Arroz com feijão

José Horta Manzano

A grande erosão dos fonemas da língua francesa deu origem a multidão de palavras homófonas – aquelas que, embora tenham sentido diferente, soam do mesmo jeitinho. Imagino que os estagiários dos jornais do país passem por um aprendizado de trocadilhos. Os mais aplicados serão escolhidos. É impressionante como conseguem inventar jogos de palavras, especialmente na hora de dar título.

Libération é importante jornal francês, ancorado do lado esquerdo do tabuleiro político. Neste 25 de setembro, publicou artigo assinado pela correspondente no Brasil. Como costumam fazer, aproveitaram para transformar o título num quebra-cabeça divertido.

Em vez de:
Au Brésil, on ne rit plus, c’est la fin des haricots

No Brasil, não se ri mais, é o fim do feijão

Escreveram:
Au Brésil, on ne riz plus, c’est la faim des haricots
que soa exatamente igual, mas que é intraduzível. Ao pé da letra, fica:
No Brasil, não se arroz mais, é a fome do feijão.

Trocadilho traduzido perde a graça. É que a gente tem de escrever um parágrafo inteiro pra explicar, o que deixa escapar o momentum.

O artigo explica aos leitores franceses que o arroz com feijão é o prato nacional, traço de união entre classes, consumido que é pelo empresário e pelo operário.

Fala do espanto do gringo quando descobre um povo que come a mesma coisa todos os dias – gringo este que, se ficar muito tempo, acaba sucumbindo a esse hábito alimentar.

Conta, em seguida, o atual drama nacional: a subida vertiginosa do preço do arroz, causada por um conjunto de fatores, entre os quais, o modo Bolsonaro de governar.

Fica-se sabendo que, em consequência da perda de valor do real, os produtores de arroz estão preferindo exportar, o que acaba deixando o mercado interno desabastecido. Como resultado, o Brasil está importando arroz, o que parece absurdo. De fato, exportar arroz barato para importar arroz caro parece contrassenso.

Muitos brasileiros estão tendo de modificar seu estilo de alimentação, trocando o arroz com feijão por produto mais em conta.

A articulista arremata cogitando: «E se, em vez de substituir o arroz com feijão, os brasileiros substituíssem o presidente? Sairia de graça». Faz sentido.

Falam de nós – 16

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

A colheita da semana é magra. As manchetes que mencionam o nome de nosso país foram, como de hábito, desalentadoras. Aqui estão algumas, de cinco diferentes países.

Gang of Kids
Reportagem do site Yahoo dedicado a viagens e viajantes está longe de encorajar turistas a visitar o Brasil em geral e o Rio de Janeiro em particular. Traz um vídeo de 40 segundos, presumivelmente produzido pela empresa Globo, em que uma impressionante sequência de assaltos é praticada à luz do dia em pleno centro da cidade.

Quem convive diariamente com situações como essas não se espanta. Mas duvido que um estrangeiro, depois de assistir a essas imagens, persevere no projeto de visitar o Brasil.

Assalto 9Carestia alastrante
O austríaco Der Standard dá informação sobre a «transbordante» inflação, que ultrapassou dez por cento em 2015. Entre as causas, são destacadas as «suntuosas» despesas do governo.

Karneval der Korruption
Carnaval da Corrupção. Com esse título, o alemão Frankfurter Rundschau conta que a temática da próxima festa nacional brasileira de facto ‒ o Carnaval ‒ será a corrupção sob todos os aspectos. Máscaras, marchinhas, carros alegóricos farão parte dos festejos. Até ‘o japonês da Federal’ é mencionado.

Carnaval 12Queda livre
Brasil em queda livre ‒ é manchete do Neue Zürcher Zeitung, jornal suíço de referência. O longo artigo pinta, com tintas vivas e realistas, a atual situação do Brasil. Fala de tudo: corrupção, rebaixamento por agências de classificação de risco, falências, desemprego, inflação, troca de ministros, catástrofe ambiental, Jogos Olímpicos.

Para rematar com olhar optimista, o articulista observa que a desvalorização do real pode representar excelente oportunidade para os exportadores brasileiros que forem rápidos no gatilho.

