Reinfecção

José Horta Manzano

Enquanto nossos míopes e empacados terraplanistas tupiniquins persistem em desdenhar do coronavírus tratando-o de «vírus chinês», a nomenclatura internacional já se alargou.

A turma dos devotos, naturalmente, não ficou sabendo. Isso ocorre por eles viverem em comunidade fechada e terem como fonte única de informação as notícias falsas que circulam entre eles em circuito fechado. O único complemento de informação que lhes traz algum enriquecimento são as prodigiosas lives presidenciais. O empacamento fica, assim, explicado.

Além-fronteiras, a imagem da China como lugar de origem da epidemia já começa a se dissipar, substituída pela preocupação com as novas variantes surgidas de mutações do vírus.

Essas variantes já receberam nome. Como o vírus ‘chinês’ do ano passado (que, aliás, ninguém sabe até hoje como apareceu), estas novas cepas são conhecidas como ‘britânica’, ‘sul-africana’ e ‘brasileira’.

Para a variante britânica, já ficou acertado que as vacinas que estão sendo aplicadas na Europa (Pfizer, Moderna e Astra-Zeneca) são eficazes. Para as variações brasileira e sul-africana, no entanto, a eficácia das vacinas ainda está sendo estudada. O que se sabe é que ambas as mutações são mais contagiosas que o vírus originário. Suspeita-se que até quem já teve covid pode ser reinfectado por uma dessas novas variantes. Formidável problema.

Pode ser apenas coincidência, mas é interessante notar que as variantes se desenvolveram em países que, no início, desdenharam da epidemia e deixaram o vírus correr à solta. Reino Unido e África do Sul se emendaram, mas o Brasil oficial continua fazendo pouco caso. Vamos ver no que dá.

A sinceridade do doutor

José Horta Manzano

A contaminação de Bolsonaro demonstra que sua atitude diante da pandemia era – e continua sendo – sincera. No trato da pandemia, nunca houve marketing nem caso pensado. Ele realmente acreditava que a doença não passasse de “gripezinha”.

Todos ressaltam o desmazelo com que, nos últimos meses, continuou a acercar-se de assessores, visitantes e jornalistas, em atitude considerada por muitos como criminosa por expor toda essa gente a eventual contágio.

Mas há que ter em mente o outro lado da medalha, que mostra que doutor Bolsonaro não acreditava na periculosidade do vírus: ele deixou que assessores, visitantes e jornalistas se aproximasse dele como se vivêssemos tempos normais. Nunca demonstrou ter medo de ser contaminado.

Ao deixar-se achegar, o presidente tanto arriscou transmitir a doença a terceiros (que era o risco que todos apontavam) quanto se abriu ao contágio. Acreditava, de verdade, que a doença não passasse de “gripezinha” inventada por comunistas malvados que queriam destroná-lo. Estava convencido de que, com seu “passado de atleta”, tinha corpo fechado.

O ser humano é dotado de instintos; um deles, talvez o mais básico, é o de sobrevivência. Se o doutor – estressado e idoso – tivesse pressentido o perigo que corria, teria se resguardado desde a chegada da epidemia, que ninguém é besta. Não o fez.

Está aí, salvo melhor juízo, a prova da absoluta sinceridade do presidente. É que sua mente funciona em circuito fechado, impermeável a todo ensinamento. Sua maneira de ver o mundo está cristalizada; toda esperança de mudança é vã. Quem estiver esperando que ele se regenere assim que escapar dessa, que tire o cavalo da chuva. Desse mato, não sai coelho.

Comida por quilo

José Horta Manzano

Tive uma tia que, já velhinha mas ainda esperta, almoçava fora todos os dias. Não se pode dizer que cozinhar tenha sido uma de suas paixões. Assim sendo, aproveitou, enquanto foi possível sair à rua sozinha, pra frequentar um restaurante «por quilo» que ficava perto.

Todos os dias, quando faltavam quinze para as onze, lá estava ela à porta do restaurante esperando a hora. Às onze em ponto, assim que abriam, ela pegava o prato e rapidinho ia se servir. Fazia questão de ser a primeira. Dizia que não gostava de comer «comida mexida». Não sei se terá sido em virtude da prudência alimentar, mas ela morreu centenária.

Na opinião de um especialista em culinária cujo blogue li estes dias, o coronavírus vai acabar com restaurante por quilo. Segundo ele, vão fechar todos. É verdade que, quando a gente pensa, o desfile de clientes diante das vasilhas espalha abundante sortimento de vírus, bactérias e outros bichinhos que fatalmente vão aterrissar sobre a comida. Não tem como escapar. Nem usando máscara e luva: um vírus mais ligadão pode até pular do braço do freguês direto no feijão. Te esconjuro!

O desaparecimento de estabelecimentos onde se come razoavelmente bem por preço módico seria uma tristeza. Poria muita gente fina em apuros. Mas o ser humano tem incrível capacidade de se adaptar. Novos caminhos aparecerão. O futuro dirá quais são.

