Casamento para todos

José Horta Manzano

Ehe für alle
Mariage pour tous
Matrimonio per tutti

Na Suíça, uma nova lei não costuma ser feita da noite para o dia. Tirando em casos de emergência, como com a pandemia, quando a situação exige criação imediata de regras, as artes legislativas suíças caminham lentamente, a passo de tartaruga. Não se veem leis serem votadas a toque de caixa, como é comum no Brasil, país onde se dorme com uma regra e se acorda com outra.

Cerca de quinze anos atrás, foi dado estatuto legal à união entre duas pessoas do mesmo sexo. Não era ainda um verdadeiro casamento, mas já foi um passo ousado, vista a mentalidade da época. A lei, votada em 2004 e referendada por plebiscito de 2005, instituiu novo estado civil além dos tradicionais (solteiro, casado, viúvo e divorciado). A partir de então, os que assinavam esse contrato de união deixavam de ser solteiros, mas também não se tornavam casados; estavam “vinculados por uma união civil” – nome que variava conforme a língua oficial da região.

A “união civil” era, por assim dizer, um casamento capenga. Primeira grande diferença: dado que era reservado aos casais de mesmo sexo, era um denunciador da orientação sexual do cidadão, criando situações constrangedoras – no emprego, por exemplo. Em segundo lugar, o casal unido por esse pacto estava proibido de adotar filhos. Havia ainda algumas diferenças notáveis. Em resumo, já era um avanço, mas ainda insuficiente para os tempos atuais.

Desde a época em que a “união civil” entrou em vigor, associações militantes e grupos de parlamentares de cabeça mais aberta vêm batalhando para instituir um verdadeiro casamento igual para todos, quer os contraentes tenham o mesmo sexo, quer não. A luta foi longa, como são todas as que mexem com estruturas sociais cristalizadas. Finalmente, em dezembro de 2020, as duas câmaras do Parlamento aprovaram nova lei instituindo o casamento para todos.

Desta vez, sim: os direitos são iguais para todos. Casais de mesmo sexo são tratados como casais heterossexuais em caso de sucessão (herança), uso do nome de família, estado civil (todos têm o direito de se dizer “casados”, sem distinção de orientação sexual), direito à naturalização facilitada para o cônjuge estrangeiro de um cidadão suíço. Todos têm direito a adotar, independentemente do sexo dos cônjuges – o que era proibido antes. As mulheres têm direito à procriação medicamente assistida, ou seja, toda criança nascida de uma delas terá oficialmente duas mães, escapando à menção infamante “pai desconhecido”.

Só que, sacumé, sempre tem os desmancha-prazeres. Um grupo de ultraconservadores não apreciou o novo dispositivo legal. Lançou uma petição, coletou o número de assinaturas necessário e forçou a lei a ir a julgamento. Na Suíça, em casos assim, quem julga não é o Tribunal Federal, mas o povo. Seguindo o protocolo, o governo organizou um referendo popular em que a pergunta era: “Aceita a Lei n° tal, assim assim?”. A resposta só podia ser sim ou não.

O voto foi anteontem, domingo, 26 de setembro. A lei dita de “casamento para todos” foi aprovada, sob aplausos, por uma forte maioria de dois em três suíços. A participação no plebiscito foi até um pouco superior à média. Agora, sim, o novo dispositivo será inscrito na Constituição Suíça. A meu ver, um sistema de escolha sólido como esse vale mais que o simples voto de parlamentares. Tem legitimidade maior.

A Suíça até que estava atrasada nessa corrida ao “casamento para todos”. Já em 1989, a Dinamarca tinha aberto o caminho, ao autorizar as primeiras uniões civis para casais homossexuais – uma extravagância à época. Mas foram os Países Baixos (Holanda), em 2001, os primeiros a darem base legal a um casamento homossexual de verdade.

