Segredos mal guardados

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 março 2017

Guardar segredo está cada dia mais difícil. Segredo bom, então, daqueles que causam impacto e comoção, mais difícil ainda. No fundo, segredo de verdade é aquele que não se conta a ninguém. No exato instante em que for revelado a uma pessoa, a umazinha só, deixa de ser secreto. E já periga desandar.

Deslize pequeno, segredinho de alcova e pecadilho de infância a gente confessa ao padre. Um padre-nosso, três ave-marias e pronto. Tem-se a impressão de ter escapado do inferno. De pequenos, visitávamos o confessionário a cada vez que a mãe mandava. ‘Menti para minha mãe’, ‘faltei a uma aula’, ‘xinguei o filho do vizinho’, essas eram as bobagens que a gente contava. Hoje, já crescidinhos, nos damos conta de que certos «malfeitos» da atualidade deixariam atônitos todos os padres de nossa infância. Talvez nem concedessem absolvição.

Em 1949, quando George Orwell, dono de fértil imaginação, descreveu um mundo controlado por Big Brother, todos tomaram o romance pelo que parecia ser: ficção. De tão irreal, a fantasia parecia delírio puro. No entanto, quem diria, o britânico tinha razão. 1984 passou, mas a hora acabou chegando. A realidade atual ultrapassa o que a imaginação desbordante do escriba tinha vislumbrado.

Faz pouco tempo, a maior montadora do planeta provou do amargor dos novos tempos. E por quase nada. Seu único deslize foi ter instalado um mecanismo de fraude em dez milhões de veículos, uma mixaria. Concebido para falsear medições oficiais de emissão de gases, o dispositivo era até engenhoso. De repente, patapum! Bastou uma linguazinha se destravar e dizer o que não devia. Estava criado um escândalo mundial e bilionário. Não dá mais pra guardar segredo.

E aquela história bizarra dos Panama Papers, lembra? Um escritório panamenho especializou-se em registrar firmas fantasmas sediadas em paraísos fiscais. Muita gente acreditou que, escondendo dinheiro de origem duvidosa detrás de uma firma, estaria a salvo de toda indiscrição. Puro engano. Bastou pequena inconfidência de um funcionário qualquer ‒ não ficou claro se foi a secretária, o porteiro ou a mulher do café ‒ pra pôr tudo a perder. A revelação provocou até a derrubada do primeiro-ministro da Islândia, um dos clientes do escritório. Não dá mais pra guardar segredo.

E a Coreia do Sul, hein! Aconteceu com aquela senhora de discreta aparência e grande popularidade, apelidada justamente de «rainha das eleições». Guindada ao trono de presidente da República, acabou se envolvendo em obscuras transações de corrupção. Ah, esse poder, quando sobe à cabeça… Por alguma indiscrição, a ponta do tapete foi levantada. E o que apareceu debaixo não era bonito. Apesar da majestade, a «rainha» foi defenestrada. Pediu desculpas ao povo, mas já era tarde. Não dá mais pra guardar segredo.

Teve também o caso de Monsieur Fillon. Faz poucas semanas, o político francês era antevisto como vencedor das eleições presidenciais do mês que vem. Nas pesquisas, ganhava com folga. No entanto, guardava um esqueleto no armário, uma história meio nebulosa em que esposa e filhos teriam sido registrados como assessores e recebido o devido ordenado sem jamais ter exercido função nenhuma. Como era coisa antiga, do tempo em que era senador, o candidato não imaginou que pudesse voltar à tona. Pois voltou. Bastou a inconfidência sabe-se lá de quem e aconteceu o desastre: a vitória nas eleições parece agora inatingível. Não dá mais pra guardar segredo.

Em nossa terra não é diferente. A Lava a Jato, essa imensa sanfona cujos desdobramentos trazem surpresas a cada dia, é a comprovação de que guardar segredo se tornou missão impossível. Uma delação puxa outra, que puxa outra, que puxa… A gente fica sabendo de cada coisa! E não é só. Como se não bastasse a podridão simbólica da política, o mundo agora sabe da podridão real da carne. A carne brasileira ‒ que hoje convém chamar de «proteína animal» ‒ é florão da exportação nacional. Sua qualidade é mundialmente reconhecida. Pois até ela foi vítima da tagarelice dos que disseram o que não deviam. Que papelão! Literalmente.

Quer saber de uma coisa, distinto leitor? Quando um segredo lhe estiver queimando a língua, mais vale procurar o confessionário. Ou melhor ainda: não conte a ninguém. Evitar acidentes é dever de todos.

No photos, please!

José Horta Manzano

Notícia esquisita essa que saiu dois dias atrás. Em 2009, foi feita uma reforma no interior do Palácio do Planalto. Governava o Lula. As obras exigiram a retirada das câmeras de segurança internas, aquelas que registram o vaivém de funcionários e visitantes.

Terminada a reforma, imagina-se que os corredores tenham recobrado o aspecto que tinham quando foram inaugurados. Tudo voltou ao normal com uma exceção: as câmeras de segurança interna não foram reinstaladas. E assim ficou. O tempo foi passando e ninguém ligou pra isso.

big-brother-5O último ano do governo do Lula e o longo período da doutora transcorreram sem gravação de imagem. Não se pode atestar que o empresário A tenha passado por ali nem que o político B tenha visitado o gabinete presidencial. Nem mesmo o chefe do serviço de limpeza pôde checar se o faxineiro C realmente passou o aspirador ou se carregou balde e vassoura.