Um detalhe linguístico me parece divertido. Imagine um atacadista que vende pregos. Um cartaz na parede adverte: «Venda por quilo». Todos entendem que o comerciante não vende pequenas quantidades; a medida é o quilo. O freguês tem de comprar um quilo, dois, três ou mais. A condição é clara.

Agora diga-me por que raios está escrito que o restaurante vende comida «por quilo»? Não é verdade. Ele não exige que se compre um quilo, dois, três ou mais. Na realidade, ele vende comida «por peso», que não é exatamente a mesma coisa. O preço é expresso em reais por kg, mas o cliente não é obrigado a comprar quilos; pode levar a quantidade que quiser.

Parece esquisito, mas é só falta de costume: «por peso» exprime melhor o princípio. Minha velha tia nunca devoraria comida aos quilos. Sua medida era o que a magra pensão lhe permitia; não podia passar de R$ 3,50 por refeição. Contadinhos.

Timoneiro

José Horta Manzano

Doutor Bolsonaro trata de maneira nojenta o povo que o elegeu. A cada passeio, ele se torna foco de contágio. Aperta a mão de um, limpa o nariz, aperta a mão de outro, passa mão no cabelo, roça a mão de um terceiro. E assim vai espalhando vírus e micróbios pra cima de gente simples e ingênua. Tira vírus da mão de um, deposita vírus na mão do outro. Um nojo.

Embora seu comportamento contribua para acelerar a propagação do vírus, a transmissão da doença está longe de suas preocupações. Como se diz em língua de casa, o homem não está nem aí para os outros.

Quando questionado sobre esse comportamento de alto risco, sai-se com um «Ninguém pode me tirar o direito de ir e vir». Como se vê, só consegue pensar nos direitos que tem, sem se dar conta de que os demais também têm direitos. Entre eles, o de serem protegidos do contágio.

O moço é de um egoísmo tenebroso. Se já não conseguia assumir o encargo de presidir a nação em tempo normal, com a pandemia ficou pior. Recordo uma sutil máxima latina que cai como luva para explicar o que ocorre.

As últimas do doutor

José Horta Manzano

Teto baixo
Outro dia, apontei a baixa altura do pé direito dos salões de Brasília como causa (ou, pelo menos, agravante) do ambiente de opressão que reina por lá. O semblante torturado de nosso presidente transmite angústia contagiante.

Repare o distinto leitor na imagem tomada quando do pronunciamento que doutor Bolsonaro fez na terça-feira, 24 de março. Falo daquele em que Sua Excelência atacou os governadores, a imprensa e mais meio mundo, além de aconselhar os brasileiros a ignorarem o autoconfinamento. O teto do cômodo é aflitivamente baixo ou será impressão minha?

Teleprompter
Em primeiro plano, aparece o ponto eletrônico da marca Autoscript, um aparelho chamado teleprompter. Um equipamento dessa categoria não sai por menos de 15 mil dólares. É que nosso bom doutor, deixado sem uma cola escrita, é incapaz de se exprimir com um mínimo de coerência. Sem essa muleta, o homem seria ainda mais perigoso do que, de natureza, já é. É por isso, pra não gaguejar nem dar vexame gordo, que ele lê o discurso que vai desfilando pela tela do prompter.

Doutor Bolsonaro, o pé direito e o teleprompter

Confinamento
Nosso doutor quer que o recolhimento à residência se restrinja aos idosos – categoria da qual, aliás, ele faz parte. Segundo seu raciocínio emperrado, dado que só os velhos costumam desenvolver quadro grave do Covid-19, são eles os únicos a terem de cumprir quarentena.

Ora vejam. Não lhe passou pela cabeça que crianças podem ser portadoras sãs. Quando apanham o vírus, permanecem assintomáticas, mas podem contaminar. Crianças na escola, tanto em classe quanto no pátio de recreio, correm, brigam, se agarram, se abraçam. Um único aluninho atingido pelo vírus é capaz de contaminar toda a classe. Em seguida, cada um levará a doença pra seu respectivo lar. Adultos e idosos entram na fila do contágio – uma fila que avança rápido. E a doença vai tomando conta do país.

E pensar que tem gente aplaudindo a fala do presidente.

Templos
O último boletim oficial indica que, na França, 25.233 cidadãos já foram contaminados e 1.331 já sucumbiram. No país, o Covid-19 mata atualmente uma pessoa a cada 4 minutos. Não se sabe direito como o vírus entrou no país. O que se sabe é que o foco inicial de irradiação da epidemia apareceu em Mulhouse, pequena cidade da Alsácia, região descentrada, nos confins do país, perto da fronteira com a Suíça e com a Alemanha. À primeira vista, não é lá que se esperaria encontrar concentração de contaminados.

