A sinceridade do doutor

José Horta Manzano

A contaminação de Bolsonaro demonstra que sua atitude diante da pandemia era – e continua sendo – sincera. No trato da pandemia, nunca houve marketing nem caso pensado. Ele realmente acreditava que a doença não passasse de “gripezinha”.

Todos ressaltam o desmazelo com que, nos últimos meses, continuou a acercar-se de assessores, visitantes e jornalistas, em atitude considerada por muitos como criminosa por expor toda essa gente a eventual contágio.

Mas há que ter em mente o outro lado da medalha, que mostra que doutor Bolsonaro não acreditava na periculosidade do vírus: ele deixou que assessores, visitantes e jornalistas se aproximasse dele como se vivêssemos tempos normais. Nunca demonstrou ter medo de ser contaminado.

Ao deixar-se achegar, o presidente tanto arriscou transmitir a doença a terceiros (que era o risco que todos apontavam) quanto se abriu ao contágio. Acreditava, de verdade, que a doença não passasse de “gripezinha” inventada por comunistas malvados que queriam destroná-lo. Estava convencido de que, com seu “passado de atleta”, tinha corpo fechado.

O ser humano é dotado de instintos; um deles, talvez o mais básico, é o de sobrevivência. Se o doutor – estressado e idoso – tivesse pressentido o perigo que corria, teria se resguardado desde a chegada da epidemia, que ninguém é besta. Não o fez.

Está aí, salvo melhor juízo, a prova da absoluta sinceridade do presidente. É que sua mente funciona em circuito fechado, impermeável a todo ensinamento. Sua maneira de ver o mundo está cristalizada; toda esperança de mudança é vã. Quem estiver esperando que ele se regenere assim que escapar dessa, que tire o cavalo da chuva. Desse mato, não sai coelho.

Os cabelos de Nossa Senhora

José Horta Manzano

Lembro-me de um tempo em que ‒ diziam ‒ especialistas do exterior vinham admirar as proezas da engenharia brasileira. Contam que, à época da Guerra Fria, invejosos e incrédulos engenheiros soviéticos atravessaram meio mundo exclusivamente pra medir o espaço entre as colunas de sustentação do Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista. À época, era o vão livre mais amplo já erguido no planeta, não sei se a estatística ainda vale.

De lá pra cá, parece que um pedregulho penetrou nas engrenagens e travou o suave funcionamento do mecanismo. Viadutos cedem, pontes desabam, barragens estouram. Por quê? Estaria o software de engenheiros nacionais fora de validade? Estaria o solo tropical mais instável que de costume, a ponto de tragar construções sem aviso prévio?

O distinto leitor sabe que não são essas as razões. O fato é que o desleixo, doença crônica nossa, cobriu estas terras tropicais com sua teia de miséria. O desmazelo ‒ e sua irmã gêmea, a impunidade ‒ estão na raiz desses problemas. A ruptura da barragem de Brumadinho é a mais recente dessas catástrofes. A série macabra já vem de longe e todos tememos que não termine aqui.

Acidentes acontecem, é verdade, e são às vezes imprevisíveis. Ninguém pode prever que um meteorito vá um dia riscar o céu e se espatifar dentro duma represa, provocando ruptura do muro de contenção. É difícil antecipar uma chuva de 40 dias e 40 noites sem parar, como nos tempos bíblicos, provocando o transbordo da represa. É tremenda má sorte um tornado se formar bem em cima do reservatório, provocando um remoinho cuja força acabe arrombando a parede de concreto. São ocorrências pra lá de extraordinárias. Suas consequências vão além do que o engenho humano pode prevenir.

Masp – Museu de Arte de São Paulo

O que tem acontecido com nossas obras de engenharia civil, no entanto, está dispensando meteoritos, tornados e dilúvios bíblicos. Construções desmoronam assim, sem mais nem menos, como fruta madura cai da árvore. Em seguida, quando se analisa com cuidado, a constatação é sempre a mesma: faltou manutenção. A entidade responsável, confiante na bondade divina, descuidou-se de vigiar e de fazer os reparos necessários enquanto ainda era tempo. Lembraram-se do adágio «Faz a tua parte, que Eu te ajudarei», mas ficaram só com o ‘Eu te ajudarei’, esquecendo-se do ‘faz a tua parte’.

Semana passada, doutor Bolsonaro fez saber, através de seu ministro de Minas e Energia, que pretende retomar a construção de usinas nucleares. Entre quatro e oito novas enormes silhuetas fumegantes deverão surgir no território.

Usina nuclear serve pra gerar energia elétrica. O Brasil tem duas delas em funcionamento, que respondem por 1,1% da eletricidade do país. Oito novas usinas, na hipótese mais ousada, representarão 4% da energia nacional. Se considerarmos os bilhões de dólares que serão investidos, o resultado é magrinho. Muito dinheiro pra pouco efeito.

Mas o pior não é o dinheiro. Com a cultura do desmazelo que nos invade, plantar usinas nucleares é decisão temerária. Se uma represa que se rompe causa centenas de vítimas, uma central nuclear que explode pode deixar milhões de mortos, sem contar a contaminação de grande parte do território nacional por centenas de anos.

Em países como Alemanha, Suíça e outros ajuizados, já está sendo aplicado o plano de abandono da energia nuclear. Não é coisa que se possa fazer do dia pra noite. Na Europa, os próximos 30 anos verão o desaparecimento paulatino desse tipo de geração de energia, que será substituída por matrizes renováveis.

Projetar usinas nucleares no Brasil em pleno século 21 é andar de marcha a ré. «Quem anda de costas», dizem no Catecismo, «pisa os cabelos de Nossa Senhora». Convém evitar.