José Horta Manzano
Você sabia?
Os primeiros europeus começaram a se estabelecer nas Américas por volta de 500 anos atrás. Nos primeiros tempos, brotaram apenas núcleos de povoamento, um aqui, outro ali, mais ou menos estáveis, sujeitos a desaparecer subitamente. Bastava uma epidemia, um ataque de indígenas, uma invasão de piratas ou de corsários para apagar a colônia do mapa.
Naqueles tempos recuados, vigorava o sábio e ancestral costume segundo o qual filho de peixe peixinho é. As colônias fundadas no continente eram mera extensão dos povos europeus que as tinham criado. Assim, um cidadão da Nova Inglaterra era tão britânico quanto um legítimo londrino. Um português nascido na Bahia, ainda que de terceira ou quarta geração, continuava sendo tão lusitano quanto se tivesse visto a luz em Viana do Castelo ou em Freixo de Espada à Cinta.
As colônias britânicas foram as primeiras a se proclamarem independentes da metrópole europeia. É bem verdade que a França, por razões de rivalidade com a Inglaterra, deu aos colonos uma mãozinha mais que bem-vinda. Mas essa já é uma outra história.
Os ingleses não apreciaram nem um pouco o fato de perder a importante fonte de ganho. Espernearam durante algum tempo, mas acabaram se dobrando à realidade. A separação era sem volta.
Algumas décadas mais tarde, tanto a América portuguesa quanto a espanhola espertaram e se dispuseram a seguir o exemplo dos colonos britânicos. O povoamento ibérico era, no entanto, geograficamente extenso, esparso. E as comunicações entre os diversos núcleos era precária, quase inexistente. Esse fator inviabilizava uma ação concertada. As regiões colonizadas foram-se despedindo da metrópole, cada uma por sua conta. Pelos anos 1825, o continente já contava uma vintena de novos países soberanos.
Junto com a independência, apareceu a questão da nacionalidade. Se fosse mantida a tradicional regra da lei do sangue, a jus sanguinis, as novas nações estariam fadadas a ser povoadas por estrangeiros até o fim dos tempos. Com efeito, pela lei do sangue, filho de inglês é inglês, filho de espanhol é espanhol, e assim por diante. Somente a naturalização, ou seja, o abandono da nacionalidade herdada e a aquisição de uma nova poderia resolver o problema.
Mas os tempos eram outros. Poucos eram alfabetizados. Não se podia exigir que cada vivente enfrentasse os trâmites burocráticos inerentes a um procedimento de naturalização. Os habitantes da Nova Inglaterra encontraram solução bem mais simples para contornar o problema da naturalização maciça: instauraram a lei do solo, a jus soli. Pela nova norma, bastava nascer no território para adquirir automaticamente a nacionalidade do país. Para problemas iguais, soluções iguais. Todos os novos países americanos adotaram o mesmo princípio.
Tão acostumados estamos com esse sistema, que não nos damos conta de que é criação relativamente recente. E tem mais: a instituição da lei do solo é praticamente restrita aos países americanos. Fora do continente, poucas são as nações que seguem essa doutrina. Por outro lado, todos os países do mundo mantêm, naturalmente, a lei do sangue para seus cidadãos.
Exemplificando, podemos dizer que, se um casal brasileiro tiver um filho na Alemanha, a criança não será alemã, dado que a legislação daquele país não conhece a lei do solo. O pequerrucho será necessariamente brasileiro. Brasileiro nato, ou seja, brasileiro desde o nascimento. Se assim não fosse, o infeliz não teria nacionalidade, seria apátrida.
Num exemplo inverso, o filho de um casal alemão nascido no Brasil terá, desde o primeiro choro, dupla nacionalidade: a alemã, pela lei do sangue; e a brasileira, pela lei do solo.
Portanto, todos os filhos de brasileiros nascidos no exterior são brasileiros natos. Se o parto ocorrer num dos (raros) países que reconhecem também a lei do solo ― os países americanos, em princípio ― a criança terá nacionalidade dupla, a brasileira e a do país de nascimento.
A jus sanguinis (lei do sangue) é universal. Afinal, gato que nasce no forno não é biscoito. A jus soli (lei do solo) é a exceção instituída para resolver a questão da cidadania nas antigas colônias do continente americano.
Foi anunciado que uma estrela da tevê brasileira, Xuxa Meneghel, recebeu seu passaporte italiano. A Folha de São Paulo afirmou que ela «se tornou» cidadã italiana. O site Terra foi ainda mais enfático. Falou em «conquista» da cidadania peninsular. Ambos estão mal informados.
Xuxa, como todos os «oriundi», já nasceu com duas nacionalidades. Podia até nem saber disso quando era mais jovem ― provavelmente não sabia mesmo ― mas o fato de uma norma de direito ser desconhecida não anula sua validade.
O que a estrela fez foi apenas requerer seu documento de identidade italiana, papel ao qual sempre teve direito, ainda que não o possuísse antes.
Fato semelhante ocorreu com uma antiga primeira-dama do País alguns anos atrás. Muitos se escandalizaram porque aquela senhora «requereu» sua nacionalidade estrangeira. Nada mais falso. A nacionalidade ela sempre teve. O que pegou muito mal foi ela ter aceito, simploriamente, que lhe entregassem o passaporte enquanto o marido presidia o País. Podia ter esperado até que ele terminasse o mandato.
Enfim, bons modos não se compram, não se vendem, não se alugam, não se emprestam. Quem tem, tem. Quem não tem está condenado a passar a vida dando vexame.