José Horta Manzano
Mais de uma vez falamos no assunto, mas não custa repetir. Tem gente que faltou à aula. Não tem importância, que não vão perder o ano. Basta enfrentar o exame de segunda época. (Será que ainda existe exame de segunda época?)
Que é naturalização? Olhe, se você não tiver a resposta na ponta da língua, não se perturbe: nem o Dicionário Houaiss sabe o que é. Um espanto. Segundo o ‘pai dos burros’ mais famoso do Brasil, naturalização é “o ato pelo qual um indivíduo se torna legalmente cidadão de um país em que não nasceu, perdendo sua nacionalidade de origem”.
A definição comporta dois erros.
São muito poucos os países que concedem automaticamente a nacionalidade a quem nasce lá. Não basta nascer na Alemanha para ser alemão; nem na Espanha, nem na Rússia, nem no Japão. Quem nasce na Eslovênia tampouco é esloveno. O mesmo vale para a Grécia, a Argélia, Israel e a imensa maioria dos países.
As exceções são, principalmente, os países do continente americano, que concedem a cidadania automaticamente a todos os que nascerem no território. É o que se chama lei do solo, conhecida em juridiquês como jus soli. A definição do Houaiss toma por favas contadas que a lei do solo vigora por toda parte, ou seja, que basta nascer num país para adquirir a nacionalidade local. Enganam-se.
Muitos países aceitam a dupla cidadania. Italianos e suíços, por exemplo, podem adquirir outra cidadania sem risco de perderem a nacionalidade originária. No Brasil, como de costume, a lei não é clara, dando margem a interpretação. Tem-se firmado jurisprudência em favor do entendimento que a aquisição de uma segunda nacionalidade não acarreta automaticamente a perda da cidadania brasileira. Portanto, o Houaiss erra de novo ao afirmar que o naturalizado perde sua nacionalidade de origem. Se a afirmação vale para alguns países, está longe de valer para todos.
Vamos simplificar a definição? Naturalização é a aquisição de nacionalidade diferente da originária. Não precisa nem acrescentar “legalmente”; nenhum país admite naturalização por meios ilegais. Só faltava.
Os dois futebolistas da foto – Jorginho Frello e Emerson Palmieri – não são “brasileiros naturalizados italianos”, como afirma o jornal. Desde que nosso país se tornou campeão mundial em exportação de futebolistas, já deviam ter parado de afirmar esse tipo de bobagem.
A Itália, como todos os países do planeta, reconhece a lei do sangue, a jus sanguinis. É a lei do “filho de peixe, peixinho é”. Historicamente, vem do tempo em que cada ser humano pertencia a uma tribo, pouco importando o lugar de nascimento. Esse entendimento é o mais difundido até nossos dias.

Em azul forte, os países que aplicam “jus soli” de modo incondicional. Todos os nascidos no território têm direito automático à nacionalidade.
Filho de islandês é islandês; filho de brasileiro é brasileiro; filho de chinês é chinês – pouco importando o lugar em que esses peixinhos tenham nascido. Em viagem à Mongólia, um casal de brasileiros tem um filho. Ele não terá a nacionalidade mongólica. Será brasileiro.
Os antepassados dos jogadores da foto deixaram a Itália uns 100 anos atrás e se estabeleceram no Brasil. Os filhos, nascidos em nossa terra, receberam a cidadania brasileira automaticamente. Em paralelo, desde que os pais não tenham se naturalizado brasileiros, os filhos herdaram a cidadania italiana dos pais. Essa nacionalidade foi transmitida de geração em geração. Os dois futebolistas, portanto, já nasceram com duas nacionalidades: a italiana pela lei do sangue e a brasileira pela lei do solo.
Na infância, não tinham documentos italianos. Pouco importa. A inexistência de um documento a provar a cidadania italiana não invalida o direito a ela. A prova disso é que deve haver em nossos grotões muito brasileiro sem documento; apesar disso, são tão brasileiros quanto os que têm identidade no bolso e guardam na gaveta CPF, carteira de trabalho e passaporte.
Numa certa altura, Jorginho e Emerson deram os passos necessários para obter documentos de identidade europeus. Mas não foi uma naturalização. Simplesmente receberam documentos que atestam a nacionalidade que sempre tiveram.
Ainda tenho esperança que os jornalistas, um dia, entendam. Não parece tão difícil, parece? Se não entenderem, não há problema: explico de novo. Sou paciente.