inglaterra era tão britânico quanto um legítimo londrino. Um português nascido na Bahia, ainda que de terceira ou quarta geração, continuava sendo tão lusitano quanto se tivesse visto a luz em Viana do Castelo ou em Freixo de Espada à Cinta.Passeport français

As colônias britânicas foram as primeiras a se proclamarem independentes da metrópole europeia. É bem verdade que a França, por razões de rivalidade com a Inglaterra, deu aos colonos uma mãozinha mais que bem-vinda. Mas essa já é uma outra história.

Os ingleses não apreciaram nem um pouco o fato de perder a importante fonte de ganho. Espernearam durante algum tempo, mas acabaram se dobrando à realidade. A separação era sem volta.

Algumas décadas mais tarde, tanto a América portuguesa quanto a espanhola espertaram e se dispuseram a seguir o exemplo dos colonos britânicos. O povoamento ibérico era, no entanto, geograficamente extenso, esparso. E as comunicações entre os diversos núcleos era precária, quase inexistente. Esse fator inviabilizava uma ação concertada. As regiões colonizadas foram-se despedindo da metrópole, cada uma por sua conta. Pelos anos 1825, o continente já contava uma vintena de novos países soberanos.

Junto com a independência, apareceu a questão da nacionalidade. Se fosse mantida a tradicional regra da lei do sangue, a jus sanguinis, as novas nações estariam fadadas a ser povoadas por estrangeiros até o fim dos tempos. Com efeito, pela lei do sangue, filho de inglês é inglês, filho de espanhol é espanhol, e assim por diante. Somente a naturalização, ou seja, o abandono da nacionalidade herdada e a aquisição de uma nova poderia resolver o problema.

Mas os tempos eram outros. Poucos eram alfabetizados. Não se podia exigir que cada vivente enfrentasse os trâmites burocráticos inerentes a um procedimento de naturalização. Os habitantes da Nova Inglaterra encontraram solução bem mais simples para contornar o problema da naturalização maciça: instauraram a lei do solo, a jus soli. Pela nova norma, bastava nascer no território para adquirir automaticamente a nacionalidade do país. Para problemas iguais, soluções iguais. Todos os novos países americanos adotaram o mesmo princípio.

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Tão acostumados estamos com esse sistema, que não nos damos conta de que é criação relativamente recente. E tem mais: a instituição da lei do solo é praticamente restrita aos países americanos. Fora do continente, poucas são as nações que seguem essa doutrina. Por outro lado, todos os países do mundo mantêm, naturalmente, a lei do sangue para seus cidadãos.

Exemplificando, podemos dizer que, se um casal brasileiro tiver um filho na Alemanha, a criança não será alemã, dado que a legislação daquele país não conhece a lei do solo. O pequerrucho será necessariamente brasileiro. Brasileiro nato, ou seja, brasileiro desde o nascimento. Se assim não fosse, o infeliz não teria nacionalidade, seria apátrida.

Num exemplo inverso, o filho de um casal alemão nascido no Brasil terá, desde o primeiro choro, dupla nacionalidade: a alemã, pela lei do sangue; e a brasileira, pela lei do solo.

Portanto, todos os filhos de brasileiros nascidos no exterior são brasileiros natos. Se o parto ocorrer num dos (raros) países que reconhecem também a lei do solo ― os países americanos, em princípio ― a criança terá nacionalidade dupla, a brasileira e a do país de nascimento.

A jus sanguinis (lei do sangue) é universal. Afinal, gato que nasce no forno não é biscoito. A jus soli (lei do solo) é a exceção instituída para resolver a questão da cidadania nas antigas colônias do continente americano.

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Foi anunciado que uma estrela da tevê brasileira, Xuxa Meneghel, recebeu seu passaporte italiano. A Folha de São Paulo afirmou que ela «se tornou» cidadã italiana. O site Terra foi ainda mais enfático. Falou em «conquista» da cidadania peninsular. Ambos estão mal informados.

Xuxa, como todos os «oriundi», já nasceu com duas nacionalidades. Podia até nem saber disso quando era mais jovem ― provavelmente não sabia mesmo ― mas o fato de uma norma de direito ser desconhecida não anula sua validade.

O que a estrela fez foi apenas requerer seu documento de identidade italiana, papel ao qual sempre teve direito, ainda que não o possuísse antes.

Fato semelhante ocorreu com uma antiga primeira-dama do País alguns anos atrás. Muitos se escandalizaram porque aquela senhora «requereu» sua nacionalidade estrangeira. Nada mais falso. A nacionalidade ela sempre teve. O que pegou muito mal foi ela ter aceito, simploriamente, que lhe entregassem o passaporte enquanto o marido presidia o País. Podia ter esperado até que ele terminasse o mandato.

Enfim, bons modos não se compram, não se vendem, não se alugam, não se emprestam. Quem tem, tem. Quem não tem está condenado a passar a vida dando vexame.