Se o distinto leitor fizer uma caminhadinha de meia hora por qualquer cidade média brasileira, será filmado umas cinquenta vezes. Se não for mais. Pois o Palácio do Planalto, coração do governo brasileiro, não dispõe de registro de imagens há oito anos. Dá pra acreditar? Tem razão, parece piada de primeiro de abril.

O governo do doutor Temer demorou alguns meses para se dar conta da falta, mas pelo menos tem o mérito de haver denunciado a situação. A bizarrice veio a público em declaração do Gabinete de Segurança Institucional. Demoraram, mas acordaram.

by Olga Subirós, arquiteta espanhola

by Olga Subirós, arquiteta espanhola

O honesto cidadão, querendo ou não, sabendo ou não, é filmado, vigiado, controlado, seguido. Já os do andar de cima têm passe livre. Transitam incógnitos. Nem a fértil imaginação do conceptor do Big Brother teria pensado num contraste tão flagrante entre os que podem tudo e os demais.

Vêm agora as perguntas. Por que diabos foi evitado todo registro de idas e vindas nos corredores palacianos? Quem deu a ordem para a retirada definitiva das câmeras? Com que intuito? A resposta está na ponta da língua. Ou não?

Interligne 18cPensando bem
Se não serviu nem para garantir a segurança do próprio palácio presidencial estes últimos oito anos, para que mesmo serviu o Gabinete de Segurança Institucional? É difícil acreditar que não tenha passado de cabide de emprego. Se bem que, nos tempos que correm, nada mais surpreende.

Tudo sobre todos

José Horta Manzano

Você sabia?

Big Brother 4Os caminhos da internet são insondáveis. Que não se ofenda algum distinto leitor perito nas artes informáticas. O que quero dizer é que o uso da eletrônica na comunicação e na estocagem de dados começou faz pouco tempo, portanto somos todos principiantes. Internet e mídia eletrônica estão no estágio em que estava a aviação no tempo de Santos Dumont.

Há muito por vir, coisas que nem a imaginação mais delirante pressente. Sem os modernos meios de comunicação, por exemplo, não teria havido petrolão nem Lava a Jato. Vai longe o tempo em que Jânio Quadros se comunicava com ministros por meio de bilhetinhos manuscritos.

Enquanto isso, vamos tateando. A cada dia, surpreendentes e assustadoras, novidades aparecem. A última delas surgiu semana passada. Trata-se de um site assaz misterioso: é registrado na Suécia, utiliza servidores franceses, tem sede social nas Ilhas Seychelles, vem escrito em português brasileiro – a espalhação necessária para fugir a todo rastreamento. Confirma que ninguém mais escapa do Big Brother.

Big Brother 3Qualquer visitante pode inserir o nome ou o número de CPF do cidadão que procura. Numa fração de segundo, será exibido sexo, data de nascimento, endereço, nome de parentes e de pessoas vivendo sob o mesmo teto. Até o nome de vizinhos aparece!

Todo trabalho merece remuneração. Ao visitar o site, o simples curioso não obtém grande coisa como informação. Depois de pagar em torno de um dólar, aí sim, terá direito a detalhes. Informação sobre empresas está também disponível.

Big Brother 1Testei – sem pagar – a eficácia do sistema. É rápido e impressionante. Sem pôr a mão no bolso, qualquer consulente recebe o CEP e um mapinha google da região onde vive o cidadão procurado. É, em geral, suficiente para saber se realmente bate com a pessoa que temos em mente. A partir daí, para ter acesso a todos os detalhes, só pagando.

Como todo sistema, esse também tem seus limites. Busquei pessoas falecidas há dez, vinte ou trinta anos: pois continuam aparecendo. De evidência, o programa consulta sites públicos, foros, diários oficiais, redes sociais, mas… negligencia verificar livros de cemitérios ou registros de óbitos. Ninguém é perfeito.

À atenção do leitor curioso, dou o endereço: tudosobretodos.se.

Uma vida vigiada

José Horta Manzano

Já disse e repito: estamos cada dia mais vigiados. Big Brother está aí, chegou pra ficar. Meus argutos leitores já se deram conta.

by Olga Subirós, arquiteta espanhola

by Olga Subirós, arquiteta espanhola

O espanhol El País publicou artigo sobre o assunto, de autoria da doutora Gemma Galdon Clavell, da Universidade de Barcelona. Ela assinala uma série de objetos e procedimentos de uso diário cujos dados podem escancarar a vida e a intimidade de cada um de nós.

A lista não é exaustiva.

Interligne vertical 16 3Kf1. Videovigilância. É muito prático poder assistir, de longe, ao que está acontecendo dentro de casa. O chato é que um grampo pode ser instalado por terceiros que poderão, assim, assistir às mesmas cenas.

2. Relógios de luz, termostatos e medidores de água, tão comuns e necessários, fornecem informação sobre hábitos do utilizador.

3. Televisores inteligentes e consoles de videogames dispõem de câmeras e microfones. O usuário pode estar sendo espionado.

