Nunes, Mendonça e Zanin

José Horta Manzano

Vale a pena anotar como se comporta profissionalmente cada um dos três ministros do STF entronizados mais recentemente. Refiro-me a Nunes e Mendonça, nomeados por Bolsonaro, e a Zanin, nomeado por Lula.

Logo ao emitir seus primeiros votos, Zanin deixou a plateia de queixo caído. Seu posicionamento em matéria de entorpecentes, de homofobia e de furto famélico foi ducha fria para os ardores progressistas da militância lulopetista. Quem esperava dele um comportamento de ‘pasionaria’ deu com os burros n’água.

Já os indicados por Bolsonaro, que oficiam há mais tempo no STF, jamais surpreenderam ninguém. Desde o primeiro voto, posicionaram-se rigorosamente na linha de interesse daquele que os nomeou. Como cães de guarda, servem aos interesses do bolsonarismo.

Os votos de Mendonça e Nunes costumar divergir do voto dos colegas. Os dois não parecem se importar em se posicionar às vezes contra o bom senso. A obediência cega a um chefe destituído surge como objetivo obstinado, atitude que, no distinto público, levanta certa inquietação.

Cabe a curiosidade de saber por que razão, apesar de estarmos na era pós-bolsonárica, Mendonça e Nunes persistem na reverência ao antigo “chefe”. Será por convicção ou por outro motivo?

E Zanin, por que razão ousa se posicionar no campo oposto ao do cliente (Lula), que ele defendeu por tantos anos? Será por convicção ou por outro motivo?

Quanto a Zanin, me parece que ele aposentou a vida de advogado. Ela entrou no passado e a página está virada. Agora, abrigado sob o manto de magistrado, seus votos são ditados pela consciência, sem conexão sistemática com o ideário de antigos clientes. Daí a disparidade de vistas entre o velho lulismo e o nascente “zanismo”.

Quanto a Mendonça e Nunes, seus votos mostram persistente apego ao antigo chefe. É compreensível que, no geral, apoiem causas conservadoras, mas o julgamento dos atos do 8 de Janeiro é outra coisa. O que está em jogo estes dias não tem a ver com pautas de costumes, como homofobia, racismo ou aborto. Está-se avaliando a que ponto a depredação dos palácios do governo revelou-se parte de um amplo projeto de golpe de Estado – fracassado.

É perturbante a insistência com que Mendonça e Nunes tentam desconstruir a tese aceita por todos os outros ministros. Fica evidente que a tentativa de minimizar os acontecimentos e apresentá-los como um passeio dominical é uma estratégia para beneficiar o chefe que, mais dia menos dia, estará no banco dos réus pelo mesmo motivo.

Em resumo, a atitude dos que foram nomeados pelo capitão é a de quem deve favor a alguém mais importante. Agem como agiriam integrantes de uma estrutura mafiosa, baseada em fidelidade canina e submissão absoluta, regime no qual o menor sinal de infidelidade pode ser punido com rigor.

Ainda bem que são só dois.

Quer enganar quem?

São Jorge
padroeiro da Inglaterra, da Geórgia, de Veneza, de Barcelona

José Horta Manzano

Os cidadãos que aderem a uma comunidade neopentecostal são bem-intencionados. Costumo compará-los aos cristãos de dois milênios atrás, que, correndo risco de vida, seguiam os apóstolos e os profetas da nova fé.

Os primeiros cristãos não eram iluminados. Eram pessoas desgostosas da devassidão nos usos e costumes da época, que procuravam um caminho puro para a salvação da própria alma.

Essa fuga da depravação tem sido o motor de cisões, tanto no seio do cristianismo como em outras religiões. A Reforma – o grande cisma do cristianismo do século 16 – é bom exemplo.

Voltemos a nossos neopentecostais, mais conhecidos como evangélicos. As insistentes acusações de enriquecimento ilícito feitas a alguns bispos e apóstolos menos escrupulosos não devem ser estendidas aos fiéis. A cupidez de um autossagrado bispo não implica forçosamente a culpabilidade do rebanho. Além disso, tenho certeza de que nem todos os chefes são encharcados de avidez ou de cobiça.

Se os evangélicos aderiram em peso a Bolsonaro em 2018, foi justamente porque ele encarnava o herói puro e disposto a combater o bacanal em que se haviam transformado os altos círculos da República. Era um São Jorge descido dos céus, com lança e cavalo, pronto a aniquilar o mal, restaurar o bem e repor o país de volta nos trilhos. Em peso, votaram no capitão.

Pouco inteligente, o atual presidente acreditou (e, ao que parece, continua a acreditar) que uma imersão no Rio Jordão, uma genuflexão diante de um bispo evangélico e uma visita a um e outro templo bastassem para satisfazer a clientela neopentecostal. Incapaz de lidar com os conceitos de aparência e de realidade, o capitão não se dá conta de que seu comportamento não condiz com a simpatia que diz ter pela fé e pelos ideais do eleitorado evangélico.

Passear de jetski e dançar funk cercado de mulheres em trajes menores enquanto infelizes baianos e mineiros eram castigados por mortíferas enchentes foi atitude escandalosa para os brasileiros. Para o contingente de evangélicos que ainda conservavam um restinho de crença no ‘São Jorge’ caipira, foi ultrajante.

A torrente de palavrões que jorra da boca do presidente a qualquer tempo e em qualquer ocasião é ofensiva para ouvidos comuns. Para ouvidos evangélicos, há de ser nefanda, insuportável, abominável.

Não é surpreendente que cada nova pesquisa mostre a erosão da popularidade do capitão no segmento que um dia aderiu em peso a sua candidatura.

Os neopentecostais não são um bloco de parvos que nada escuta e nada enxerga além da palavra do pastor. Longe de serem extraterrestres, são gente normal, que leva vida normal, que age normalmente. Dormem, acordam, comem, trabalham, conversam, se deslocam, viajam, se informam como todos os demais.

Têm uma visão mais rigorosa do que deve ser o comportamento do homem na sociedade – e é aí que a porca torce o rabo. O comportamento do capitão está a anos-luz da fé que ele diz professar. Uma coisa não bate com a outra; e a dissonância é tão flagrante, que não escapa a ninguém.

A conclusão, não é difícil tirar. Três longos anos de Bolsonaro no topo da República nos ensinaram que o personagem é assim, não mudou até hoje, não mudará nunca. Será sempre boca-suja (muito suja!), mentiroso, não-confiável, vingativo, nepotista, ocioso. São defeitos que batem de frente com a fé evangélica. Fiel nenhum quer ter como dirigente máximo um indivíduo com defeitos de tal maneira contrários à sua doutrina.

A consequência é evidente. O capitão não engana mais ninguém. Para os que apostam na subversão, na violência e na anarquia, ele continua sendo o candidato ideal. Já o apoio dos evangélicos, atualmente em erosão, tende a se liquefazer.

Bolsonaro periga chegar à eleição com um balaio de votos ainda mais magro que hoje.