De lá pra cá, só na Europa, mais 15 países seguiram esse caminho: Bélgica, Espanha, Portugal, Islândia, Noruega, Suécia, Dinamarca, França, Irlanda, Finlândia, Alemanha, Luxemburgo, Malta, Áustria e Reino Unido. A partir de agora, a Suíça é o 17° a entrar para o clube. Na prática, os primeiros casamentos gays poderão ser celebrados a partir de 1° julho de 2022.

Outros países europeus, embora não tenham (ainda) o casamento para todos, têm algum estatuto de união civil para casais de mesmo sexo: Chipre, Itália, Croácia, Hungria, Grécia, Eslovênia, Estônia e Tchéquia.

Na América Latina, a Argentina foi o primeiro país a autorizar casamentos homossexuais. O Brasil, a Colômbia, a Costa Rica, o Equador e o Uruguai também autorizam. No México e nos EUA, é mais complicado; a legislação pode variar de um estado a outro. Em Cuba, estão quase chegando lá, mas ainda falta amansar a Igreja, que, ao que parece, tem força por lá. Na Ásia, Taiwan é o pioneiro e, por enquanto, único país a reconhecer o casamento para todos.

Israel vive uma situação um tanto esquizofrênica. Não pode haver matrimônio gay no país; no entanto, se ele tiver sido contraído no estrangeiro, será reconhecido. Nova Zelândia e Austrália já deram o passo.

A África e a Ásia ainda estão bem atrasadas nessa corrida. Tirando a honrosa exceção da África do Sul, o resto é dramático. Em muitos países, toda homossexualidade é reprimida, que dirá o casamento gay. Em países como Irã, Afeganistão, Sudão, Somália, Nigéria, Arábia Saudita, Paquistão, Catar, Emirados – e em diversos outros – toda relação gay é crime que pode levar à cadeia ou, dependendo do humor do tribunal, até à pena de morte.

Como se vê, tem horas em que a gente quase acredita que o brasileiro, apesar da escuridão bolsonariana, ainda não deixou de ser um povo cordial.

De helicópio

José Horta Manzano

Já ouvi gente que chama helicóptero de helicópio – o que, aliás, fica muito simpático. Helicópio é mais harmonioso que helicóptero, desliza mais suave, com menos estrépito. Helicóptero, com esse p-t malsoante aí no meio, parece que está com o motor rateando. E aeronave de um solitário motor depende desesperadamente do bom funcionamento do dito cujo. Melhor ir de helicópio mesmo.

Doutor Bolsonaro mandou um helicópio da FAB, um daqueles fortões, grande como um ônibus, buscar a família pra assistir à festança do casamento de um dos bolsonarinhos. O noivo é aquele que se prepara pra assumir a representação do Brasil junto aos Estados Unidos da América – uma senhora responsabilidade! Como seria bom se o simples ato de se casar trouxesse sabedoria e conhecimento ao jovem esposo… Vamos, chega de devanear. Vamos pôr os pés na terra.

Os jornais se lambuzaram com a notícia. Falo da carona que o presidente ofereceu à família. Falando nisso, que família linguaruda! Um dos primos não se conteve e, deslumbrado, filmou tudo e mandou para o éter (em português moderno = fez uma live). Pronto, estava arrumada a confusão.

Tirando o grotesco da situação, restam os fatos. Agora que Oropa, França e Bahia estão a par do que aconteceu, precisou explicar. Doutor Bolsonaro foi curto e grosso: «se eu vou e tem lugar sobrando, vou mandar minha família a pé?». Quem precisa de uma explicaçãozinha é ele.

Primeiro, o helicópio não é dele, é nosso. Portanto, haja lugar ou não, regras existem e têm de ser respeitadas. Segundo, o presidente pode muito, mas não pode tudo. Num país civilizado, ocorreria de outra maneira. Sem dúvida, desde que o presidente autorizasse, os convidados teriam permissão para viajar em sua companhia. Só que teriam de pagar a passagem. É isso mesmo.