4. Cartões de crédito são preciosa fonte de dados. Fornecem informações disputadíssimas sobre hábitos de compra.

5. Controles biométricos de entrada e saída armazenam informação sobre passantes.

6. Monitoramento remoto no trabalho pode, através de captura de tela, medir a produtividade do trabalhador.

7. Bases de dados pessoais contêm dados fiscais e de saúde dos clientes. Essa informação pode cair em mãos alheias.

8. Sensores de contagem de pessoas monitoram o fluxo de compradores e o tempo de permanência.

9. Cartões de fidelidade oferecem vantagens e descontos, mas também recompõem o perfil de cada comprador.

10. Ibeacons enviam ofertas para celulares próximos.

11. Wifi gratuito pode bisbilhotar o perfil Facebook de cada utilizador.

12. Cartões recarregáveis de transporte público guardam dados sobre os deslocamentos de cada passageiro.

13. Redes de automóveis e de bicicletas de aluguel registram trajetos dos clientes.

14. Placas de carros podem ser facilmente lidas por sistemas instalados na via pública.

15. Telefonia móvel permite geolocalizar.

16. Câmeras térmicas e sensores sonoros medem o fluxo de pedestres e níveis de ruído.

17. Mobiliário urbano detecta a presença de pedestres. Câmeras podem gravar, com nitidez, a imagem de quem passar.

18. Sistemas de estacionamento com cartão personalizado guardam dados sobre o utilizador.

Como se tudo isso não bastasse, quem nos garante que todas as nossas comunicações telefônicas não estão sendo armazenadas em gigantescas bases de dados? E nossas mensagens eletrônicas?

Big Brother 1É verdade que não há orelhas suficientes para escutar tudo. No entanto, em caso de necessidade, não deve ser difícil encontrar o que tiver de ser encontrado. Quem procura acha.

O que parecia, vinte ou trinta anos atrás, delirante ficção científica é hoje realidade. Estamos cercados – não dá pra escapar.

Politicamente incorreto

José Horta Manzano

Olho 1A gente imaginava que Big Brother – o Grande Irmão Controlador – fosse chegar de repente, na sequência de uma revolução. Os tempos atuais mostram que não é bem assim. Mudanças não caem do céu da noite pro dia. As novas modas vêm sorrateiras, de mansinho, e vão-se insinuando sem que ninguém se dê conta. Quando se abre o olho, o mundo já mudou. Sem avisar.

Houve tempo em que a gente podia falar como quisesse, usar as palavras e expressões que bem entendesse, com uma única exceção: palavrão. Nome feio não podia ser pronunciado na presença de gente de respeito. Fora isso, cada um podia falar como lhe agradasse.

Hoje já não é mais assim, como bem sabem meus distintos leitores. Certas palavras e certas expressões entraram para o índex, tornaram-se tabuísmo. A lista engrossa cada dia mais. E ai de quem tropeçar! Não se arrisca a levar um pito – periga ser processado ou, pior ainda, pode acabar preso.

Remexendo na memória, encontrei meia dúzia de músicas que, embora tenham feito grande sucesso em seu tempo, não poderiam mais ser lançadas hoje. Seus autores teriam sérios problemas.

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Anjos do Inferno

Anjos do Inferno

Boneca de pano (1950)
de Assis Valente (1907-1958)
Gravada por: Quatro ases e um coringa
Gravada por: Demônios da garoa

Trecho politicamente incorreto:
Um dia alguém a chamou de boneca
E ela, sendo mulher, acreditou

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Lamartine Babo

Lamartine Babo

O teu cabelo não nega (1931)
de Lamartine Babo (1904-1963) e Irmãos Raul e João Valença
Gravada por: Castro Barbosa

Trecho politicamente incorreto:
O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata, eu quero teu amor

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David Nasser

David Nasser

Nega do cabelo duro (1941)
de David Nasser & Rubens Soares
Gravada por: Anjos do Inferno

Trecho politicamente incorreto:
Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia
(…)
‘Mise-en-plis’ a ferro e fogo
Não desmancha nem na areia

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Dircinha Batista

Dircinha Batista

Mulher que é mulher (1953)
de Klécius Caldas & Armando Cavalcanti
Gravada por: Dircinha Batista

Trecho politicamente incorreto:
A mulher que é mulher
Não deixa o lar à toa
A mulher que é mulher
Se o homem errar, perdoa.

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Jorge Goulart

Jorge Goulart

Cabeleira do Zezé (1964)
de João Roberto Kelly & Roberto Faissal
Gravada por: Jorge Goulart (1926-2012)

Trecho politicamente incorreto:
Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é? Será que ele é?
(…)
Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é
Corta o cabelo dele!
Corta o cabelo dele!

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Linda Batista

Linda Batista

Nega maluca (1950)
de Evaldo Rui & Fernando Lobo
Gravada por: Linda Batista (1919-1988)

Trecho politicamente incorreto:
Tava jogando sinuca
Uma nega maluca me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
que o filho era meu
(…)
Até parece castigo
Ou então é influência da cor

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Direito ou obrigação?

José Horta Manzano

Urna 5Em meu artigo O voto e a roda, publicado no Correio Braziliense um ano atrás, dei a visão que tinha, àquela altura, sobre a questão de voto facultativo x voto obrigatório. Hoje volto ao assunto.

Na França, como na maior parte das democracias, o voto é um direito do cidadão. Como todo direito, seu exercício é facultativo: vota quem quer. Se assim não fosse, seria obrigação. Os dois conceitos são excludentes: se é direito, não é obrigação; se for obrigação, deixa de ser direito.

Acontece que a participação da população francesa decresce a cada escrutínio. Já está nas cercanias de 50%. Na prática, apenas a metade dos cidadãos exerce o direito de dar sua opinião na hora de escolher presidente, deputados, prefeitos. Muitos julgam negativo esse desinteresse popular.

Urna 2Para remediar, entrou em pauta, estes dias, amplo debate sobre a matéria. Alguns acham oportuno acabar com o direito de votar, e torná-lo obrigação. Outros consideram que imposição do voto obrigatório desvirtuaria o princípio da democracia, onde cada um é livre de se exprimir – ou não.