O fim

José Horta Manzano

A agilidade da informação, porporcionada pela internet, é responsável por profundas mudanças no comportamento dos indivíduos e na organização da sociedade.

É verdade que a Revolução Francesa já tinha mostrado o caminho. Só que não é fácil promover mudança quando se vive sob regime repressivo. Durante os séculos 19 e 20, praticamente todos os povos do planeta viviam sob regime autoritário – uns mais, outros menos. Nas Américas, com exceção dos EUA, golpes de Estado e ditaduras estavam na ordem do dia. Na Europa, o tom foi dado por dirigentes de mão de ferro, como Napoleão, Salazar, Stalin, Hitler, Mussolini, Franco, pra citar os mais importantes.

Atualmente, a impressionante penetração da informação, se não eliminou, pelo menos reduziu o risco de ruptura das instituições e de surgimento de salvadores da pátria.

A queda de Donald Trump, derrubado graças à resistência da grande imprensa e à circulação da informação pelas redes sociais, serve de alerta para todos os candidatos a ditador, sejam eles quais forem. Se caiu Trump – figura marcante que exalava autoconfiança e infundia segurança –, qualquer um pode cair.

Restolho

A derrota do exótico dirigente americano deve-se, sim, ao vigor das instituições de seu país; mas teria sido praticamente inviável se ainda estivéssemos meio século atrás, num tempo em que a informação circulava a passo de tartaruga.

É um alívio constatar que o surgimento desse tipo de personagem mal-intencionado está ficando cada dia mais difícil. Quanto mais adiantado for o país, menor será o risco. Trump já se foi, assim como o italiano Salvini já tinha ido. A Rússia e a China não têm jeito. São países que nunca conheceram a democracia; vai demorar.

Aqui no Brasil, sobrou um restolho(*). O risco de uma guinada autocrática desse estropício fica cada dia mais distante. Aos poucos ele vai se esbagaçar. Com o passar dos meses, vai revelando ser apenas um péssimo governante que faz malabarismos para escapar da cadeia. Já vimos esse filme e sabemos como acaba. The End.

Nota 1
(*)Restolho, palavra pouco utilizada atualmente, aparece há mil anos em textos portugueses. É termo ligado à agricultura, atividade que, a nossa civilização urbana, parece distante. Restolho é a palha seca que sobra no campo depois de terminada a ceifa. Vem de um hipotético latim vulgar *restuculum, através do espanhol restojo.

Foi usada aqui em sentido metafórico com o sentido de o resto, o que não tem serventia, o que não serve mais pra nada. É sinônimo de rebotalho.

Casa com telhado de colmo (restolho)

Nota 2
Não é verdade que restolho não sirva mais pra nada. Durante milênios, serviu para cobrir a casa dos camponeses. Ainda hoje, há muito cottage e muito chalé charmoso coberto com essa palha. Na função de telhado, o restolho se diz colmo.

100.000 mortos

José Horta Manzano

“Construiu-se essa tragédia porque desde a eclosão da pandemia no País o presidente Jair Bolsonaro adotou um comportamento aviltante diante da maior dor sofrida pelos brasileiros em mais de um século. Por tudo o que se viu e ouviu, infortúnio maior não houve para a Nação do que ter na Presidência um líder tão incapaz e indiferente em momento tão grave da história nacional.

Capa do Estadão, 8 agosto 2020.

Não se sabe se Jair Bolsonaro um dia sofrerá sanções políticas ou jurídicas por seu descaso. Mas ele deveria temer pelo que pode vir a sofrer se acaso experimentar um despertar de consciência adiante.”

Trecho de editorial do Estadão, 8 agosto 2020.

Idiota à brasileira

Adriano Silva (*)

Ele não faz trabalhos domésticos. Não tem gosto nem respeito por trabalhos manuais. Se puder, atrapalha quem pega no pesado. Trata-se de uma tradição lusitana, ibérica, reproduzida aqui na colônia desde os tempos em que os negros carregavam em barris, nos ombros, a toilete dos seus proprietários, e eram chamados de “tigres” – porque os excrementos lhes caíam sobre as costas, formando listras. O Perfeito Idiota Brasileiro, ou PIB, também não ajuda em casa. Influência da mamãe, que nunca deixou que ele participasse das tarefas – nem mesmo pôr ou tirar uma mesa, nem mesmo arrumar a própria cama. Ele atira suas coisas pela casa, no chão, em qualquer lugar, e as deixa lá, pelo caminho. Não é com ele. Ele foi criado irresponsável e inconsequente. É o tipo de cara que pede um copo d’água deitado no sofá. E não faz nenhuma questão de mudar. O PIB é especialista em não fazer, em fazer de conta, em empurrar com a barriga, em se fazer de morto. Ele sabe que alguém fará por ele. Então ele se desenvolveu um sujeito preguiçoso. Folgado. Que se escora nos outros, não reconhece obrigações e adora levar vantagem. Esse é o seu esporte predileto – transformar quem o cerca em seus otários particulares.

O tempo do Perfeito Idiota Brasileiro vale mais que o das demais pessoas. É a mãe que fura a fila de carros no colégio dos filhos. É a moça que estaciona em vaga para deficientes no shopping. É o casal que atrasa uma hora para um jantar com amigos. As regras só valem para os outros. O PIB não aceita restrições. Para ele, só privilégios e prerrogativas. Um direito divino – porque ele é melhor que os outros. É um adepto do vale-tudo social, do cada um por si e do seja o que Deus quiser. Só tem olhos para o próprio umbigo e os únicos interesses válidos são os seus.

O PIB é o parâmetro de tudo. Quanto mais alguém for diferente dele, mais errado esse alguém estará. Ele tem preconceito contra pretos, pardos, pobres, nordestinos, baixos, gordos, gente do interior, gente que mora longe. E ele é sexista pra caramba. Mesma lógica: quem não é da sua tribo, do seu quintal, é torto. E às vezes até quem é da tribo entra na moenda dos seus pré-julgamentos e da sua maledicência. A discriminação também é um jeito de você se tornar externo, e oposto, a um padrão que reconhece em si, mas de que não gosta. É quando o narigudo se insurge contra narizes grandes. O PIB adora isso.

O PIB anda de metrô. Em Paris. Ou em Manhattan. Até em Buenos Aires ele encara. Aqui, nem a pau. Melhor uma hora de trânsito e R$ 25 de estacionamento do que 15 minutos com a galera do vagão. É que o Perfeito Idiota tem um medo bizarro de parecer pobre. E o modo mais direto de não parecer pobre é evitar ambientes em que ele possa ser confundido com um despossuído qualquer. Daí a fobia do PIB por qualquer forma de transporte coletivo.

Outro modo de nunca parecer pobre é pagar caro. O PIB adora pagar caro. Faz questão. Não apenas porque, para ele, caro é sinônimo de bom. Mas, principalmente, porque caro é sinônimo de “cheguei lá” e “eu posso”. O sujeito acha que reclamar dos preços, ou discuti-los, ou pechinchar, ou buscar ofertas, é coisa de pobre.