Como se calcula? Não sou eu quem dirá. A FAB tem funcionários capacitados pra esse tipo de aritmética. Que custe caro ou barato, não cabe a nós, contribuintes (ou pagadores de impostos, como preferem alguns) arcar com as despesas de transporte da família que vai aos comes e bebes oferecidos pelo bolsonarinho. Que cada um pague de seu bolso.

Falando nisso, quem será que pagou a conta da comilança? Será que foi na base da carona também? Se minha avó estivesse viva, diante do deslumbramento dos parentes, havia de recitar:

Eu não vou na sua casa
Sua casa tem ladeira
Seus cachorro tão latindo
Sua família é faladeira.

É, doutor Bolsonaro, família não se escolhe. Que remédio?

Pontos de atrito

José Horta Manzano

Ao redor do globo, há numerosas regiões onde as populações vivem em tensão crônica. Na raiz, pode estar antagonismo religioso, étnico, linguístico, político ou histórico. Pode ainda haver uma combinação de mais de um desses fatores.

O caso mais conhecido, mais midiatizado e de maior poder explosivo é, sem sombra de dúvida, o conflito que envolve Israel e seus vizinhos. Já centenária, a tensão começou a nascer à época em que começaram a chegar, vindo principalmente da Europa, imigrantes judeus. A situação naquela região é bem mais complicada que um duelo: a soma de interesses envolvidos tece uma tela emaranhada. A solução do problema ‒ se é que um dia será encontrada ‒ não é pra já.

As tensões na Irlanda do Norte, que deram origem a ondas de atentados e de assassinatos políticos no último quartel do século XX, tinham sido acalmadas desde que Irlanda e Reino Unido passaram a integrar a União Europeia. A convivência entre católicos e protestantes, entre separatistas e unionistas, tinha se tornado habitual e sem solavancos. Isso durou até que, por um descuido da maioria silenciosa que se omitiu de votar, os eleitores britânicos deram voto favorável ao Brexit.

Os britânicos e os demais europeus tomaram um susto. Mas não havia nada a fazer, que o povo havia votado. Desde então, as negociações pra fixar os termos do divórcio têm sido duras, complicadas. Afinal, um casamento de 45 anos não se desmancha assim, sem mais nem menos. Não basta cada um levar sua escova de dentes. Há uma infinidade de pontos a discutir.

O problema mais espinhoso, todo o mundo já sabia desde o começo das negociações, é a questão da fronteira entre as duas Irlandas, a do Norte e a independente. É outro exemplo de atrito regional insolúvel. A solução, seja ela qual for, pode até agradar a um lado mas certamente vai desagradar ao outro.

O único jeito de pacificar a região seria o povo britânico voltar atrás e renunciar ao Brexit. Mas, a depender de Theresa May, nem pensar. Portanto, as brasas estão sendo atiçadas na Irlanda do Norte. É só questão de tempo pra irromperem as labaredas.

Política de cotas à inglesa

José Horta Manzano

Com tantos reis e rainhas espalhados pelo mundo, é difícil entender a razão pela qual a realeza britânica fascina tanto. Qualquer fato ligado à família real é bom pra animar a mídia : um nascimento, uma separação, um discurso da rainha, um casamento. Falando em casamento, temos um este fim de semana.

Um dos netos da rainha Elizabeth vai se casar com uma jovem americana. A moça, apresentada como «negra», é na verdade mestiça, mulata clara. Tem 50% de sangue negro e 50% de sangue branco. Se não se pode dizer que é branca, tampouco se deve dizer que é negra. Não vejo por que uma das metades anularia a outra.

Abdicação de Eduardo VIII, em 1936

União fora dos padrões, na Inglaterra pudibunda do século 19, seria inimaginável. E olhe que nem precisa ir muito longe no tempo. Nos anos 1930, o rei Eduardo VIII foi forçado a abdicar o trono por insistir em se casar com uma mulher divorciada ‒ americana, por sinal. Hoje, passados oitenta anos, Charles, filho da rainha e herdeiro da coroa, divorciou-se da primeira esposa e está casado com Camila, uma divorciada. E tudo bem.