Na França, qualquer fato político costuma assumir proporções gigantescas. Por um sim, por um não, figurões comparecem ao rádio e à tevê para dar opinião. Jornalistas, filósofos, sociólogos, atores, psicólogos, analistas, escritores, toda a nata da sociedade pensante espreme as meninges. Artigos inflamados e libelos pululam.

Como é de praxe, personalidades mais alinhadas com a esquerda veem com bons olhos a imposição do voto obrigatório. Mais Estado, mais obrigações, maior controle, mão firme e Big Brother em ação são traços distintivos do pensamento de socialistas, comunistas, trotskistas & afins.

Já os centristas e os que se afinam com a direita rejeitam a ideia. Menos Estado, maior liberdade individual, menos controle, menos imposições são características de liberais e de sociodemocratas.

Voto de cabresto

Voto de cabresto

Cada grupo tem seus argumentos. Todos devem ser ouvidos, pesados, avaliados. Há pontos positivos em ambas as visões.

Urna 7O voto obrigatório tem a vantagem indiscutível de alcançar número maior de eleitores. Em princípio, o resultado reflete melhor a pluralidade nacional. No entanto, muitos dos eleitores votam sem ter percepção exata do alcance do ato que estão praticando. O resultado pode ser desastroso, como já provou, no Brasil, a eleição de palhaços, modistas, artistas, futebolistas e outras figuras que, embora ultraconhecidas, não estão aptas a fornecer o trabalho que delas se espera.

O voto facultativo elimina, em teoria, essa obra de “engraçadinhos” que, desinformados e desinteressados, se abalam até à secção eleitoral unicamente por origação. Mas o voto opcional também tem seu lado sombrio. Em países como o Brasil, onde persistem, no seio da população, tremendas diferenças de nível financeiro, basta oferecer transporte, sanduíche, boné e camiseta para mobilizar multidões – que seguirão, naturalmente, a orientação de voto que lhes tiver sido dada.

by Jacques Sardat (aka Cled'12), desenhista francês

by Jacques Sardat (aka Cled’12), desenhista francês

Atenção: isso vale para todos os candidatos – não só para os daquele partido em que, tenho certeza, o distinto leitor pensou. Afinal, não precisa assaltar nenhuma petroleira pra reunir dinheiro suficiente pra sanduíche e camiseta.

Isso dito, como é que ficamos? Há prós e contras nas duas visões.

No fundo, no fundo, talvez convenha aguardar tempos melhores. No dia em o nível civilizatório do povo brasileiro se tiver aperfeiçoado, na hora em que cada um tiver consciência plena das consequências de sua escolha, será chegado o momento de revogar a obrigatoriedade do voto. Até lá, ainda tem chão.

A caixinha mágica

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 7 mar 2015

Caixa 1Minha avó, genuíno produto do século 19, nasceu antes do rádio, do avião e do automóvel. Mal e mal chegou a conhecer a televisão. Costumava contar uma história fantástica que tinha ouvido quando criança. Falava de um rei de conto de fadas que possuía uma caixinha mágica. Aproximando o ouvido do estojinho, o monarca podia escutar tudo o que acontecia no reino, inclusive as conversas de todos os súditos. Um prodígio.

Radio 4«Era o rádio!» – explicava-nos a velhinha, extasiada de ter assistido à transmutação da caixa mágica em objeto real. Até o último suspiro, a velha senhora acreditou firme que, com a radiodifusão, a humanidade tinha atingido o apogeu em matéria de comunicação e de encurtamento de distância.

Estava enganada, como hoje sabemos. Ainda havia muito pela frente. Vieram os satélites artificiais e, com eles, a banalização da telefonia intercontinental. Aviões a jato converteram expedições dificultosas em escapadinhas de fim de semana. Os complicados «cérebros eletrônicos» de antanho evoluíram: onde antes exigiam local vasto e exclusivo, cabem hoje no bolso de qualquer mortal. Calculadora de supermercado tem poder superior ao dos gigantescos ancestrais.

Carro 3Veja só como era. Uma explosão, atribuída a enorme meteoro, sacudiu a Sibéria em 1908. A rebentação destruiu a floresta num raio de 20 quilômetros e danificou aldeias a léguas dali. De trem, a notícia levou alguns dias para chegar aos ouvidos do tsar, na capital do império. Precisou mais algumas semanas para o mundo ficar sabendo. Para arrematar, a primeira expedição de inspeção científica ao local só foi organizada vinte anos mais tarde. Era essa a velocidade com que notícias se alastravam.

O mundo mudou. O andamento se acelerou. A assombrosa rapidez com que zilhões de gigabaites se disseminam a cada segundo tem facilitado a vida de muitos – mas conturbado a existência de outros. Quem pouco ou nada tem a esconder aprecia o ritmo frenético de redes sociais, uotisaps & congêneres. Já pra quem prefere a discrição… todo cuidado é pouco. O ambiente está ficando perigoso.

Qualquer cidadão dotado de bom senso concorda que o Brasil atravessa etapa periclitante. Se a vertiginosa circulação da informação não é causa única, tem contribuído para agravar.

Apito 1Já não se pode mais ter confiança em nada nem em ninguém. Câmeras, grandes e pequenas, estão por toda parte. Você pode estar sendo filmado e gravado pelo próprio cidadão com quem está confabulando – um microaparato pode-se dissimular no nó da gravata ou até no botão do colarinho.