E exibe marcas como penduricalhos numa árvore de natal. É assim que se mostra para os outros. Se pudesse, deixaria as etiquetas presas ao que veste e carrega. O PIB compra para se afirmar. Essa é a sua religião. E ele não se importa em ficar no vermelho – preocupação com ter as contas em dia, afinal, é coisa de pobre. O PIB também é cleptomaníaco. Sua obsessão por ter, e sua mania de locupletação material o levam a roubar roupão de hotel, garrafinha de bebida do avião e amostra grátis de perfume em loja de departamento. Ele pega qualquer produto ofertado numa degustação no supermercado. Mesmo que não goste daquilo. O PIB gosta de pagar caro mas ama uma boca-livre.

E o PIB detesta ler. Então este texto é inútil, já que dificilmente chegará às mãos de um Perfeito Idiota Brasileiro legítimo, certo? Errado. Qualquer um de nós corre o risco de se comportar assim. O Perfeito Idiota é muito mais um software do que um hardware, muito mais um sistema ético do que um determinado grupo de pessoas.

Um sistema ético que, infelizmente, virou a cara do Brasil. Ele está na atitude da magistrada que bloqueou, no bairro do Humaitá, no Rio, um trecho de calçada em frente à sua casa, para poder manobrar o carro. Ele está no uso descarado dos acostamentos nas estradas. E está, principalmente, na luz amarela do semáforo. No Brasil, ela é um sinal para avançar, que ainda dá tempo – enquanto no Japão, por exemplo, é um sinal para parar, que não dá mais tempo. Nada traduz melhor nossa sanha por avançar sobre o outro, sobre o espaço do outro, sobre o tempo do outro. Parar no amarelo significaria oferecer a sua contribuição individual em nome da coletividade. E isso o PIB prefere morrer antes de fazer.

Na verdade, basta um teste simples para identificar outras atitudes que definem o PIB: liste as coisas que você teria que fazer se saísse do Brasil hoje para morar em Berlim ou em Toronto ou em Sidney. Lavar a própria roupa, arrumar a própria casa. Usar o transporte público. Respeitar a faixa de pedestres, tanto a pé quanto atrás de um volante. Esperar a sua vez. Compreender que as leis são feitas para todos, inclusive para você. Aceitar que todos os cidadãos têm os mesmos direitos e os mesmo deveres – não há cidadãos de primeira classe e excluídos. Não oferecer mimos que possam ser confundidos com propina. Não manter um caixa dois que lhe permita burlar o fisco. Entender que a coisa pública é de todos – e não uma terra de ninguém à sua disposição para fincar o garfo. Ser honesto, ser justo, não atrasar mais do que gostaria que atrasassem com você. Se algum desses códigos sociais lhe parecer alienígena em algum momento, cuidado: você pode estar contaminado pelo vírus do PIB. Reaja, porque enquanto não erradicarmos esse mal nunca vamos ser uma sociedade pra valer.

(*) Adriano Silva é jornalista e publicitário.

O fator humano ‒ 2

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Um colega da faculdade de psicologia estava realizando um trabalho de observação do padrão de teias fabricadas por aranhas de diversas espécies, para a cadeira de etologia. Querendo causar boa impressão, ele havia coletado diversas espécies nativas e importado outras, visando a uma análise comparativa. Para facilitar a visualização das teias, acomodou as aranhas dentro de caixas de sapato revestidas com um tecido preto e iluminadas por baixo.

Extremamente preocupado para que nada nem ninguém interferisse no comportamento natural das aranhas, tão logo terminava de fazer suas anotações do dia, ele trancava a porta do quarto. Certo dia, apressado para um compromisso de trabalho, ele saiu e esqueceu a porta aberta. Horas depois, ao voltar para casa, encontrou a faxineira nervosa, sentada no sofá da sala, à espera dele. Sem dar tempo para qualquer reação, a mulher começou a reclamar da falta de confiança e de reconhecimento por parte dele. Falava de seu zelo na manutenção da higiene da casa, do seu orgulho de limpar os cantinhos mais escondidos para se certificar de que tudo estava na mais perfeita ordem, e por aí vai.

Sem entender o que estava acontecendo, meu colega a interrompeu: Onde você está querendo chegar? O que foi que aconteceu de diferente hoje? Com ar horrorizado, a faxineira emendou, triunfante: “Então, hoje eu finalmente consegui limpar aquele quarto que está sempre trancado. O senhor não faz ideia da sujeira que encontrei lá. Tudo empoeirado, cheio de teia de aranha, um nojo! E o senhor nem imagina o monte de aranhas que eu achei dentro das caixas. Quase morri do coração de tanto susto… Mas o senhor não precisa se preocupar. Já matei todas e limpei tudo bem direitinho!”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Coisa do Cartola

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que educação e boas maneiras se levavam de casa. De um malcriado, dizia-se que não tinha tido berço. A afirmação continha um bocado de exagero e um tantinho de maldade. O fato é que, com berço ou sem ele, era natural que as pessoas fossem aprendendo, ao longo da vida, regras básicas de convívio em sociedade.

Gente de origem humilde se esforçava para melhorar a aparência, o palavreado, os gestos, o comportamento. Ganhar dinheiro, fato naturalmente bem-vindo, não era o objetivo único da ascensão social. Eliminar toda grosseria também estava na mira.

cumprimento-1Para profissionais de maior prestígio, era importante, acima de tudo, mostrar-se à altura do cargo ocupado. Diretores, chefes, administradores, homens públicos, políticos procuravam ‒ às vezes desajeitadamente, é verdade ‒ mostrar-se à altura do cargo ocupado. Era importante que o comportamento não contrastasse com o título.

Os tempos mudaram. Fica a desagradável impressão de que a humanidade, pelo menos nesse aspecto, em vez de andar pra frente, deu um passo atrás. Coisas que se traziam «de berço» ou que se aprendiam com o tempo têm de ser ensinadas hoje à força. O fenômeno é internacional. Se duvidar, observe feitos e gestos de gente como o recém-eleito presidente dos EUA, homem cujo comportamento primitivo embasbaca.

Um certo senhor Cartola, recém-empossado presidente da Câmara de Vereadores de São Bernardo do Campo, nos entornos de São Paulo, sentiu que era chegada a hora de pôr ordem no desleixo. Acaba de apresentar um guia de boas maneiras destinado a vereadores e a funcionários da Casa. Não me cabe discutir mérito nem propriedade de cada tópico. Deixo essa tarefa para os eleitos municipais.

cumprimento-2Por minha parte, quero registrar surpresa com o fato em si. Que se ensinem rudimentos de boa conduta a pessoas simples, sem estudo e sem traquejo, me parece normal, natural e necessário. Afinal, ninguém nasceu sabendo. Na outra ponta, quando vejo que atualmente o beabá da civilidade tem de ser ensinado a eleitos de um município de quase um milhão de habitantes, fico pasmo.

Desde criança, aprendi que todo aperto de mão deve ser dado com firmeza e não com mão mole. Percebo que eleitos do povo não sabem disso ‒ razão pela qual o ensinamento faz parte do manual de senhor Cartola.