Dragon 1Decaída
“Brasile: dalla gloria dei Brics al terzo mondo.” Brasil: da gloria do Brics ao Terceiro Mundo. É o que constata artigo alojado no italiano Corriere della Sera. Pessimista, dá uma imagem bastante crua do momento brasileiro. Fala de uma presidente que passa o tempo a defender-se do impeachment. Lembra que o partido atualmente no poder está envolvido em escândalos sem fim, cujo denominador comum é o financiamento ilícito de campanhas acompanhado por enriquecimento pessoal de líderes. Menciona estatais saqueadas que se encontram em estado terminal.

Num escárnio, termina perguntando se Deus seria mesmo brasileiro, como dizem. A dúvida fica no ar.

Pixuleco

José Horta Manzano

Pixuleco 1Quando Luiz Inácio da Silva, o Lula, chegou ao posto máximo do Executivo, o sorriso abriu-se-lhe de orelha a orelha. Sentiu-se numa nuvem. Deu-se conta de que, mais ainda do que já estava acostumado, bastava levantar um dedinho pra que todos se curvassem à sua vontade. E a seus caprichos. Era paparicado por grandes e pequenos, por ricos e pobres. Um verdadeiro estado de graça.

Não sei quanto tempo terá durado o inebriamento. Terão sido alguns meses. Passado o encanto inicial, o figurão investiu-se, corpo e alma, na batalha da reeleição. Precisava porque precisava garantir a permanência no trono. Aquilo era bom demais pra ser descurado.

Pixuleco 4Embora a expressão ainda não estivesse na moda, «fez o diabo». Paralelamente à distribuição de bolsas variadas a clientela cativa, cuidou de alimentar oportunistas e aliados de circunstância. Cargos, sinecuras, benesses, mensalões e petrolões estão aí pra provar.

Reeleito, deu-se conta de que o horizonte de número um se fecharia em quatro anos. Passado esse tempo, impossibilitado de competir mais uma vez, teria de ceder o lugar. A perspectiva não há de lhe ter agradado.

Pixuleco 6Que não fosse por isso. Faria o necessário para escolher um sucessor sem graça, sem carisma, sem potencial para fazer-lhe sombra. Arregaçou as mangas e mandou pra escanteio – para usar sua costumeira metáfora futebolística – todos os postulantes que lhe pudessem prejudicar a popularidade. Foi assim que optou por dona Dilma, aquela que as más línguas chamaram de poste.

Nosso líder fez bem questão de colar seu nome ao dela. Deixou bem claro que, por detrás da desconhecida, continuaria ele dando as cartas. Gente simples chegou a convencer-se de que aquela era «a muié do Lula».

Pixuleco 5Durante todo o primeiro mandato do «poste», o Lula chamou para si os holofotes. Não faltou a cerimônias, inaugurações, seminários, convenções e palanques. Reforçou a ideia de que a «muié» fazia tudo o que o «marido» mandava. Ele e ela eram a mesma coisa.

Nenhuma alegria é eterna. Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe, como diziam os antigos. Um belo dia, já no segundo mandato da «muié do Lula», o desastre ficou evidente: inflação, desemprego, carestia, roubalheiras, corrupção, obras inacabadas, promessas não cumpridas, um pandemônio.

Faz quase um ano que nosso guia vem tentando descolar sua imagem da do «poste». É missão doravante impossível. O demiurgo, a pupila, o partido e até aliados oportunistas caíram no mesmo pote de cola. O mesmo visgo os envolve e os iguala.

Pixuleco 3Se faltasse uma prova, que se observem os pixulecos, aqueles bonecos que vêm se tornando símbolo da bandalheira. A atual presidente, o governador de Minas, o prefeito de São Paulo já foram homenageados com a própria imagem inflada e elevada às alturas.

Pixuleco 2Mas reparem bem: o pixuleco mais importante nunca está muito longe. Para o bem ou para o mal, o Lula continua exercendo seu papel de puxador de cordão.

O futuro chegou e, como havia almejado, nosso guia continua debaixo dos holofotes. Não exatamente como ele tinha sonhado, é verdade.