Investigações feitas, descobriu-se que os primeiros contágios ocorreram num templo neopentecostal. Um encontro especial dos adeptos fez que gente tenha vindo não só do lugar, mas de regiões vizinhas. Naquele espaço apinhado, pelo menos um dos fiéis havia de estar contaminado. A partir do primeiro contágio, a doença se alastrou. A região da Alsácia, que normalmente não é ponto concorrido de visitantes do mundo todo, tem hoje tantos doentes quanto a região de Paris. Até os países próximos (Suíça, Alemanha e Luxemburgo) têm acolhido doentes franceses da região, visto que as abarrotadas UTIs locais não dão mais conta de receber pacientes novos.

Doutor Bolsonaro assinou decreto permitindo que templos e igrejas recebam fiéis que, imagina-se, darão as mãos e se abraçarão. É que o mesquinho interesse eleitoral fala mais alto. Pouco importa ao doutor que os templos se transformem em ponto de irradiação da doença, acarretando sofrimento e morte. O que interessa é agradar aos adeptos, que ele enxerga como sua base eleitoral.

Vamos torcer para que nenhum fiel contagiado assista a culto nenhum. Se isso ocorrer, já se sabe qual pode ser o resultado.

Mentes embotadas

José Horta Manzano

É impressionante como a ignorância dá filhotes. Não se passa uma semana sem que o Planalto lance nova barbaridade, filha da ignorância. A mancada de hoje bate às portas da crueldade. É negação de um dos princípios básicos da democracia: o Estado tem o dever de amparar os membros mais frágeis da sociedade.

Algumas dezenas de conterrâneos nossos vivem nas cercanias de Wuhan, o ponto central da epidemia de pneumonia viral que está assustando o planeta. Nenhum deles está lá a mando do governo; cada um terá razões pessoais: paixão, estudo ou trabalho. Todos os dias, nossos patrícios veem amigos expatriados sendo recolhidos pelo país de origem. Os EUA, o Japão, a Alemanha, a França, a Espanha, a Bélgica, a Holanda, a Itália, a Suíça e muitos outros já cuidaram de repatriar seus filhos e tirá-los do olho do furacão.

Nossos conterrâneos, sentindo-se abandonados, juntaram-se e produziram um vídeo conjunto, em que rogam ao presidente da República que dê um jeito de tirá-los de lá. Sem ajuda, não conseguem sair. Os transportes estão todos paralisados; nada de trem, ônibus ou avião. Estão de mãos atadas, à mercê da boa vontade de doutor Bolsonaro. Sabem o que ele fez?

Nosso solerte presidente declarou-se «muito preocupado». Foi só. Negou ajuda aos patrícios. Disse que nenhum avião será encomendado pelo governo brasileiro, nem avião da FAB, nem fretado. Alegou que custa muito caro. Tentou escapar da responsabilidade ao explicar que precisa da aprovação do Congresso. (O Congresso não precisou aprovar a requisição do jato da FAB que levou um auxiliar de ministro à Índia – mas essa é uma outra história.)

Bolsonaro encerrou o assunto e matou a charada ao declarar-se receoso de que aquele punhado de expatriados venha contaminar 200 milhões de brasileiros. Não disse, mas todos entenderam: «Foram para esse país comunista porque quiseram; agora, que se virem; não tenho nada que ver com isso.»

Não sei como Donald Trump, Angela Merkel e outros fizeram para evitar contaminar milhões de cidadãos seus ao repatriar os conterrâneos em dificuldade. Deram um jeito. Sei, no entanto, como fez a França. Requisitou uma espécie de colônia de férias, à beira-mar, desocupada nesta época do ano. Conforme vão chegando os franceses vindos de Wuhan, vão sendo acomodados no lugar. Hoje já chegou o segundo avião, com mais uma leva de cento e tantas pessoas. Vão ficar lá por 14 dias, que é o prazo após o qual não há mais risco de contágio. Alimentados e bem tratados, podem circular dentro do perímetro da colônia; só não podem sair. Concordo que não é a maneira mais agradável de passar férias, mas é sempre melhor do que ficar confinado dentro de casa na China.

Os aviões fretados pela França trazem também cidadãos de países vizinhos. Belgas, holandeses e luxemburgueses estão sendo trazidos assim. O Brasil tem vizinhos que, muito provavelmente, têm cidadãos perdidos naquela lonjura. Nestas horas, a prática diplomática ensina que se deve consultar Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago e propor uma ‘rachadinha’ – no bom sentido, naturalmente. Cada uma paga na proporção do número de cidadãos repatriados. O avião faz escala aqui, depois ali e acolá até chegar ao destino final definido pelas autoridades sanitárias brasileiras.

Bom, “isso aí” é o que ocorreria se tivéssemos um governo normal. Desgraçadamente, não temos. Portanto, os conterrâneos desgarrados que se virem, que o governo está se lixando procês.

E parem com essa história, que já deu. Agora, silêncio, porque os graúdos do Planalto estão preparando a próxima live. Pô! Essas picuinhas de brasileiro em país comunista atrapalham pra caramba, taoquei?