Bom, antes tarde que nunca. Vamos torcer para que, depois de ler o guia, nenhum vereador compareça à Câmara de bermuda e chinelo de dedo.

Interligne 28a

Para quem tiver curiosidade de conhecer alguns conselhos do manual, aqui está um florilégio:

Interligne 18c

Conselhos às mulheres
● Prefira batom e esmaltes claros, saias na altura do joelho. Cuidado com babados e rendas; nunca deixe roupas íntimas visíveis.

● Decotes e transparências devem ser abolidos.

● Não exagere no perfume.

● Prefira colônias frescas ou lavanda.

● Não use saltos altíssimos, roupa manchada, amassada ou com bainha malfeita, maquiagem excessiva, cabelos despenteados, unhas longas, meias desfiadas, bijuteria em excesso, roupas justas demais.

Interligne 18c

Conselhos aos homens
● Não use meias claras nem brancas com trajes escuros. A meia é uma extensão da calça e prolongamento do sapato.

● Nada de bermudas, calça caindo e camisa para fora da calça(sic).

● Não use perfumes fortes.

● Em clima quente, é ideal o uso de camisas sociais de mangas curtas ou compridas que combinem com a calça.

● Evite sandálias franciscanas.

● Evite gravata de bichinho, de crochê ou frouxa no colarinho.

● Barba deve ser feita todos os dias ou aparada regularmente.

Interligne 18c

Telefone 3Para cumprimentar
● Jamais cumprimente com a mão mole ou tocando somente nas pontas dos dedos. O aperto de mão deve ser firme com três sacudidas. A intenção não é estraçalhar a mão do outro. Sorria e olhe nos olhos da pessoa.

● Tapinha nas costas e beijinhos devem ser evitados, a menos que haja grande intimidade.

Interligne 18c

Ao telefone
● Procure atender no máximo até o terceiro toque. Quando o interlocutor estende demais a conversa, uma saída educada é interromper e dizer que alguém está chamando e que é necessário desligar.

● Não tussa, não espirre nem assoe o nariz quando estiver ao telefone.

Lições de marketing

Myrthes Suplicy Vieira (*)

O conturbado cenário político dos últimos dias me inspirou a rever e divulgar algumas das lições que aprendi ao longo dos meus muitos anos de trabalho como pesquisadora de mercado e de opinião pública. Guardadas as devidas proporções, elas podem nos ajudar a ver claro sobre as motivações em curso e, quem sabe, a encontrar saídas honrosas para nossa crise institucional. Vamos a elas.

A primeira e mais importante lição do marketing é também a mais óbvia, ainda que nem sempre totalmente compreendida: a embalagem tem importância vital para a primeira decisão de compra, muito maior do que a do próprio produto.

Talvez por ser a primeira forma de engajamento do consumidor/eleitor, ela se reveste de incomparável importância simbólica: corporifica os desejos mais íntimos e não-explicitados do usuário em potencial. Se atrai e agrada, é capaz de transferir a simpatia inicial e gerar maior tolerância para com as características organolépticas (cor, sabor, cheiro, textura, etc.) do produto. Sem dúvida, a satisfação inicial com a embalagem vai precisar ser corroborada mais tarde pela experimentação do produto. Caso surjam discrepâncias, a marca pode vir a ser abandonada ou preterida em favor de concorrentes cujas embalagens não sejam tão satisfatórias – e que a concorrência saberá alterar rapidamente no sentido desejado.

embalagem-1Politicamente falando, é não só a figura física do candidato que fica em primeiro plano e envia a primeira mensagem de adequação, mas também a forma como ele embala suas ideias e propostas. Tom de voz, articulação do pensamento, gestual condizente, capacidade de argumentação, escolha de linguagem de fácil compreensão, flexibilidade para incorporar novos ângulos à mensagem e, fundamentalmente, poder de sedução. Traduzindo o último quesito, é preciso que o produto/candidato diga sempre o que o consumidor/eleitor quer ouvir. Quando a promessa soa como música aos ouvidos do público-alvo, ele se deixa implacavelmente fisgar, ainda que de forma envergonhada e disfarçada.

A segunda lição ainda se refere à embalagem. Se já há várias opções de embalagem no mercado que atendem, mesmo que parcialmente, às expectativas do usuário, é preciso diferenciar a sua. Pode ser, por exemplo, através do conceito de “tamanho aparente”. Imagine que as embalagens mais apreciadas no momento são todas baixas e gordinhas, cheias de curvas generosas. Aí você concebe para seu produto (ou para si mesmo) uma embalagem alta e magra, toda reta – ou vice-versa. Graças à sua iniciativa, o consumidor/eleitor pode receber a mensagem de que você está ofertando melhor relação custo/benefício (mais ou melhor produto pelo seu dinheiro) ou a de que você é pessoa ousada, que não se deixa intimidar pela força da concorrência e demonstra forte capacidade de “inovação”.

A terceira lição está relacionada à necessidade de realizar um mapeamento qualitativo do mercado antes de nele penetrar. Se um determinado segmento é muito pulverizado, com uma infinidade de produtos/marcas competindo sem muito destaque, é preciso identificar nichos ainda inexplorados. Acima de tudo, é essencial introduzir um forte diferencial em seu apelo. Em marketing, isso se chama “benefício único” a ser oferecido pelo novo produto. Esse benefício pode estar ligado mais uma vez à embalagem ou a qualquer outra característica, inclusive e principalmente seu posicionamento de preço em momentos de crise econômica.

Como isso se dá no mercado político? Bem, eu diria que esse é o ponto mais difícil de implementar, ao menos nesta parte do globo terrestre. De qualquer forma, certamente – ou, melhor, assim me parece – o diferencial encontrado não deverá estar vinculado aos aspectos propriamente verbais, ligados ao discurso. Temos hoje em oferta todo tipo de propostas sendo gritadas aos quatro ventos, desde a preocupação com a qualidade de vida dos aposentados até a defesa intransigente da moralidade administrativa, passando pela diminuição de impostos e criação de mais empregos, até a configuração do candidato como um outsider (“não sou político”) bem-intencionado. Porém, é de bom alvitre lembrar que, caso a experimentação não consiga comprovar que os novos atributos realmente funcionam na prática, seu frustrado público consumidor/eleitor se voltará inapelavelmente para o que existe de mais tradicional e conservador no mercado.

elefante-3Finalmente, uma lição raramente lembrada do marketing, mas que pode ser fatal se não observada: o produto/marca precisa ter um forte caráter aspiracional. Dito de outra maneira, é o consumidor/eleitor que precisa sentir o desejo de ter acesso ao produto e não este se oferecer despudorada e indistintamente a todos. Se o público-alvo não for claramente identificado na mensagem publicitária e se não falar a sua linguagem, corre-se o risco de não atrair ninguém, dado o caráter de “baciada” da oferta. Em termos psicológicos, o consumidor/eleitor precisa ser afagado pela crença de que só pessoas “especiais” como ele próprio percebem o mérito do que está sendo anunciado.