Mas, que diabo, não se pode ter tudo na vida! Ou não?

#Tevecopa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul° 2014

Teve Copa, sim, senhores. Contradizendo pessimistas, o megaevento fez sucesso estrondoso. Como escrevo antes das quartas de final, não sei se a Seleção terá avançado ou tropeçado. De todo modo, o que interessa mesmo são os efeitos colaterais e o legado. Nossas autoridades, quando aceitaram organizar o campeonato, tinham objetivo ambicioso e múltiplo.

No plano interno, o torneio congregaria duzentos milhões em ação num só brado: «pra frente, Brasil, salve a Seleção». Seria a prova maior da concórdia e do contentamento do povo brasileiro ― a consagração lógica e brilhante destes anos de obstinado marketing. A magnificência do espetáculo havia de satisfazer aos apetites mais exigentes. O crédito de simpatia do mandarinato só poderia crescer.

No plano externo, a fabulosa exposição midiática seria o vetor da afirmação do Brasil-potência. Alto e bom som, ecoaria no planeta a prova da inserção definitiva de nosso país no restrito clube do Primeiro Mundo. Membro de carimbo e carteirinha, faz favor!

Teve Copa, sim, senhores. E foi um sucesso! Por irrisórios 25 bilhões, temos agora uma dúzia de soberbos estádios de futebol, dois deles estrategicamente plantados na Amazônia Legal. É inacreditável relembrar que o País tinha chegado ao século 21 sem essas imprescindíveis «arenas». O espírito visionário de nossos dirigentes preencheu a lacuna.

Bandeira Brasil 1É verdade que a Copa poderia ter servido de incentivo ao aprendizado de línguas. Afinal, centenas de milhares de turistas forasteiros foram recebidos por um povo monoglota. É pena ninguém ter pensado em planejar esse detalhe. Tem nada, não. Fica pra próxima. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo.

É verdade que nosso padrão de Instrução Pública continua baixo. Nos grotões, o ensino é ministrado em condições africanas. Mas isso é ninharia. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo. Dispositivo impressionante foi preparado para cuidar da saúde de atletas. Equipes médicas paramentadas, macas padrão Fifa, helicópteros para emergências. Os esportistas socorridos encontraram atendimento de primeira linha, rápido, eficaz.

É verdade que nossos hospitais públicos ainda não atingiram tal grau de excelência. Mas isso é mixaria, problema antigo que pode esperar. Não dá pra resolver tudo ao mesmo tempo.

Até linhas aéreas se esforçaram. Não houve greve. Atrasos estiveram abaixo do habitual. Atletas boquiabertos cruzaram os céus sem um pio de reclamação.

Crédito: Guilherme Bandeira www.olhaquemaneiro.com.br

Crédito: Guilherme Bandeira
http://www.olhaquemaneiro.com.br

É verdade que o transporte urbano dos brasileiros comuns continua caótico, caro, raro, desconfortável, lento, inseguro. Diante da grandiosidade da organização da Copa, porém, isso é bagatela. Metrô? Pura babaquice.

Last but not least, a projeção do País no exterior. Nas muitas décadas que tenho vivido expatriado, posso garantir que jamais o Brasil tinha sido alvo de exposição midiática de tal magnitude.

Até nos rincões da Mongólia e da Birmânia, sabe-se hoje que nosso país tem estádios magníficos. Sabe-se também que nossa terra tem sol e calor. Muitos se arrependem de não ter planejado uma viagem ao Brasil durante a Copa. Agora é tarde.

Visitar o País depois? Visitar o quê? A novidade mostrada foram só os estádios. Fora isso, a exposição midiática serviu para reforçar conhecidos clichês. Repórteres repisaram os horrores de sempre: prisões superlotadas, violência urbana, desigualdade social, gente hospitalizada em corredores, prostituição, carestia. Coisa de frear os ímpetos do turista ajuizado.

Uma detalhe pouco divulgado: teve Copa, sim, mas não para todos os brasileiros. Cerca de um milhão de conterrâneos ainda não dispõem de energia elétrica. Como no século 19, vivem nas trevas ― no próprio e no figurado.

