Grippette

José Horta Manzano

Le Figaro, tradicional diário francês de direita, publicou um artigo por ocasião dos 700 mil mortos de covid, terrível marca alcançada pelo Brasil estes dias. O texto lembra que nosso contingente de vítimas só é superado pelo dos EUA, país em que a covid matou mais de um milhão. No mundo todo, foram 6,8 milhões de mortos.

O jornal – de direita, repito – não se esqueceu de mencionar a atitude debochada com que Bolsonaro “enfrentou” a pandemia. Lembrou a seus leitores a “gripezinha” do capitão. Aqui estão o trecho original e a tradução.

Une «grippette»
La gestion de la crise du Covid au Brésil a été marquée par un grand nombre de polémiques entre les milieux scientifiques notamment et l’ancien président d’extrême droite Jair Bolsonaro. Celui-ci a longtemps dit que le Covid était une «grippette», préconisé des traitements inefficaces et s’est opposé à la vaccination. Il a refusé de confiner la population au nom de la préservation de la première économie d’Amérique latine, tout en multipliant les bains de foule, le plus souvent sans masque.

Uma “gripezinha”
A gestão da crise da covid no Brasil foi marcada por numerosas polêmicas entre a comunidade científica e o ex-presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. Durante muito tempo, ele chamou a covid de “gripezinha”, defendeu tratamentos ineficazes e se opôs à vacinação. Ele se recusou a confinar a população em nome da preservação da maior economia da América Latina, enquanto aumentava o número de banhos de multidão, geralmente sem máscara.

Como se vê, mesmo além-fronteiras o “legado” de Bolsonaro é reconhecido e lembrado.

Estratagema
Para traduzir “gripezinha”, o Figaro recorreu a um estratagema raro: criou uma palavra. Em tempos normais, uma gripezinha se diz “une petite grippe”. Nunca ouvi ninguém dizer “grippette” para se referir a um resfriado.

Resultado do jogo
Nosso ex-presidente era tão esquisito que, para traduzir seu comportamento, foi preciso criar uma palavra em francês. Bravo! Essa façanha não é comum! É pena que o capitão só sobressaísse em contexto negativo e nunca tenha sido manchete com notícia boa.

O brasileiro e o soluço

Ricardo Araújo Pereira (*)

Por que o brasileiro suporta a pandemia, mas se verga perante o soluço?

Veja como é caprichosa a medicina. Há pouco mais de um ano, o presidente do Brasil fazia aquela declaração célebre: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar, nada sentiria, ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”.

E, nesta semana, o atleta indestrutível que é indiferente a uma pandemia planetária foi hospitalizado com uma crise de soluços. A Covid, que mata milhões de pessoas no mundo inteiro, pode vir à vontade, que não causa transtorno, mas isto, hic, por amor de, hic, não se aguenta, hic, por favor, hic, alguém chame uma, hic, ambulância depressa, hic.

A teorização da invulnerabilidade nacional ao coronavírus atingiu novos cumes com a também famosa observação: “Brasileiro não pega nada, o cara pula no esgoto e não fica doente”. Mas, tal como o Super-Homem sucumbe à kriptonita, também o brasileiro, que resiste a vírus e a germes, não aguenta um soluço. Difíceis de entender os desígnios da natureza. Por que razão há de o brasileiro suportar a doce pandemia e o gentil esgoto, mas se vergar perante o cruel soluço?

Em defesa do brasileiro, talvez seja importante referir que o soluço tem intrigado o ser humano desde sempre. E que, ainda assim, permanece misterioso. O soluço não tem solução. Ou tem, mas não é muito eficaz.

A certa altura d’O Banquete, de Platão, chega a vez de Aristófanes falar. Sucede que não consegue fazê-lo porque é acometido por um persistente ataque de soluços. Erixímaco, o médico, sugere então: “Experimente, Aristófanes, ir para o hospital e tirar uma fotografia descomposto, intubado e sem roupa, para tentar excitar nos seus conterrâneos uma compaixão pelos seus soluços que você não teve pelas doenças graves deles”.

Minto. O que Erixímaco recomenda é que Aristófanes sustenha a respiração, gargareje com um pouco de água ou faça cócegas no nariz até espirrar. E resulta. A estratégia da fotografia no hospital é que já não convence ninguém.

(*) O português Ricardo Araújo Pereira é jornalista e escritor.

O presidente e os testes

José Horta Manzano

Fofocas e boatos sempre existiram, mas a tecnologia moderna exacerba a difusão de informações tortas.

Estes dias, com meio mundo de férias, magistrados e até parlamentares em recesso, o assunto que ainda domina é a doença presidencial. Fatos e gestos de doutor Bolsonaro costumam envelhecer rápido devido à compulsão do capitão em produzir escândalos novos a cada dia. O silêncio que ele vem mantendo há duas ou três semanas espicha a sobrevida dos fatos e escândalos disponíveis.

Eis por que sua enfermidade continua na ordem do dia. Numerosas correntes de pensamento se formaram. Há quem acredite que o presidente já se contaminou faz tempo e que esta agora é uma recaída. Outros juram que o contágio é castigo de Deus, desencadeado pelo próprio Bolsonaro quando zombou dos compatriotas doentes soltando o terrível ‘E daí?’. Há ainda quem afirme que a contaminação é pura jogada de marketing; segundo essa corrente de fofoca, o presidente está em perfeita saúde, e a confissão de ter sido contagiado é só pra enganar trouxa e desviar a atenção das estrepolias dos filhos.

Visto que nós, o populacho, não sabemos ao certo o que aconteceu, há que respeitar todas as linhas de boato. A verdade se esconde em alguma delas. Linha por linha, acrescento mais uma. Vou dizer como imagino que os acontecimentos se tenham desenrolado.

