Perigo por 100 anos

Bomba da Segunda Guerra não explodida encontrada em canteiro de obras

José Horta Manzano

Na quarta-feira 11 de maio, Herr Olaf Scholz, o chanceler alemão (sucessor de Angela Merkel) fez uma declaração um tanto desanimadora.

Começou lembrando que “Todos os que vivem na Alemanha sabem que as bombas que caíram durante a Segunda Guerra Mundial continuam a ser encontradas até hoje e que os alertas continuam”.

Na sequência, foi ao ponto principal e fez uma advertência: “Portanto, é bom a Ucrânia ir se preparando desde já para enfrentar durante 100 anos as consequências desta guerra”.

E completou: “Sabe-se que guerras dessa magnitude deixam consequências de longo prazo. Todas as bombas que estão sendo lançadas agora ficarão muito tempo no solo”.

Um bocado deprimente, a observação do chanceler é desalentadora mas pertinente. Em todos os países europeus que sofreram bombardeios na última guerra mundial, volta e meia se encontra uma bomba enterrada – às vezes profundamente. São artefatos que caíram de um avião, não explodiram, ficaram enterrados, mas, ao menor descuido, podem explodir.

França, Inglaterra, Bélgica, Itália, Holanda – além da própria Alemanha – são países que sofrem até hoje consequências de bombardeios intensos. A guerra terminou faz 77 anos, mas o risco continua elevado.

O grande perigo surge quando se faz uma escavação urbana – para erguer edifício, construir metrô, enterrar cabos elétricos, instalar tubulações. Se uma grande bomba é descoberta, equipes de desminagem são chamadas. As autoridades mandam evacuar os quarteirões adjacentes e os profissionais cuidam de desarmar o artefato.

Calcula-se que o subsolo de Berlim contenha cerca de 3000 artefatos não explodidos. Os berlinenses caminham sobre um barril de pólvora. Infelizmente, acidentes ocorrem. São relativamente raros, mas o risco está sempre presente.

Numa Alemanha cujo território ainda está recheado de bombas que não explodiram e permanecem enterradas, aconteceu um drama recentemente. Foi em dezembro passado, num canteiro de obras perto da estação ferroviária de Munique. As escavadeiras roçaram numa bomba de 250kg, que explodiu e deixou 4 feridos. Até o tráfego ferroviário teve de ser interrompido.

Muitas gerações futuras de ucranianos continuarão correndo o risco de viver sobre um solo minado. E não há nada que o cidadão comum possa fazer. O que está feito, está feito – as bombas e os mísseis não explodidos estão lá e lá vão continuar.

Daqui pr’a frente, a quantidade só pode aumentar. O futuro depende dos neurônios desequilibrados de uma pessoa só: Vladímir Putin.

Nunca ninguém imaginou que um homem sozinho pudesse tomar a humanidade inteira como refém.

Observação
Quando fala em “100 anos”, até que o chanceler alemão está sendo otimista. Se hoje, quase 80 anos depois do último bombardeio, Berlim ainda esconde 3 mil bombas no subsolo, a conta não fecha. Os netos dos bisnetos das crianças ucranianas de hoje ainda estarão pisando em bombas.

O patinete e o capacete

José Horta Manzano

Uma jovem carioca resolveu dar uma volta de patinete, desses de aluguel. Era a primeira vez que subia naquela geringonça. Meio insegura, bobeou, bambeou, bamboleou e se esborrachou no chão. Caiu feio. Quebrou dois dentes e ficou dias de beiço inchado. A aventura deixou-a com uma raiva danada. «– Como é que permitem não só chegar perto, mas subir num veículo tão perigoso?» Fosse a moça uma cidadã comum, a conversa teria morrido ali, assim que tivesse passado a raiva. Acontece que ela é deputada estadual, uma eleita do povo.

Assim sendo, deixou-se levar pela onda legislatória que assola o país e teve a ideia de regulamentar, por conta própria, o uso de patinete no seu estado. Pra bem legislar, nada melhor que criar gargalos e entraves. A parlamentar arquitetou as normas que lhe pareceram indispensáveis e apresentou projeto de lei tornando obrigatório o uso de capacete pra passear de patinete. No entanto, a lei imaginada pela moça contém um detalhe curioso: no caso de veículo de aluguel, caberá ao proprietário fornecer o equipamento. Assim, na prática, patinete de aluguel terá de ser alugado com capacete. Os dois juntos.

No Rio de Janeiro, os empresários do ramo estão inquietos. Se a proposição da deputada passar, o negócio de alugar patinete pode se tornar inviável. De fato, como fazer para acoplar um capacete a cada veículo sem risco de furto? Não parece, mas o investimento, desproporcional ao valor do negócio, periga inviabilizar a operação. Além disso, um perigo está embutido. Dado que o projeto de lei não detalha as características técnicas do equipamento, quem impede o dono do negócio de fornecer capacetes de baixa resistência ou até de papelão?