Marketing, nunca é demais lembrar, é feito para criar necessidades, despertar desejos e inaugurar novas realidades. Basta pensar no mercado de alta tecnologia para entender isso. E, mesmo quando ele se caracteriza por um ‘revival’ de velhas tendências, como acontece na moda, as novas soluções apresentadas precisam incorporar avanços conceituais. Na sequência, o que faz toda a diferença é desenvolver uma propaganda consistente e que faça jus à imagem que se pretende imprimir ao produto/ marca. Aprendi a duras penas que a publicidade fala com o tamanho do ego de cada um de nós. Um exemplo corriqueiro: embora muitas pessoas reclamem do mau gosto das propagandas de produtos populares, ela será considerada bem-sucedida se o populacho for atraído pela “espontaneidade rústica” da comunicação.

Uma frase de efeito que resume bem todas essas lições circula entre os marqueteiros: “Lançar novo produto no mercado é como emprenhar elefanta: se der certo, é preciso esperar ainda dois anos para ver o resultado de seus esforços e, se der errado, você certamente morrerá esmagado”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Personalidades caninas

Myrthes Suplicy Vieira (*)

É estranho como um pet, principalmente se for um cachorro, é capaz de denunciar com seu comportamento a maneira de seu dono encarar a vida. Explico melhor: se o dono é uma pessoa esportiva, o cachorro será elétrico, propenso à ação. Se o dono é um intelectual, amante dos livros, o cão será capaz de permanecer horas a fio deitado aos pés da cadeira onde o dono está sentado em absoluto silêncio, dormitando (ou, quem sabe, até “filosofando”).

Já contei aqui que sou uma pessoa repleta de manias e hábitos arraigados. No entanto, percebo que meu espírito burocrático foi transferido de formas distintas para minhas duas cachorras. No caso da mais velha, ele parece ter sido absorvido integralmente, sem tirar nem pôr. Sempre me surpreendo ao vê-la circulando livremente, sem guia. Ela faz sempre o mesmo percurso, dia após dia, cheira os mesmos lugares e caminha sempre no mesmo ritmo, não importa se está chovendo, fazendo frio ou se é um esplendoroso dia de sol primaveril. Rói cada grãozinho de sua ração com a paciência de um chinês ou como se conhecesse os benefícios da mastigação saudável. Se está com um petisco na boca, é pura perda de tempo tentar atraí-la com outro ou chamá-la para outra atividade qualquer. Enquanto não terminar o que está fazendo, ela nem mesmo se digna a levantar os olhos. Sua humildade se revela nas coisas mais simples: ela não aceita nada que considere grande demais, seja alimento, petisco ou brinquedo.

Cachorro 7Já no caso da mais nova, é mais difícil perceber como a rotina se entranhou nela. Festeira e carente por natureza, ela sempre se mostra disposta a incorporar uma novidade, seja de que tipo for. Se está mordiscando um petisco e é apresentada a outro, ela rapidamente cospe fora o anterior e abre o bocão. Se for possível, come os dois ao mesmo tempo. Se está pacatamente entretida com uma bolinha e alguém mostrar outra, ela corre de um lado para outro tentando decidir qual das duas prefere abocanhar. Se está sonolenta, basta chamá-la para passear que ela se levanta e dispara, sem nem mesmo olhar para trás. Precisa de movimento, agitação e atenção em tempo integral.

Outra coisa que me intriga desde sempre é como a mais nova parece observar e copiar o comportamento da mais velha, especialmente se ele provoca uma reação positiva em mim. Se elogio a capacidade da Molly de conter impulsos, a Aisha imediatamente tenta refrear os dela. Se a Molly tem um lugar favorito para dormir, na primeira oportunidade a Aisha a expulsará sem nenhuma delicadeza (já chegou a se deitar por cima da pobre coitada). Se a Molly escolhe um lugar para fazer xixi, a Aisha a segue e faz o seu exatamente por sobre o dela.

Por estes dias me dei conta de que, todo dia de manhã, a mais nova me espera fazer o café e depois me segue, trazendo consigo sua indefectível bolinha. Tão logo eu me sente, ela senta à minha frente e encosta a cabeça no meu joelho, o rabo abanando feliz, à espera de um carinho ou de que eu aceite brincar com ela. Se a ignoro, ela se afasta e vai deitar em algum canto distante, com uma cara de amuada de fazer dó.

Se eu tivesse de fazer uma analogia da postura característica de cada uma com a de atrizes tradicionais do cinema, diria que a Aisha é certamente uma mistura de Mae West e Greta Garbo. Só quem já a viu deitada no sofá, com a cabeça recostada numa almofada, olhar lânguido e o rabo pendendo em suave curva para fora do sofá, pode testemunhar a favor dessa tese. Às vezes, chego a pensar que um dia ela vai me olhar e dizer com cara de enfado: “I’m no angel” ou “Leave me alone”.

Crédito: WaveMusicStudio

Crédito: WaveMusicStudio

Por outro lado, qualquer um pode perceber à distância que a Molly exala um ar de seriedade, tem a elegância de uma “lady” recatada como Audrey Hepburn, misturado a uma aura dramática de mistério, como Bette Davis. Muitas vezes, quando está deitada, cruza as patas da frente e me encara altiva, como se imperatriz ou esfinge fosse. Por vezes, tenho a impressão de ouvi-la dizer “Decifra-me ou te devoro”.

Não sei dizer se a raça ou a coloração do pelo interferem nessa avaliação. Aisha, uma Golden Retriever, tem a personalidade estereotipada das loiras fogosas: é extrovertida, exibicionista, explosiva e quer sempre ser o centro das atenções. Molly, uma Bernese Mountain Dog, traduz em tudo o padrão comportamental das morenas aspirantes ao esplendor espiritual: é tímida, assustadiça e desconfiada das pessoas que fazem muito estardalhaço. Ao mesmo tempo, quando se aproxima espontaneamente de alguém (o que acontece raríssimas vezes), pode-se apostar que ela encontrou uma alma gêmea.

santos-dumont-1De qualquer maneira, vejo-me forçada a admitir: tenho um lado defendido, de quem luta com unhas e dentes para preservar a própria intimidade, mas adoro também ser alvo de admiração. Pensando bem, talvez seja eu mesma uma combinação das tradições francesas e da malemolência insolente brasileira. Unindo os dois lados, só o meu desejo de fazer a Europa curvar-se ante o Brasil, como dizia a modinha que minha avó cantarolava.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Interligne 18cNota deste blogueiro
A modinha à qual a autora se refere é a cançoneta em homenagem a Santos-Dumont composta por Eduardo das Neves e gravada pelo cantor Bahiano no longínquo ano de 1902. Quem quiser ouvir um trechinho dessa preciosidade pode clicar aqui.

Quebrando hábitos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Desde que me conheço por gente, sempre senti a necessidade de permanência. Não sei lidar bem com nada que me traga a sensação do efêmero, do transitório. A angústia que toma conta de mim quando algo muda ou acaba é tão devastadora que me fez desenvolver ao longo da vida um apego doentio pela rotina.