A entrada de uma mestiça na realeza inglesa vem a calhar. É de lembrar que 8% dos habitantes do reino são de origem asiática, negra ou mestiça. A futura princesa quebra a tradição de uma família real exclusivamente branca. Faz bem à imagem do país, donde a aprovação geral.

O casamento deverá ser acompanhado, pela televisão, por dois bilhões de terráqueos, uma enormidade. Cem mil turistas são esperados em Londres. Calcula-se que a venda de souvenirs e o comércio diretamente ligado ao evento movimentarão 600 milhões de euros ‒ uma bênção para uma economia castigada pelo Brexit. As bodas são excelente operação comercial, benéfica para todos.

Carl XVI Gustaf e Sylvia, reis da Suécia

Nem todos os brasileiros sabem, mas Sylvia, a rainha da Suécia, é brasileira. Filha de pai alemão e mãe brasileira, nasceu na Alemanha mas cresceu no Brasil dos 4 aos 14 anos de idade. Tem duas línguas maternas: português e alemão. Fala nossa língua como qualquer um de nós.

Apesar dessa proximidade, ninguém se interessa pelos fatos e gestos da família real sueca. Não se ouve notícia, não se publicam fotos, não se lê nada. Enquanto isso, basta um espirro da realeza londrina para a mídia se assanhar. Enfim, que é que se há de fazer? Así nos están saliendo las cosas.

O casamento do Moacir

José Horta Manzano

Num samba de 1967, Adoniran Barbosa e Osvaldo Molles contam a divertida história da cerimônia de casamento do Moacir. Descrevem a cena:

«Quando os noivos estava no artar
O padre começou a perguntar
Umas coisas assim em latim:
‘Qualquer um de vodis aqui presente
Tem arguma coisa de falar contra esses bodis?’

‘Seu padre, apara o casamento!
O noivo é casado, pai de sete rebento
Fora o que está pra vir
O pai é esse aí: o Moacir!’

Que vexame! A noiva começou a soluçar
Porque o noivo não passou no exame nupiciar
Já acabou-se a festa porque nóis descobriu
Que o Moacir era casado cinco vez lá no Estado do Rio.»

Naqueles tempos recuados, a situação era plausível. Numa época em que registros eram feitos a bico de pena e não se propagavam além dos livros do cartório, não era difícil trapacear com essas coisas. Registros não eram centralizados, o que permitia a qualquer indivíduo tirar diferentes certidões de nascimento. Casos de bigamia e até poligamia não eram raros.

Osvaldo Molles & Adoniran Barbosa

Para felicidade geral da nação, esse tempo passou. Obter documento falso ou indevido tornou-se praticamente impossível. Acredita nisso, distinto leitor? Não esteja tão convicto.

Por incrível que possa parecer, num país com alto grau de informatização, onde todos têm telefone no bolso e acesso à internet, a interconexão entre cartórios de registro civil ainda não é realidade. Cada um atua dentro de seu casulo. Não operam em rede.

Nascimentos, casamentos, divórcios e óbitos declarados num cartório permanecem lá, sem que a informação circule. A prova mais recente foi dada ontem. Ficou-se sabendo que doutor Temer, atual presidente da República, deixou de receber a pensão vitalícia a que faz jus. A suspensão do benefício vem do fato de o beneficiário não ter dado “prova de vida”.

Vamos passar por cima do fato de que é notório que o presidente continua neste vale de lágrimas ‒ o que já bastaria para cumprir a exigência burocrática. Por seu lado, aceitemos o argumento de que, presidente ou não, doutor Temer é um cidadão como os outros, sujeito às mesmas obrigações.