No exterior, muitos me perguntam por que a presidente do Brasil não assiste aos jogos nem mesmo quando chefes de Estado estrangeiros estão presentes. Nessas horas, desconverso.

Copa 14 logo 2Na conta de perdas e danos, o resultado da «Copa das Copas» terá sido neutro. O brasileiro agora tem estádios esplêndidos, mas as mazelas do dia a dia continuam como dantes. O resto do mundo encharcou-se de ouvir e ler sobre o Brasil, mas nossa imagem não mudou: Carnaval, malemolência, criminalidade, anarquia perduram no imaginário forasteiro. Nossa ineficiência ficou patente.

Perdemos excepcional ocasião de melhorar a vida dos habitantes e de soerguer a imagem do Brasil. Fica para quando der. E vamos torcer para que, na próxima Copa, a Fifa nos conceda os segundos que faltam para a execução decente do Hino Nacional. O povo brasileiro, desde já, agradece.

Manifestação e razão

José Horta Manzano

Pelo que tenho lido estes últimos dias, os brasileiros começam a pôr em prática o conselho que os franceses dão ao mundo há séculos: quando não estiver satisfeito com alguma coisa, proteste! Faça ouvir sua voz!

Na França, por um sim, por um não, saem todos às ruas brandindo cartazes e escandindo palavras de ordem. O povo está ultratreinado para esse tipo de exercício. Mas há um contraponto: manifestações com número polpudo de participantes são porta aberta para vândalos e baderneiros.

Parece inacreditável, mas, em dia de passeata importante, há gente que sai de casa munido de todo o aparato do perfeito bagunceiro. Junta-se aos manifestantes sem saber exatamente contra o que estão reclamando. Pouco importa. Seu prazer é participar do (quase) inevitável quebra-quebra final e destruir o que lhe apareça pela frente. Uma apoteose, um verdadeiro orgasmo! Cada um tem seu esporte favorito.

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No Brasil, o motivo alegado para a balbúrdia atual é reclamar contra o aumento do preço das passagens de transportes coletivos urbanos.

É verdade que ninguém aprecia aumento de preço. O ponto mais sensível do ser humano é o bolso, disso sabemos todos. Se quiser enervar alguém, renuncie a pisar-lhe o calo ― prefira enfiar-lhe a mão no bolso: o efeito será visceral, e a reação, fulminante.

Baderneiros

Baderneiros

Por outro lado, não acredito em movimento popular «espontâneo». Há sempre um Duque de Caxias, um Napoleão, um Garibaldi organizando a agitação. Esses comandantes deveriam parar um instante para refletir. O que é que está errado?

O problema não está propriamente no fato de o preço do transporte público aumentar. Todos os preços, mais dia, menos dia, acabam aumentando. O nó da questão é o peso brutal que a subida do custo da condução exerce no bolso dos usuários. No fundo, o problema não está no aumento do preço, mas na incapacidade do usuário de fazer frente a ele.

Baderneiros Crédito: Jeff Moore

Baderneiros
Crédito: Jeff Moore

O preço das passagens está ― bem ou mal ― alinhado com o que se pratica no resto do mundo. Em grande parte dos países, quando o transporte encarece, não se veem manifestações. Por que, então, no Brasil, bandeiras se alevantam? A resposta é simples: porque o salário do cidadão médio anda tão apertado que não lhe deixa folga para suportar esse acréscimo. Repito: o aperto não está no aumento em si, mas na incapacidade dos viajantes de absorvê-lo.

Goteira

Goteira

As manifestações estão, portanto, desfocadas. Não é contra o aumento das tarifas que se tem de reclamar, mas em favor de uma revisão dos salários. Dá muito mais certo. Se não, cidadãos terão de manifestar diariamente pelo resto da vida: quando aumenta o pão, quando aumenta a luz, quando aumenta o gás, quando aumenta o leite. Até quando sobe o preço do xuxu.

Quando a casa tem dezenas de goteiras, não adianta tapar com esparadrapo nem trocar uma telha aqui, outra ali. Está na hora de reformar o telhado.