Minha ansiedade aflora desde quando ocorre o afastamento ou morte de pessoas queridas até pequenas perturbações do dia a dia, como uma simples mudança na mão de direção de uma rua que costumo utilizar. Se sei que tenho um compromisso agendado para amanhã, revejo instintivamente as tarefas que vão ser afetadas e me programo para realizá-las em outra ordem, outra hora ou outro dia. Se o evento é inesperado, primeiro entro em pânico e, quando mais tarde consigo voltar a respirar, aciono mentalmente todas as pessoas que poderiam me prestar ajuda, mesmo que seja na forma de aconselhamento.

calendario-1Hábitos são armadilhas, eu sei, mas me é sempre muito difícil resistir à doce ilusão de conforto e proteção que eles trazem. Como me alertava uma amiga consultora organizacional, a mente burocrática está assentada sobre dois pilares: a necessidade de controle e previsibilidade. Num cenário de crise, é inevitável que esses sustentáculos de segurança sejam abalados. Sem liberdade interna, não há condições para buscar soluções criativas.

Ultimamente venho sendo desafiada pelo destino, como em nenhuma outra fase de minha vida, a criar jogo de cintura. Mesmo ‘à contre-coeur’, praticamente todos os dias vejo-me forçada a adaptar meu corpo e minha cabeça a situações novas, criadas tanto pela deterioração das minhas condições físicas e financeiras quanto pelas do ambiente em que vivo. Para piorar, o desconforto, na idade em que estou, é um companheiro para lá de irritante, nada leal.

Relógio solarAcontece que, sem ter consciência plena do que estava fazendo, acostumei também minhas cachorras a conviverem com um rígido esquema de vida. Elas têm hora certa para acordar e para dormir, para comer, para passear e até para brincar. Têm dia certo para tomar banho. Têm local certo para desenvolver cada uma dessas atividades. A cada vez que elas tentam burlar minha “sistemática”, como dizem meus parentes mineiros, repito qual papagaio: “agora, não”, “espera um pouco”, “me deixa em paz”.

Pois bem, o preço dessa conduta insana me foi cobrado há dois dias. Minha irmã, condoída com o estado deplorável de meu sofá, resolveu me dar de presente um dos dela, que estava fora de uso, mas ainda em boas condições. Para acomodá-lo, fui obrigada a rearranjar todos os móveis da sala, dado que suas dimensões eram bastante diferentes.

A configuração da sala não era alterada havia mais de uma década, portanto, minhas cachorras nunca haviam passado por uma experiência similar. A mais nova estava habituada a dormir num canto entre o sofá e a parede, debaixo de uma mesinha lateral. A mais velha costumava se estender na frente do sofá, muitas vezes se aninhando embaixo das minhas pernas e dificultando minha locomoção. Com a mudança do layout, o espaço de “dormitório” da mais nova acabou sendo eliminado e o de relaxamento da mais velha, comprometido.

calendario-2Para meu desespero, tão logo terminei de colocar tudo no lugar, as duas entraram em um estado inacreditável de frenesi e ansiedade. Caminhavam sem direção e sem descanso pelo apartamento todo. Recusaram-se a comer, tanto na hora do almoço quanto na do jantar. O incômodo da mais nova era tão evidente que ela chegou a rejeitar até mesmo os petiscos pelos quais, antes, daria alegremente a vida. Meu descontrole emocional passou a alimentar o delas e vice-versa.

Foi então que me lembrei de um exercício recomendado por meu médico antroposófico para quebrar rapidamente hábitos arraigados. É um método engenhoso, mas simples e relativamente indolor. Consiste basicamente na criação do “dia do contrário”. Nesse dia, que deve acontecer pelo menos uma vez por mês, é preciso fazer tudo diferente do costumeiro: ensaboar-se numa sequência distinta, abrir portas, escovar os dentes e o cabelo com a mão errada, vestir-se de maneira não-usual, adotar um novo itinerário para chegar ao trabalho, alimentar-se com ingredientes alternativos, etc. Com isso, a sensação de aprisionamento pode finalmente chegar à consciência e determinar os passos que ainda serão necessários para se livrar de outros condicionamentos.

Resolvi testar a eficácia do método com minhas cachorras. No dia seguinte, levei-as a passear pela manhã, quando o habitual era o passeio à tarde. Dei comida algumas horas depois do esquema tradicional para que a fome as induzisse a aceitar de novo a comida. Espalhei iogurte por cima da ração seca para que o cheiro, o sabor e a textura dos grãos fossem alterados. Troquei os petiscos. Coloquei o sofá antigo em outra posição na sala, atravancando a passagem que elas estavam acostumadas a usar. Mudei minha rotina de trabalho para dar atenção e brincar com elas em horários incomuns – e rezei para que a estratégia funcionasse logo.

Relógio moleNo começo da noite, exausta, me dei conta de que havia uma quietude estranha no ambiente. Naquele horário, as duas ainda estariam ativas, brincando uma com a outra ou latindo para chamar minha atenção. Curiosa, fui pé ante pé até a sala e me deparei com uma cena enternecedora: a cachorra mais nova dormitava relaxadamente entre os dois sofás e a mais velha dormia a sono solto estendida na frente do novo sofá. Não tenho palavras para descrever a alegria e o alívio que experimentei. Só me ocorria saborear demoradamente essa recompensa sem igual para tantos eventos paradoxais do dia.

Posso informar a todos que já estou novamente me sentindo apta a pontificar a respeito do dom precioso que é ser capaz de flexibilizar o próprio credo comportamental. Isso sem falar da sublime leveza que se experimenta ao abrir mão das zonas de conforto. Recomendo a experiência a todos de “alma pequena” como eu.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Crime e castigo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Uma notícia chamou ontem minha atenção, quando eu, já cansada com a rotina de traduções, me preparava para desligar o computador e relaxar.

Contava a história de uma mulher que havia ido buscar o filho de 5 anos na escola. O garoto foi ao encontro da mãe, alegre e saltitante como de hábito, e, mesmo diante da pergunta sobre como havia sido seu dia, negou que alguma coisa de especial houvesse ocorrido. A supervisora de ensino, que estava ao lado, decidiu então refazer a pergunta da mãe: “Tem certeza de que não tem nada mais a contar para sua mãe?”

O garoto abaixou a cabeça, constrangido, e acabou contando à mãe que naquela tarde havia desrespeitado a fila para entrar na sala de aula e, irritado com a demora, ao invés de pedir licença, havia empurrado uma coleguinha. Aturdida com aquele relato inesperado e sem saber ao certo como proceder, a mãe optou por não reagir de imediato. Manteve silêncio durante todo o trajeto de volta para casa, limitando-se a comentar que havia ficado muito triste com o comportamento do filho.

Briga 6Ao chegarem em casa, a mãe sentiu que estava na hora de ter uma conversa franca com o filho. Colocou-o de pé em frente a ela e, olhando-o bem fundo nos olhos, apontou a inadequação de seu comportamento e discorreu brevemente sobre as consequências da agressividade infantil. Em tempos de discussão da cultura do estupro, adicionou a advertência de que “não se deve bater em mulher”. Não bateu nele, não gritou, não o desqualificou. Com voz calma, disse apenas que, como castigo, ele deveria ficar isolado em seu quarto por algumas horas.