Um magistrado toma emprestado por alguns minutos um carrão apreendido, só pra sentir o gostinho de sentar-se ao volante de um bólido, e pronto: já foi filmado, gravado e denunciado. Um apuro!

Camera 1Um figurão, no inocente intuito de conhecer a cotação do dólar, chama um doleiro amigo, e pronto: já caiu na boca do povo. Uma impropriedade!

Um obscuro funcionário dum banco de Genebra, ao levar no bolso um trivial pendrive carregado com dados financeiros de seleta clientela, incendiou a banca e mandou para o espaço o secular segredo bancário suíço. Uma iconoclastia!

Nossa presidente já disse mais de uma vez que nunca antes neste país se haviam investigado tantos crimes. Tem razão. Primeiro, porque nunca se tinha visto cachoeira de malfeitos tão caudalosa. Segundo, porque a linha que antes apartava os bastidores do picadeiro está cada dia menos nítida. Francamente, já não se pode mais nem delinquir em paz.

Computador 8O que tem salvo figurões, medalhões e magnatas – por enquanto! – é o fato de o cenário andar muito concorrido. Os envolvidos são pletora, e o palco está lotado. Tudo o que é demais cansa. Chegado ao ponto de exaustão, o cidadão, vencido pela apatia, vai-se tornando blasé, indiferente.

Mas deixe estar. Mais dia, menos dia, esse deprimente espetáculo do petrolão, em cartaz já faz um ano, há de chegar ao fim. Alguns comparsas serão irremediavelmente condenados, nem que seja para exemplo. Já os capangas-mores – alguém duvida? – escaparão. Impedimento da presidente? Nem pensar. Não interessa a ninguém, e a emenda pode sair pior que o soneto.

Big Brother 1O petrolão terá sido marco divisório entre o velho Brasil e o novo. Deverá desestimular a corrupção, assim como a Segunda Guerra baniu conflitos globais.

Nepotismo, compadrio e corporativismo sempre existirão, é inelutável. Mas, convenhamos, candidatos à delinquência em escala industrial serão muito cuidadosos da próxima vez. Onde antes não havia risco, hoje há. Big Brother veio pra ficar.

Rapidinha 29

José Horta Manzano

Biométrico
A Venezuela adota sistema biométrico para espionar o que o povo compra no supermercado. Dada a carência crônica de itens básicos, o cidadão tem direito de comprar cada tipo de alimento somente uma vez por semana.

É a tecnologia moderna a serviço do atraso.

Rapidinha 21

José Horta Manzano

Abrindo o bico

Nicolás Maduro está amadurecendo, o que não deixa de ser boa notícia. Com a ingenuidade e o despreparo dos que não receberam formação suficiente para dirigir um país, vai caminhando trôpego, cambaleante.

A situação deve estar feia de verdade pros vizinhos bolivarianos. Numa estratégia simplória, o presidente bigodudo deixou-se fotografar ao lado de um ator americano. Deve imaginar que isso melhora sua imagem junto à opinião pública do Grande Irmão do Norte. A conferir.Bigode 1

Depois de expulsar oito funcionários consulares americanos, faz alguns dias, deve ter-se dado conta de que o maior prejudicado nessa história toda é ele mesmo. E seu povo junto.

Numa tentativa de passar pomada, jurou que é fã de tudo o que for americano. Desde que era criancinha! Contou que conhece os EUA por suas novelas e seus filmes. Confessou até apreciar Jimi Hendrix e Janis Joplin. Um presidente ligadão, como se vê.

Desta vez, vai: Maduro amadureceu! Governante de um país esfarrapado, deu-se subitamente conta de que não vale a pena armar briga com seu maior cliente. Antes tarde que nunca.

O aprendizado 2

A plataforma esqueceu de avisar, mas eu me encarrego. Tem artigo novo. O caminho é este aqui.

O aprendizado

José Horta Manzano

Signor Pizzolato pisou… na bola. Deu a confirmação de que o uso do cachimbo faz a boca torta. Acostumado com a impunidade, descuidou-se. Além disso, imaginou que a cidadania italiana lhe fornecia uma redoma protetora.

Na quase certeza de que o imbróglio do mensalão terminaria em torno de uma pizza regada a chianti, esperou até o último momento. Cometeu erros primários e preparou mal sua rota de fuga.

Aqui vão 10 conselhos para candidatos a escapar da Justiça. Para signor Pizzolato, já é tarde. Mas, sabe-se lá, pode até servir para outros.

Interligne vertical 81) O mundo encolheu. Não há mais espaço para aventuras do tipo daquela protagonizada por Ronald Biggs ― o assaltante do trem pagador. Big Brother is watching you everywhere, o Grande Irmão está de olho em você por toda parte.

2) Um passaporte estrangeiro não é garantia automática de proteção. Especialmente quando emitido por país civilizado.

3) Se a Justiça está aí para julgar, a polícia está aí para prender. É sua função. E policiais não apreciam passar por bobos. Não zombe deles, que a corda pode arrebentar do seu lado.

4) Não dê publicidade à sua fuga. Não deixe indícios, não faça nenhuma confidência, não contrate advogado, não nomeie porta-voz. Desapareça e pronto. Cabe aos outros cogitar. Quanto a você, boca calada.

5) Esqueça certas invenções da vida moderna: telefone, celular, email, facebook. Para se comunicar com aquelas duas ou três pessoas com quem mantém contacto esporádico, utilize o correio, mande recado ou escolha uma «caixa postal», quero dizer, um esconderijo discreto onde você pode deixar mensagem escrita que será recolhida mais tarde por um cúmplice.