Vamos agora ao cerne da questão. Todo cidadão maior e vacinado tem um registro de identidade e uma inscrição no CPF. Comparando declarações de renda, o fisco chega à sofisticação de cruzar dados para desvendar fraudes. Excetuado o dinheiro que viaja em cuecas ou em malas, nenhuma transação escapa ao controle da autoridade competente. Diga-me, agora: por que absconsa razão os registros da vida civil ‒ nascimento, casamento, divórcio e óbito ‒ não são centralizados num cadastro nacional?

Para trabalhar, estudar, viajar é necessário ser titular de um documento de identidade, que só terá sido emitido a partir do registro de nascimento. Para enterrar um morto, é imprescindível ter em mãos o certificado de óbito. Gostaria de saber o que é que impede os cartórios de comunicarem esses registros a um órgão central.

A obrigação imposta aos pensionistas de se recadastrar anualmente é coisa do tempo do onça. A solução é simples e evidente. Falecido o cidadão, o cartório emitiria o certificado de óbito e, em seguida, transmitiria a informação ao cadastro central. Antes de pagar o benefício a quem de direito, cada caixa de pensões consultaria esse registro para saber se a pessoa ainda vive. Pode parecer trabalho monstruoso, mas a informatização permite que seja feito automática e rapidamente.

No dia em que essa circulação de informações for posta em prática, nossos velhinhos se verão livres desse anacrônico constrangimento anual, bom fruto de nosso famigerado espírito burocrático. A inexistência de registro de óbito deveria ser, ipso facto, prova de vida. A não ser que o falecido tenha sido enterrado sem autorização. Bom, aí já é outro departamento. É caso de polícia.

Baú de memórias ‒ 6

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Mais uma experiência inacreditável que resgatei sem querer bem lá no fundo do meu baú de memórias. Como o último tema que abordei foi o do marketing, a lembrança veio por associação. Sei que pode parecer ficção, mas meus mais de 20 anos trabalhando como pesquisadora de mercado e de opinião pública estão repletos de fatos inusitados como o que vou relatar.

Eu estava envolvida na época com um levantamento qualitativo dos hábitos de consumo de uma marca de preservativo masculino. O fabricante desejava saber para que tipo de práticas sexuais ele era mais utilizado por cada segmento de público e qual o grau de satisfação dos usuários com o desempenho do produto em práticas não-convencionais.

Como o tema era para lá de delicado, optamos por realizar entrevistas em profundidade diretamente na residência dos respondentes ou em outro local em que eles se sentissem à vontade. Como também era difícil recrutar interessados em expor sua vida íntima para desconhecidos, decidimos trabalhar com base em indicações – ou seja, uma pessoa já entrevistada indicava amigos ou conhecidos que igualmente se dispusessem a falar sobre suas práticas e fantasias sexuais.

O público-alvo era extenso: casais heterossexuais tradicionais com e sem filhos, casais homoafetivos, profissionais do sexo, homens e mulheres, solteiros e divorciados, jovens e idosos. Não dá para resumir em poucas linhas as descobertas que fizemos em cada um desses segmentos. Só posso dizer que eu e meus colegas pesquisadores passamos por um bom período de muitas risadas e espantos.

Uma de minhas entrevistadas era uma mulher casada, fissurada em sexo anal. Como o marido se opunha intransigentemente à prática, ela viu-se forçada a “adotar” um amante mais jovem e mais liberal e com ele se encontrava regularmente. O caso nos interessava bastante, já que o preservativo tinha para ela dupla finalidade: evitar uma gravidez indesejada nas relações com o marido e proteger-se de doenças venéreas que evidenciassem uma possível traição. Além disso, para cada parceiro, os requisitos quanto ao desempenho do produto eram bastante distintos.

A entrevista foi longa e animada. Muito simpática e descolada, ela não opôs nenhuma resistência às perguntas mais invasivas e nem mesmo ao fato de a entrevista ser gravada. Quando terminou, agradeci a gentil acolhida e fiz questão de reassegurar-lhe que as informações cedidas jamais seriam divulgadas sem estrita permissão dela.