O menino assentiu. Foi para o quarto e ficou até a hora de dormir. Quando a mãe o procurou mais tarde para o jantar, ele pediu desculpas, abraçou a mãe e prometeu nunca mais repetir aquele gesto. Enternecida, mas ainda não inteiramente convencida de que o aprendizado havia se completado, a mulher resistiu o quanto pôde à tentação de mimá-lo. Aceitou o pedido de desculpas e, com cara séria, foi dormir.

Flor 8No dia seguinte, a caminho da escola, a mãe teve uma súbita inspiração para pôr um ponto final feliz naquele episódio. Parou em um mercado, levou o filho até a seção de floricultura e pediu que ele escolhesse uma flor para a coleguinha agredida. Orientou-o a entregar o presente, acompanhado por um pedido público de desculpas. O garoto assim fez. A menina, surpresa com a delicadeza do gesto, aceitou o presente, mas só concordou em abraçar o garoto e perdoá-lo quando autorizada pela própria mãe.

Mal consegui terminar a leitura da notícia. Uma onda forte de emoção tomou conta de mim, enchendo meus olhos de lágrimas. Por que uma história tão corriqueira como essa mexeu tanto comigo? Talvez por um motivo bastante singular: aconteceu no mesmo dia em que a presidente afastada enviou sua defesa por escrito à comissão do impeachment, alegando que “Herrar é Umano” ‒ ops, perdão ‒ errar é humano.

O vídeo educacional mais instigante a que já assisti abordava exatamente essa máxima. De forma criativa, um repórter interpelava uma mãe na antessala de um consultório médico: “A senhora concorda com a frase que diz que errar é humano?” A mulher respondia de chofre que sim. Na sequência, o repórter indagava: “Quer dizer que, se o pediatra de seu filho errar o diagnóstico ou a medicação, estaria tudo bem?“ A mulher, num pulo e com ar indignado, reagia com um sonoro não.

«A imaginação é uma faculdade fundamental de nosso psiquismo. O imaginário é tão velho quanto a humanidade. Nasceu e morrerá com ela.» by Michel Barthélémy (1943-), artista belga

«A imaginação é uma faculdade fundamental de nosso psiquismo. O imaginário é tão velho quanto a humanidade. Nasceu e morrerá com ela.»
by Michel Barthélémy (1943-), artista belga

Em outra cena, o mesmo repórter entrevistava um praticante de voo de asa delta e repetia a pergunta. Mais uma vez, o jovem, concentrado na tarefa de verificar a correta colocação do cordame, dizia concordar com a máxima, mesmo sem muita reflexão. O repórter prosseguia: “Quer dizer que, se você ou outra pessoa se distraírem durante a checagem de segurança do voo, você vai entender?” Horrorizado com a possibilidade de um acidente, o rapaz balançava negativamente a cabeça atônito e se voltava com mais afinco à tarefa que estava executando.

Não é preciso agregar nenhuma conclusão moralista ou moralizante a essas duas histórias. Cada um deve saber onde lhe apertam os calos. Quanto a mim, não tenho cabeça para refletir sobre nenhuma moral edificante para histórias tão contrastantes. Ainda estou flutuando sobre uma nuvem cor-de-rosa, meus ouvidos ainda embevecidos com o som diáfano de um coral de anjos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Pressão do grupo e adestramento de humanos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Um dos experimentos mais interessantes, curiosos e instigantes de que tive notícia sobre a gênese de crenças irracionais foi feito com macacos.

Em linhas gerais, o estudo se propunha a identificar como nasce uma superstição. Para testar a hipótese de que o comportamento de um único indivíduo pode ser associado à ocorrência de um evento ameaçador para todo seu grupo de referência e, a partir daí, disseminar-se como crença, contaminando o comportamento dos demais, foram criadas as seguintes condições experimentais:

Macaco 2Um grupo de macacos era colocado dentro de uma jaula fechada por vidros, que possuía uma plataforma em seu centro. A plataforma era içada para o alto e, sobre ela, depositava-se um cacho de bananas. Todos os macacos eram ingênuos (isto é, nunca haviam estado dentro da jaula em questão) e estavam com fome. Naturalmente, um dos indivíduos, ao sentir o cheiro das bananas, tentava escalar a plataforma para ter acesso a elas. O que nenhum dos macacos sabia era que havia um sistema hidráulico embutido na plataforma que era acionado pelo peso. Tão logo o macaco pioneiro chegava ao topo e se sentava sobre a plataforma para comer as bananas, seu peso acionava uma bomba que inundava toda a gaiola, ameaçando a vida dos que estavam embaixo. Estes, desesperados com a possibilidade de afogamento, gritavam e se agitavam, na tentativa de escapar da jaula. Eventualmente, o macaco que estava em cima da plataforma deixava-se contaminar pelo clima de pânico geral e descia dela. A água parava então de jorrar e passava a ser drenada, pondo fim ao estresse do grupo.

Quando, mais tarde, um segundo macaco faminto escalava a plataforma, o mecanismo era novamente acionado e nova tensão recaía sobre o restante do grupo.  A situação se repetia até que os macacos passassem a associar a escalada com ameaça de morte para todos que não a fizessem. A partir desse momento, qualquer nova tentativa de subir na plataforma era impedida pelos demais, que agarravam o indivíduo afoito e o puxavam para baixo, antes que ele pudesse se sentar sobre ela.

Caixa vidroAssim que esse padrão de conduta tivesse se firmado, um dos macacos era retirado da gaiola e substituído por outro, ingênuo. Se este tentasse escalar a plataforma, era repelido pelos demais, sem que dispusesse de qualquer pista dos motivos que levavam o grupo a fazer isso. Os macacos eram então sucessivamente retirados um a um e trocados por novos indivíduos, até que todo o grupo fosse novamente constituído apenas por ingênuos. O que o experimento constatou foi que, independentemente do fato de desconhecerem os motivos da proibição da escalada e de estarem famintos, todos acabavam repetindo o comportamento “supersticioso”.

Não preciso nem dizer que, desde o dia em que soube desse estudo, fiquei imaginando como o fenômeno da superstição seria desencadeado na espécie humana. Sou filha de um homem extremamente supersticioso que, quando não sabia explicar o porquê de certas proibições, alegava brincando que “seu filho pode nascer sem dentes e sem cabelo”.