6) Não leve sua esposa. Nem deixe que ela saiba onde você se esconde. Tenha em mente que seus familiares certamente serão vigiados e seguidos. São eles o elo fraco da corrente. Evite todo contacto com a família durante alguns anos. Deixe que a situação esfrie. É o preço a pagar, meu caro, não há outro meio. “On ne peut pas avoir le beurre et l’argent du beurre”, não se pode ter a manteiga e o dinheiro da manteiga.

7) Nem por sonho abra conta em banco. Nem em pesadelo utilize cartão de crédito. Nem por delírio envie ou receba dinheiro por via bancária.

8) Não escolha como residência a casa de um parente. (Ô, signor Pizzolato, francamente!) Passe longe de todos os que conheceu antes. Se cruzar um deles na rua, finja que não viu.

9) Resida numa cidade grande. No caso do antigo diretor do BB, Milão ou Roma teriam sido mais indicadas. Fincar pé num vilarejo? Que cochilo!

10) Escolha um prédio grande para morar, com muitos andares e muitos apartamentos. No meio da multidão, você passará despercebido.

Conheço brasileiros que vivem clandestinamente na Europa há duas décadas. Seguiram os princípios básicos e nunca foram importunados pela polícia. Bem, a honestidade me obriga a dizer que nenhum deles está na lista da Interpol.

Signor Pizzolato foi confiado demais. Acreditou em promessas de solidariedade de companheiros, que lhe garantiram apoio até a última gota de sangue. Balela. Quem imaginaria que tudo houvesse de terminar num salve-se quem puder?

No Brasil, a tramitação do processo se arrastou por 7 anos, sem que fosse determinada a prisão preventiva de nenhum acusado. Na Itália, uma vez desmascarado, em meia hora signor Pizzolato foi mandado pra trás das grades da cadeia mais próxima.Interligne 18e

Mas não sejamos severos demais. É compreensível que signor Pizzolato tenha tentado escapar. O próprio Ron Biggs ― aquele do trem pagador ―, depois de passar décadas em Pindorama, pensou melhor e chegou à conclusão de que mais valia viver preso na Inglaterra do que solto no Brasil. Entregou-se.

Pra você ver.
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Abaixo estão alguns recortes da imprensa italiana. A expressão «tangentopoli» foi inventada por jornalistas para designar uma sequência de escândalos financeiros ocorridos faz alguns anos no país. É um bom equivalente italiano para nosso “mensalão”.

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Em Pozza di Maranello, veja como foi capturado o fugitivo brasileiro

Em Pozza di Maranello, veja como foi capturado o fugitivo brasileiro

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Preso banqueiro integrante do "mensalao" brasileiro

Preso banqueiro integrante do “mensalao” brasileiro

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Preso Pizzolato: o banqueiro brasileiro estava escondido em Portovenere

Preso Pizzolato: o banqueiro brasileiro estava escondido em Portovenere

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Integrante do mensalão do Brasil de Lula, Pizzolato foi preso em Maranello

Integrante do mensalão do Brasil de Lula, Pizzolato foi preso em Maranello

My name is Bond, James Bond

José Horta Manzano

Em artigo de 2 de julho, comentei que o arrepio de estupefação que percorreu o governo de muitos países ao descobrirem que Tio Sam bisbilhotava as comunicações do mundo inteiro não passava de hipocrisia.

Desde a esposa que vasculha a carteira do marido até altas esferas governamentais, todos espionam o próximo ― dizia eu.

A edição de 4 de julho do très sérieux jornal Le Monde, de Paris, traz uma reportagem de título bastante sugestivo: «Révélations sur le Big Brother français», as revelações sobre o Big Brother francês. O texto investigativo confirma que também o governo gaulês opera um complexo sistema de coleta sistemática de sinais emitidos por computadores e por telefones. Captam todas as comunicações, sejam elas nacionais ou internacionais.

Espião

Espião

E tem mais: um complemento da mesma reportagem afirma que todos os serviços de informação ocidentais se espionam.

Ocidentais, dizem eles? A meu ver, é avaliação modesta. Todas as agências de inteligência se espionam, sejam elas de que país forem. É exatamente para isso que foram criadas.

Está aí a confirmação de que o adoidado e ingênuo Snowden não revelou nada que os governos do mundo inteiro já não soubessem. Daí o pouco empenho que têm todos mostrado em dar-lhe acolhida. Não interessa a ninguém bancar o bom samaritano hoje, para ser desmascarado amanhã. Periga cair mal.

Em matéria de espionagem, a regra de ouro é o silêncio. Ai daquele que botar a boca no trombone! Não comoverá ninguém. Em boca fechada, não entra mosca.

Nosso infeliz delator não deve ter lido o manual até o fim. Azar dele.

Miscelânea 02

José Horta Manzano

Lá como cá
Sylvie Andrieux, de 51 anos, é deputada socialista francesa há 15 anos. Acaba de ser condenada a 3 anos de prisão. Terá de cumprir o primeiro ano em regime fechado. Durante os dois anos seguintes, estará em liberdade condicional.

Seu crime? Desvio de dinheiro público. O tribunal reconheceu que a deputada favorecia ongs fictícias e associações inexistentes. Ao final, o dinheiro servia para comprar votos. O montante total do «malfeito» foi de 740 mil euros.

No Brasil, desvio de dinheiro público para compra de votos é «malfeito» tão banalizado que já não comove ninguém. Caso a Justiça decidisse mandar todos os infratores para a prisão, melhor seria cercar o Congresso.