Muita gente anda intrigada com o fato de Bolsonaro se ter negado a publicar o resultado dos primeiros testes de covid-19. Perguntam: «– Se os testes tinham dado resultado negativo, por que é que ele se recusava a mostrar?». E também: «Por que é que mostrou tão rápido desta vez – ainda por cima com resultado positivo?».

Acredito que a primeira bateria de testes foi feita com nomes fictícios exatamente porque não era pra ser mostrada ao público. Na cabeça do doutor, fazer o teste era sinal de que estava com medo da doença. Não cai bem um militar durão e machão, ‘com passado de atleta’, ter medo de uma «gripezinha». Eis por que ele não queria mostrar os exames. Não era tanto pelo resultado, mas pelo fato de ter-se deixado esfregar as fossas nasais – demonstração de fragilidade e de preocupação.

Já da segunda vez, com sintomas presentes, a história era diferente. Obrigado a ficar de quarentena, ele não ia conseguir esconder a doença. O Planalto está cheio de espiões linguarudos. Assim, achou melhor ir contando logo, antes que a verdade estourasse.

A teoria que expus pode não ser inteiramente verdadeira mas vale tanto quanto outra fofoca qualquer.

A sinceridade do doutor

José Horta Manzano

A contaminação de Bolsonaro demonstra que sua atitude diante da pandemia era – e continua sendo – sincera. No trato da pandemia, nunca houve marketing nem caso pensado. Ele realmente acreditava que a doença não passasse de “gripezinha”.

Todos ressaltam o desmazelo com que, nos últimos meses, continuou a acercar-se de assessores, visitantes e jornalistas, em atitude considerada por muitos como criminosa por expor toda essa gente a eventual contágio.

Mas há que ter em mente o outro lado da medalha, que mostra que doutor Bolsonaro não acreditava na periculosidade do vírus: ele deixou que assessores, visitantes e jornalistas se aproximasse dele como se vivêssemos tempos normais. Nunca demonstrou ter medo de ser contaminado.

Ao deixar-se achegar, o presidente tanto arriscou transmitir a doença a terceiros (que era o risco que todos apontavam) quanto se abriu ao contágio. Acreditava, de verdade, que a doença não passasse de “gripezinha” inventada por comunistas malvados que queriam destroná-lo. Estava convencido de que, com seu “passado de atleta”, tinha corpo fechado.

O ser humano é dotado de instintos; um deles, talvez o mais básico, é o de sobrevivência. Se o doutor – estressado e idoso – tivesse pressentido o perigo que corria, teria se resguardado desde a chegada da epidemia, que ninguém é besta. Não o fez.

Está aí, salvo melhor juízo, a prova da absoluta sinceridade do presidente. É que sua mente funciona em circuito fechado, impermeável a todo ensinamento. Sua maneira de ver o mundo está cristalizada; toda esperança de mudança é vã. Quem estiver esperando que ele se regenere assim que escapar dessa, que tire o cavalo da chuva. Desse mato, não sai coelho.

Tuíte – 10

José Horta Manzano

A gripezinha que o capitão trouxe na bagagem de volta dos EUA já fez estragos no mundo. A contagem de mortos, atualizada em 25 abril, é a seguinte:

Bélgica:      6.700
Reino Unido: 20.000
França:      23.000
Espanha:     23.000
Itália:      26.000
EUA:         53.000

O total de casos confirmados no mundo beira os 3 milhões, sem contar ampla subnotificação. Repararam que o doutor parou de falar em gripezinha e em cloroquina? Falando nisso, onde está o resultado do teste, que o capitão ficou de mostrar e não mostrou?

A gripezinha

José Horta Manzano

«Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não, talquei?»

Desde que soltou essa preciosidade pela primeira vez, em meados de março, doutor Bolsonaro já tornou a insistir na metáfora em diversas ocasiões. Sempre em público.

Não está clara a origem do negacionismo do doutor diante da pandemia. Há quem diga que ele se sente uma espécie de super-homem, invulnerável e ungido pelos deuses, a quem nada pode acontecer. Também há quem diga que o homem é tapado e não consegue enxergar o tsunami que ameaça o mundo todo – Brasil incluído. É ainda permitido acreditar que ele contraiu a doença e se curou, provavelmente com hidroxicloroquina. Isso explicaria o merchandising que ele faz para o fármaco.

Seja como for, a gripezinha e o resfriadinho do doutor estão dando trabalho a tradutores. É que nossa língua facilita a formação de diminutivos, o que não acontece em outras línguas. Em português, os sufixos inho, zinho, zico, zito resolvem o problema e são utilizados em ampla escala. Pomos substantivo, adjetivo e até advérbio no diminutivo.

Em outras terras, jornalistas usaram o adjetivo pequeno(a) para se aproximar do efeito da fala de Bolsonaro. Chegaram perto, mas um pouco da nuance se perdeu. “Resfriadinho” não é a mesma coisa que “pequeno resfriado”, especialmente se o “resfriadinho” for pronunciado com a boca torcida. Na fala de Bolsonaro, o diminutivo marca todo o desdém que ele sente pela doença. É difícil traduzir esse estado de espírito. O mesmo ocorreria se a gente quisesse traduzir «presidentezinho».

Na tradução da notícia, a mídia internacional tem adotado a palavra “pequeno”. Ficou assim:

Inglês:
little flu, little cold

Francês:
petite gripe, petit rhume

Italiano:
piccola influenza, piccolo raffreddore

Alemão:
kleine Grippe, kleine Erkältung

Espanhol:
pequeña gripe, pequeño resfrío