Há alguns dias, passeando por uma rede social, vi um vídeo que respondia em cheio às minhas indagações. Segundo as informações constantes da matéria, o estudo foi realizado por pesquisadores de uma universidade inglesa e consistia no seguinte: um grupo de pessoas aguardava sentado por uma consulta na antessala de uma clínica médica. Uma discreta campainha soava a intervalos regulares. Sem que nenhuma instrução fosse dada nesse sentido e sem qualquer comentário das pessoas presentes, a cada toque todos se levantavam por instantes e voltavam a se sentar. Uma jovem, ingênua, chega à clínica e estranha aquele comportamento. Sem saber como se comportar, ela permanece sentada por dois toques consecutivos, mas sucumbe à tentação de imitar o comportamento dos demais no terceiro. Os pacientes vão sendo chamados um a um e, em pouco tempo, só resta a jovem na sala de espera. Nesse momento, chega um rapaz ingênuo e senta-se ao lado da garota. Quando um novo toque de campainha soa, a jovem, mesmo sem a companhia dos que faziam isso anteriormente, levanta-se e volta a sentar-se. O rapaz interrompe a leitura de uma revista e questiona, perplexo, por que ela havia feito aquilo. A garota responde, sem graça, que não sabia exatamente, mas que, por outras pessoas terem agido daquela maneira quando ela chegara, “sentiu que deveria” agir da mesma forma. E acrescenta: “Quando passei a fazer isso, me senti muito melhor”.

Sala de espera 1O rapaz passa, então, a imitar o comportamento da jovem. Outros pacientes ingênuos chegam e, com maior ou menor grau de resistência, terminam todos por repetir o comportamento irracional. Segue-se uma rápida explicação dos pesquisadores a respeito de como nosso cérebro reage à pressão de grupo e como eventuais punições e recompensas vão, aos poucos, constituindo aquilo a que chamam de nossa “educação social”. Nada de muito novo nem espetacular, mas certamente uma descoberta que condensa de forma criativa e simples o desejo humano de inclusão no grupo – como já explicitava desde tempos imemoriais o ditado popular “Em Roma, age como os romanos”.

Não pude deixar de pensar na similitude entre esses dois experimentos e as demandas sociais a que estamos submetidos que corroboram minha tese de adestramento de humanos. Quem nunca hesitou antes de tomar um copo de leite com manga? Quem nunca acreditou que, para ser amado, é preciso ser belo? Quem nunca equiparou sucesso a dinheiro, casamento a felicidade ou solidão a morar só, admiração social a posse dos itens de moda? Quem nunca teve medo de que os céus se abrissem e um raio o fulminasse caso ousasse desrespeitar um credo religioso?

Galileu 1O preço a pagar pela decisão de seguir percurso próprio, mesmo que isso represente andar na contramão da história, pode ser tão alto quanto o de se deixar levar pela vontade de imitar a grande massa sem ouvir a voz do próprio coração. Duvida? Seria aconselhável, neste caso, estudar a biografia de Galileu Galilei, Albert Einstein ou Sigmund Freud. Depois, entrevistar profissionais que fizeram carreiras de sucesso meteórico até serem abatidos em pleno voo por um ataque cardíaco ou uma crise existencial. Ou conversar com uma diva do cinema ou televisão, eleita a mulher mais desejada do planeta, que se interna em uma clínica psiquiátrica na tentativa de aprender a lidar melhor com sua infelicidade no plano sexual e afetivo. Ou, ainda, mais contemporaneamente, aderir por puro cansaço à tese de que há base legal para o impeachment da presidente ou à de que tudo não passa de um “golpe”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Entre a misantropia e a filantropia

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Tem gente que não gosta de gente. Dentre esse tipo de pessoas, há aquelas que buscam nos animais uma espécie de compensação afetiva para estabelecer relacionamentos e escapar da solidão.

Tem também gente que ama gente. Já dentre essa classe de pessoas, há aquelas que vivem reclamando de quem dá preferência à adoção de animais, ao invés de crianças carentes.

No meio dos dois tipos, há ainda pessoas que se satisfazem com relacionamentos cotidianos tanto com humanos quanto com animais.

Na linguagem comum das ruas, é habitual usar a expressão “Fulano é muito humano” para designar uma pessoa portadora de sensibilidade, generosidade ou solidariedade. Por outro lado, também é comum indignar-se quando um exemplar da raça humana transgride algum código de ética ou de convivência social dizendo que “Fulano é um animal”.Homem animal

De que lado está a verdade? Humanos são mesmo seres sensíveis, generosos e solidários enquanto os animais são geneticamente incapazes de se comportar de acordo com as regras da boa convivência humana? Claro que você já sabe a resposta: existe gente chegada a atitudes “animalescas” e existem animais tão sensíveis de quem se poderia dizer que já são um pouco “humanos”.

A frequência estatística de cada um desses tipos? Bem, eu diria que, se deixados em seu estado natural ― isto é, sem que grandes traumas tenham ocorrido em seu percurso geneticamente programado ― a chance de encontrar animais humanizados e pessoas animalizadas estaria próxima da do acaso, ou seja, 50% para cada lado.

Inútil negar a evidência de que somos todos humanos e animais ao mesmo tempo. Na nossa espécie, o cerne biológico é recoberto por uma camada de racionalidade que age como uma espécie de tampão para inibir a expressão de instintos primitivos. Quase sempre dá certo, mas não há garantia de espécie alguma de que um acontecimento inusitado e com uma carga energética maior do que a que estamos habituados não possa burlar a vigilância do ego e irromper com força máxima no terreno da animalidade.

O problema está na nossa dificuldade em admitir que existe, em estado latente, dentro de cada um de nós o potencial de visitar qualquer um desses extremos a qualquer momento e sem que possamos antecipar isso. Nossa censura interna apenas se esforça em comprovar que isso jamais acontecerá conosco.

O inferno são os outros

Tudo seria simples se todos os comportamentos humanos fossem plenamente conscientes ― e não são. O motivo que aparece em nossa consciência para justificar uma determinada atitude nossa nem sempre corresponde à realidade de nossa emoção. Como fomos adestrados pacientemente desde muito cedo para a expressão de sentimentos positivos e para a repressão dos negativos, nos deixamos cegar para a crueldade de muitas de nossas intenções. “O inferno são os outros”, já dizia Jean-Paul Sartre. Se não tivéssemos de conviver com pessoas que adotam outros estilos de vida, outros códigos de conduta e outros valores, nossa existência seria plácida como a superfície de um lago em dia sem vento.

Já na contramão dessa crença, Freud nos alertou em muitos de seus escritos para a violência contida no “retorno do oprimido”. Se tivermos sido extremamente eficientes ao longo de nossa vida para conter a livre expressão de instintos selvagens, podemos ter esticado tanto a corda que inadvertidamente nos colocamos a apenas um passo de uma explosão devastadora.

Duas canoas by Liz Zahara

Duas canoas
by Liz Zahara

Para domesticar a fera humana e incorporar a doce espontaneidade animal, precisamos simplesmente ter consciência de que temos um pé em cada canoa o tempo todo. É, pois, a delicada tensão dinâmica entre nossa humanidade e nossa animalidade o princípio-guia que rege uma existência saudável, a meio caminho entre a misantropia e a filantropia.

Para tratar daquelas pessoas que sentem dificuldade em encontrar o caminho do meio, lancei há pouco tempo o conceito de “adestramento de humanos”. Se você se interessa em saber mais a esse respeito, entre em contato comigo.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga.
Email: msvac@uol.com.br