Cerca de um mês depois da entrevista, já envolvida com outros temas de pesquisa e sem me lembrar da conversa que com ela tinha tido, fui convidada para o casamento da filha de uma amiga de longa data. A igreja era pequena e estava lotada. Após a cerimônia, entrei na fila dos cumprimentos aos noivos. Minha amiga estava postada ao lado do casal, ajudando-os a recepcionar os convivas. Estrangeira e muito divertida, ela se preocupava em demonstrar intimidade com as regras de descontração dos brasileiros mesmo em eventos formais.

Quando chegou minha vez, ela me abraçou, comentou entusiasmada alguns detalhes da cerimônia e me pegou pelo braço, dizendo: “Vem comigo, quero lhe apresentar uma pessoa”. Acompanhei-a até um salão lateral da igreja, onde eram servidos champanhe e bolo. Várias pessoas conversavam animadamente de pé, numa rodinha. Minha amiga invadiu a roda me arrastando atrás e toda orgulhosa me apresentou a um casal: “Quero que você conheça fulana, minha melhor amiga desde que cheguei ao Brasil, e o marido dela”.

Quando ergui os olhos, não pude acreditar no que estava prestes a acontecer. Diante de mim, pálida e rígida como um cadáver, lá estava a mulher que eu havia entrevistado um mês antes. Tive apenas alguns segundos para me perguntar qual seria a melhor forma de evitar um constrangimento fatal para todos os circunstantes.

Paradoxalmente, foi o olhar de estarrecimento que ela me lançou que providenciou a pista de que eu precisava. A mensagem era clara: era preciso que eu comunicasse corporalmente, em absoluto silêncio, que ela não corria risco nenhum de ser desmascarada.

Num segundo, fez-se luz dentro de mim. Adotei uma cara de estudada paisagem, estendi a mão profissionalmente, esbocei um sorriso e disse com toda a serenidade que me foi possível: “Muito prazer!”

Pude acompanhar com os olhos cada um de seus músculos se distendendo e a respiração voltando ao normal. As cores logo voltaram a seu rosto e seu olhar agora era de gratidão. Ela sorriu de volta e se encarregou de me apresentar ao marido.

Deixei passar alguns segundos e escapuli à francesa, por uma porta lateral, dando graças mentalmente por ninguém ter se apercebido da saia justa. Nunca mais a vi, mas tenho a certeza de que, se eu precisar um dia de alguém que testemunhe a favor do meu profissionalismo ou da confiabilidade dos pesquisadores em geral, ela será a pessoa certa.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Casamento à beira-mar

José Horta Manzano

Você sabia?

Bagues 2Há de ter sido lindo, muito romântico. O noivo já não era tão jovem, mas pouco importa: o que conta é o simbolismo da união. Troca de alianças é sempre momento marcante.

A cerimônia foi simples e durou apenas 15 minutos. O histórico e aprazível burgo de Cananeia, no litoral sul de São Paulo, foi escolhido como palco. A bênção aos nubentes foi concedida por uma mãe de santo.

Não sei se a tevê brasileira terá dado a notícia. Na mídia escrita, não vi nada. Foi preciso consultar o jornal regional italiano Gazzetta di Parma pra ficar sabendo.

Quem era o casal? Quanto à noiva, a notícia pouco diz. Já o noivo é mais conhecido – trata-se de signor Cesare Battisti, notorio foragido da justiça italiana, país onde foi condenado, à revelia, à prisão perpétua por participação em quatro homicídios.

CananeiaÉ exatamente aquele a quem nosso guia garantiu asilo político, em petulante escárnio à democracia italiana. Ainda pior fica o quadro se levarmos em conta que esposa, filhos e netos de nosso ex-presidente são cidadãos daquele país.

Sutileza, inteligência e coerência nunca foram características daquele que um dia imaginou ficar registrado na História do Brasil como salvador da pátria.