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O exílio fiscal
Gérard Depardieu, o ultraconhecido ator francês, é russo fresco, ou seja, tornou-se cidadão russo há poucos meses. Declarou que se sente muito orgulhoso da nova nacionalidade.Gérard Depardieu 2

Para respeitar a obrigação que têm todos os habitantes do território russo, declarou seu endereço às autoridades competentes. Reside à Rua da Democracia n° 1, em Saransk. Sem brincadeira.

O ator acaba de desembarcar em Grojny, na Tchetchênia, para começar a rodar Turquoise, seu novo filme.

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Azeite «do bom»
Mesas de restaurantes europeus costumam servir de morada permanente a uma cestinha meio ensebada onde se alojam o sal, a pimenta, o tempero em pó e a indefectível garrafinha de azeite. Até restaurantes «de bandeja» ― semelhantes àqueles que no Brasil são chamados «por quilo» ― exibem a cesta.Cesta condimentos 2

Como Big Brother, a União Europeia cuida da saúde de seus súditos. Os europeus podem dormir tranquilos, que seus interesses estão em boas mãos. Acaba de ser editado um novo regulamento visando à proteção da saúde dos habitantes.

A partir de 1° de janeiro de 2014, os europeus dirão adeus àquelas garrafinhas bojudas que, raramente lavadas, eram preenchidas de azeite à medida que se iam esvaziando. A regra entra em vigor simultaneamente em todos os países-membros.

A administração da UE não quer mais ouvir falar em garrafinhas gordurosas contendo azeite de origem duvidosa. Os novos modelos terão de ser fabricados de forma a impedir a recarga. Uma vez comprados e utilizados, terão obrigatoriamente de ser descartados.

Sei não. Aqui como lá, sacumé, fatta la legge, fatta la burla(*). Já deve ter gente tentando encontrar um meio de recarregar as garrafinhas.

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Les saints de glace
Um dos espantalhos dos agricultores da Europa centro-meridional é o gelo. Não falo do frio do inverno, quando a natureza adormecida está preparada para receber neve e temperaturas glaciais. Falo das geadas de primavera.

A partir de março, a primavera faz ressurgirem brotos e flores. Em abril, a floração das árvores chega ao máximo. Cerejeiras, macieiras, pereiras, ameixeiras, abricoteiros colorem a paisagem. No começo de maio, as flores murcham, caem e dão lugar aos frutos.

Nessa época, as frutinhas são ainda pequeninas e frágeis. Uma tempestade de granizo ou um frio extemporâneo pode dar cabo delas. A preocupação maior dos agricultores é que uma geada sobrevenha e arrase com a plantação.

Desde a alta Idade Média, o povo acostumou-se a invocar a proteção dos chamados saints de glace ― santos de gelo. Trata-se de santos cuja existência é às vezes posta em dúvida, mas que figuram assim mesmo na hagiografia cristã. Implora-se a eles que intercedam junto ao Altíssimo para que não venha nenhuma geada nesse período crítico. A partir de junho, já não faz falta invocar nenhuma entidade: o perigo já está esconjurado pela força do verão.Saints de glace

Conforme o país e a região, cultuam-se diferentes santos de gelo. Na maior parte da França e da Suíça, o povo pensa em São Mamert, São Pancrácio e São Servásio, cujas festas são em 11, 12 e 13 de maio, respectivamente.

Regiões situadas mais ao norte preferem invocar santos cuja celebração ocorre alguns dias mais tarde. Ao contrário, territórios meridionais dirigem suas súplicas a santos comemorados logo no começo de maio.

A razão é simples: no norte da Europa, o perigo das geadas vai até o fim de maio, enquanto nos países mediterrâneos já praticamente desaparece no fim de abril.

Este ano, com invocação ou sem elas, a primavera ainda não se fez sentir. Os dias se alongam, é verdade. Flores já apareceram, já se foram, pássaros já procriaram. Mas o sol ainda não apareceu. Chove diariamente. A previsão é de fraca queda de neve sexta-feira 24 de maio, coisa que não se vê há muitas décadas.

Já não se fazem mais santos de gelo como antigamente. Ou será que o povo se descuidou e deixou de invocá-los?

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(*) Nem bem foi feita a lei, já se inventa a maneira de burlá-la. Provérbio italiano.

Cuidado com o cadinho!

Cadinho imageJosé Horta Manzano

Terá sido a mornidão, o mormaço, a malemolência tropical? Terá sido o fato de os primeiros estrangeiros que aportaram em nosso País terem vindo sem companhia feminina? Terá sido porque o português, em matéria de cama, é menos complicado que outros europeus?

Acho que ninguém pode afirmar ― qualquer resposta clara e definitiva seria mera conjectura. O fato é que, diferentemente da esmagadora maioria dos países colonizados por europeus, o nosso transformou-se num verdadeiro país miscigenado. Pouquíssimas são as nações com população composta de aportes raciais tão imbricados quanto o Brasil.

A colonização europeia na África não produziu miscigenação. Nem na Austrália, nem na Índia, nem na Nova Zelândia, nem na Indonésia. Se algum vestígio de mistura racial há nas antigas colônias espanholas, é coisa pouca ― com a notável exceção de Cuba. Na América do Norte, pretos e brancos constituem, até hoje, comunidades apartadas, que se toleram.

No Brasil, tutto andava secondo l’antichissima regola del mondo, como canta o segundo ato da Turandot. Seguindo seu destino, o País trilhava o caminho de uma mistura racial cada vez mais acelerada. Eis senão quando… alguns luminares se instalaram no poder e decidiram intervir no cadinho.