Que goze, abastado e tranquilo, sua velhice. E que nos deixe em paz.

Lua de mel em Paris

José Horta Manzano

Você sabia?

Lua de mel em Paris! Taí um sonho que, acalentado por muitos, só chega a ser realizado por um punhadinho de sortudos. Milhões de apaixonados aspiram a celebrar o casamento ou, pelo menos, a festejar o enlace com passeio de alguns dias na capital francesa.

Casamento 2Orientais são particularmente afeiçoados a esse tipo de viagem simbólica. A Europa, por si, já exerce grande atração. Mas a França ― e Paris em especial ― é o fino do fino.

Todo ano, na bela estação (entre maio e setembro), tem-se notícia de casamentos individuais ou coletivos protagonizados por turistas estrangeiros que visitam a França especialmente para isso.

Mas há um porém. De uns dez ou quinze anos pra cá, a rigidez das autoridades de imigração tem aumentado. Isso é consequência de realidades novas: terrorismo que se alastra, imigração clandestina que aumenta, taxa de desemprego que se eleva, estagnação econômica que persiste. Em resumo, o bolo tem crescido menos. Já não dá pra dividi-lo em tantas fatias como antes. Visitantes têm de convencer os controladores de que não estão vindo para ficar.

Leio hoje a (des)aventura vivida por um casal brasileiro. A notícia não diz, mas imagino que devam ter arquitetado durante meses o projeto de se casar e, em seguida, passar a lua de mel em Paris. Compraram um pacote turístico, daqueles que já incluem passagem e hospedagem. Casaram-se e, tranquilos, embarcaram para a viagem dos sonhos. Deu pesadelo.

Ao desembarcar em Paris, nosso casal de pombinhos respondeu, como se deve, ao interrogatório dos prepostos. Verificação feita, o hotel onde deveriam se hospedar foi incapaz de confirmar a reserva. Desastre! Foi a conta. Estrangeiros jovens que não mostrarem reserva de alojamento, passagem de volta e dinheiro para manter-se tornam-se imediatamente suspeitos.

Casamento 1Inflexíveis, as autoridades obedeceram ao regulamento. Não permitiram que o par saísse do aeroporto. De lá mesmo, foram despachados de volta no primeiro avião. Dá pra imaginar a decepção.

Chegando ao Brasil, os viajantes, lesados e desenxabidos, processaram a operadora de turismo. Ganharam em primeira instância, mas a empresa recorreu da sentença. Finalmente, instância superior acaba de confirmar a decisão: a companhia de viagens está obrigada a indenizar os prejudicados. Receberão quase 24 mil reais, o triplo do valor do pacote.

A decisão de justiça me parece pra lá de acertada. A operadora de turismo, usando expediente comum no Brasil, tentou fugir da responsabilidade alegando que a culpa era do hotel. Pode até ser. Acontece que os viajantes tinham assinado contrato com a operadora, não com o hotel. Portanto, será a empresa turística a responder pelos percalços ― o que não a impede de mover ação contra o hotel posteriormente.

Nossos votos de felicidade ao casal!

A polícia e o fio dental

José Horta Manzano

Setecentos anos atrás, os europeus começavam a despertar do longo período de semiletargia que hoje chamamos Idade Média. O mundo moderno engatinhava. Pouco a pouco, a necessidade de instituições formais e organizadas foi-se fazendo premente. Entre elas, a criação de tribunais.

Não havemos de esquecer que, à época, o poder eclesial abarcava tanto o espiritual quanto o secular. Um foro estável e sistemático era, assim, duplamente oportuno.

Em 1331, durante o pontificado de João XXII, foi instituído o Tribunal Rotæ Romanæ, mais conhecido como Sacra Rota, Tribunal da Rota ou simplesmente Rota. Dizem que o nome curioso tem origem na disposição dos juízes, sentados em volta de quem estivesse sendo inquirido.