Os neorracistas ― que preferem a denominação mais suave de racialistas ― houveram por bem forçar um Congresso dócil a legislar sobre preferências raciais. É humilhante para uma parte da população. Se você for um pouco mais moreno e estiver cursando uma faculdade, todos imaginarão que entrou pelo sistema de quotas, ainda que não seja verdade. Ninguém ousará lhe fazer a pergunta diretamente, cada um imaginará o que bem entender. A partir de agora, os brasileiros são classificados segundo critérios raciais, decisão que seria considerada indecente até poucos anos atrás.

A Química tem suas leis. E leis são feitas para serem respeitadas. Há que dar tempo ao tempo. Aprendizes de feiticeiro andam tentando manipular o cadinho intempestivamente, para acelerar a reação.

Não vai dar certo. O feitiço periga virar contra o feiticeiro. Não se eliminam preconceitos por decreto.

NOTA: Este texto foi inspirado num artigo de Cláudia Collucci, publicado pela Folha de SP online neste 23/12/2012. Siga o link.

Mudança de endereço

Você sabia?

José Horta Manzano

Em (quase) todos os países do mundo, o cidadão escolhe onde quer morar, compra ou aluga sua moradia, e se muda. Até este ponto, imagino que em qualquer parte do planeta funcione (quase) igual. É a partir daí que começam as diferenças.

No Brasil, após a mudança, tchau e bênção. Ninguém fica sabendo onde foi parar o indivíduo. Se ele for organizado, vai providenciar espontaneamente a mudança de endereço nos documentos que trazem essa indicação, como o título eleitoral, por exemplo. Muitos nem isso fazem. Moram num endereço e permanecem inscritos noutra região, às vezes noutro Estado.

Nos países mais regulados, cada município mantém um cadastro dos habitantes. Na Suíça, por exemplo, a coisa é levada extremamente a sério. O cadastro é exaustivo, exato e mantido em dia. Cada morador é registrado na prefeitura, com nome, endereço, telefone e outros dados pessoais.

A consequência tanto pode ser uma vantagem quanto uma desvantagem. Quando se procura localizar alguém, seja por que motivo for, o registro é um ponto muito positivo, essencial mesmo. Já para quem tem culpa no cartório e gostaria de sumir do mapa, este não é o país ideal.A Lusitana

Quando da mudança de casa, o cidadão tem a obrigação de anunciar sua partida do endereço antigo e, em seguida, sua chegada ao novo endereço, ainda que seja no mesmo município. Os que moram de aluguel ― a maioria ― nem precisariam, na prática, cumprir essa formalidade. Os senhorios cuidam de fazê-lo: o antigo anuncia a partida, e o novo anuncia a chegada do morador.

Mas as autoridades são intransigentes: cada habitante, que lhe agrade ou não, tem de fazer o anúncio por si mesmo. Pode ser pessoalmente ou por correio, tanto faz. Mas as autoridades, bondosas, concedem um ‘amplo’ prazo de até 14 dias entre a mudança e o aviso.

Além de anunciar à prefeitura, o indivíduo tem, naturalmente, de cuidar de avisar seu banco, seu empregador, as companhias de eletricidade, telefone e tevê a cabo, as companhias de seguro, e quaisquer outras associações ou instituições às quais esteja ligado. Tem também ― e isto é obrigatório ― de comunicar a alteração de endereço aos serviços que cuidam do registro dos automóveis.

E ai de quem se esquecer de avisar a prefeitura! Uma vez, faz muitos anos, num tempo em que eu, chegado havia poucos anos, ainda não estava a par dessas picuinhas, mudei de endereço. Anunciei minha partida da morada antiga, mas não imaginei que também tivesse de avisar lá onde cheguei. Achei que fosse automático, que os municípios se comunicassem. Não era bem assim. As prefeituras se comunicam, sim, mas isso não dispensa o cidadão de cumprir as formalidades tim-tim por tim-tim.

Alguns dias depois de minha mudança, numa bela manhã ensolarada, tocam a campainha. Abro. Eram dois policiais uniformizados. Após um cumprimento polido mas sisudo e formal, disseram a que vinham: tomar satisfações sobre o anúncio incompleto de minha mudança. Fiquei muito embaraçado. Foram indulgentes e não me multaram, mas saí correndo para formalizar minha chegada junto às autoridades locais e para completar, assim, o ritual.

Foi a primeira vez que a polícia veio me procurar em casa. E espero que tenha sido a última.

Cachorros suíços

Você sabia?

Bouvier bernois

Filhotes de bouvier bernois

José Horta Manzano

Na Suíça, os proprietários de cães têm de pagar uma taxa anual ao município. Assim é. A câmara de cada localidade fixa o montante. Geralmente fica em torno de 100-150 francos por ano e por cachorro (250 a 350 reais, ao câmbio atual). Os aposentados têm direito a desconto ― válido, no entanto, só para o primeiro animal. A partir do segundo, já vale a taxa habitual.

Além disso, já faz quase 10 anos que a lei obriga todos os proprietários de cachorros a mandar introduzir, por via subcutânea, um chip em cada um de seus animais. É uma intervenção relativamente simples, feita por qualquer veterinário. O chip fica posicionado na altura da veia jugular esquerda e contém a identificação do animal e do dono. Caso o bicho se perca, será facilmente trazido de volta ao proprietário legítimo.

Estarão aí as primícias do que o futuro reserva a nossos netos? Será que estamos assistindo a uma avant-première de como os humanos serão identificados daqui a alguns anos?

Quem viver verá.