Sabemos todos que o poder temporal da Igreja esgarçou-se com o passar dos séculos, reduzindo-se hoje ao território vaticano. O Tribunal da Rota, apesar disso, continua lá, firme e forte. Já não lhe cabe julgar feiticeiros, hereges ou apóstatas. Exceptuando-se crimes cometidos no interior da Santa Sé, a Rota está hoje para os fiéis como o STF está para os cidadãos brasileiros. É o tribunal máximo. Seu poder restringe-se, naturalmente, ao julgamento de transgressões do direito canônico.

Rota Romana

Entre outras atribuições, o Tribunal da Rota tem o poder de anular casamentos religiosos. Prestemos bastante atenção. O doutrina católica considera que o matrimônio é sacramento único e indissolúvel. Portanto, a Rota não tem o poder de «desfazer» ou «dissolver» casamentos. Não é um tribunal secular onde se discutem casos de divórcio. Seu único poder é de estatuir que um casamento era nulo ab initio, desde o começo. Em outras palavras, a Rota se determinado casamento foi válido ou não. Se chegarem à conclusão de que o par nunca formou um casal aos olhos da Igreja, isso significa que o casamento nunca existiu. Estarão, assim, ambos os antigos noivos livres para contrair matrimônio religioso. Sem peso na consciência.

Há uma boa dezena de razões pelas quais uma união pode ser considerada nula. Entre elas, um caso de casamento forçado, combinado contra a vontade de um dos contraentes. O caso (raro) de erro de pessoa pode também ser invocado como motivo de nulidade. Algo do tipo “pensei estar-me casando com Fulano, mas depois descobri que ele era Beltrano”. Há ainda outras motivações pitorescas. Uma razão à qual por vezes se recorre é o dolo. Configura-se o dolo quando um dos nubentes esconde voluntariamente do outro algum fato que, se conhecido, teria dissuadido o parceiro de se casar.

Cheguei a conhecer pelo menos um caso que terminou em anulação de casamento por motivo de dolo. Aconteceu nos anos 50 com pessoa que cheguei a conhecer. Para encurtar a história, digo logo: na noite de núpcias o noivo descobriu que a noiva não era mais virgem. Teimoso, o marido fez questão de apelar para o Tribunal da Rota Romana para reclamar a anulação do casamento. Custou-lhe anos de esforço, muito dinheiro, viagens a Roma. Mas conseguiu. Aos olhos da Igreja, voltou a ser solteiro. A história escandalizou metade da cidade, mas os tempos eram outros.

Mais de meio século se passou. Sou incapaz de dizer se a Rota ainda considera que a não virgindade da noiva seja alegação válida para pedido de anulação de casamento. Na cabeça da maioria da população, certamente não é mais assim.

.:oOo:.Bagues 3

Com espanto, li hoje no Correio Braziliense que um edital lançado pela Polícia Civil da Bahia acendeu uma polêmica danada. Um concurso para preenchimento de 600 vagas foi anunciado. Entre as exigências estão, naturalmente, acuidade visual, boa saúde, senso cromático (ausência de daltonismo), equilíbrio psíquico. Muito mais assombrosa é a quase exigência de … virgindade. Comprovada por exame ou assinada e carimbada por médico com registro no CRM.

Desconfiado de que se tratasse de primeiro de abril, fui conferir. Pois não é que a Folha de São Paulo confirma?

E eu que pensava que homens e mulheres eram considerados iguais perante nossa Constituição. Fico matutando como é que comprovarão micoses, fungos e outros bichos nos candidatos do sexo masculino. Quiçá uma declaração de virgindade emitida por oficial de justiça com fé pública e firma reconhecida?

A coisa tá preta, como diria o outro! Fosse no Afeganistão ou na Arábia, daria para entender. No país do fio dental, do carnaval e do samba, pega mal.

Brasil, país de todos. Desde que sejam virgens, naturalmente.