Acredito, sim, que patinete pode ser perigoso. Não só para o patinetista, mas principalmente para incautos pedestres que lhe possam surgir pelo caminho. Acredito, sim, que o capacete obrigatório é medida de bom senso. O que me incomoda no projeto da deputada é a obrigatoriedade feita ao dono do equipamento. Por que raios caberia a ele – e não ao usuário – tomar essa precaução?

Sabe-se que, em caso de acidente com esse tipo de veículo, muita fratura exposta poderia ser evitada com o simples uso de protetores de perna, tipo botas altas de cano duro. Caberia, porventura, ao fornecedor do patinete deixar botas à disposição do usuário?

Sabe-se também que tomar chuva fria com o corpo transpirado é perigoso e pode causar resfriado, gripe e pneumonia. Caberia, porventura, ao fornecedor do patinete deixar guarda-chuvas à disposição do usuário?

Convenhamos, minha gente: há limite pra tudo. Espero que os parlamentares do Rio se abstenham de aprovar a proposta. Em princípio, cada um tem de cuidar da própria segurança. Não é boa prática empurrar sistematicamente a terceiros a obrigação de nos proteger.

Olha o radar!

José Horta Manzano

Num momento de desatino ‒ ou inspirado sabe-se lá por qual guru ‒, doutor Bolsonaro mandou barrar a instalação de 8 mil radares nas estradas do país. Alem de afrontar o bom senso, a ordem contraria a tendência mundial de reforçar a regulamentação do tráfego rodoviário. Por toda parte, já está comprovada a relação entre a velocidade dos veículos e a gravidade dos acidentes.

Tão fora de esquadro é a decisão presidencial que até uma juíza federal se comoveu e emitiu contraordem. Não se sabe como terminará o embate, que a briga é de foice. Vença quem vencer, o balanço será ruim. Se a vontade presidencial prevalecer, perderão o utilizadores de nossas precárias estradas, que se tornarão ainda mais perigosas. Se a ordem judicial triunfar, a imagem de doutor Bolsonaro sairá do episódio ainda mais esfolada e enfraquecida.

Os franceses receberam, estes dias, confirmação da eficácia dos radares rodoviários na prevenção de acidentes. Desde que começaram a protestar, em novembro do ano passado, os Coletes Amarelos já atacaram 75% do parque de radares fixos instalados no país. Aparelhos foram queimados, derrubados, destruídos, inutilizados ou furtados. As estatísticas do primeiro trimestre, impiedosas, trazem o veredicto: o número de mortos nas estradas francesas aumentou 17% desde o início do ano. Uma subida brutal.

É fácil de entender. Os radares costumam ser instalados nos pontos perigosos, onde o motorista tende a aumentar a velocidade do carro. Ciente de que há um radar fixo, o cidadão refreia seus ímpetos pra não levar multa. Assim, contribui para desinchar as estatísticas de acidentes. Quando sabe que não há radar nenhum, o sujeito se solta. It’s human nature ‒ é natural.

Espero que o bom senso vença e que a instalação dos radares seja liberada no Brasil. É excelente caminho pra diminuir a hecatombe rodoviária brasileira, drama de características e proporções africanas.

Segredos alpinos

José Horta Manzano

Numa pirueta de linguagem, os que vivem em altitudes elevadas dizem que não é a montanha que mata, mas as pessoas é que morrem na montanha. Seja como for, alta montanha é lugar perigoso. Solidão, frio, avalanches, queda de pedras, desprendimento de blocos de gelo, bruscas mudanças atmosféricas não facilitam a vida. Ninguém está blindado contra um acidente.

Em 1942, o feriado religioso do 15 de agosto caiu num sábado. Um casal de aldeães do vilarejo de Savièse (Suíça) resolveu aproveitar o tempo ensolarado para passar o dia com amigos que, como faziam cada ano, haviam levado um rebanho de vacas para passar o verão num pasto alpino. A caminhada era longa, mas o tempo estava convidativo.

O lugar era pobre e o casal, gente simples. Ela era professora primária e ele fazia de tudo um pouco: pequeno agricultor, carpinteiro, sapateiro. Gente muito querida na aldeia. Logo depois da missa, despediram-se dos sete filhos pequenos, apanharam provisões para o almoço e partiram. Avisaram que tencionavam estar de volta à noitinha. Caso se sentissem muito cansados, passariam a noite num abrigo de montanha mas retornariam no dia seguinte.

Com fé e disposição, saíram a pé. No meio do longo caminho, estava uma geleira(1). Aquelas extensões de neve endurecida podem sair lindas em cartão postal, mas escondem perigo grande. No gelo duro e eterno, acumulado durante anos, abrem-se fendas largas e profundas como crateras. A neve do mais recente inverno recobre a superfície, fazendo que o caminhante não se dê conta de que há um buraco debaixo dos pés. O que tinha de acontecer aconteceu: o casal caiu numa greta profunda.

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No domingo, ao não os ver de volta, os aldeães imaginaram o pior. Assim mesmo, organizaram uma expedição para explorar a geleira e tentar encontrar os caminhantes sumidos. Depois de dois ou três dias de busca, foram obrigados a aceitar a realidade: os viajantes não voltariam mais. Os sete pequeninos órfãos ‒ a mais velha tinha onze anos ‒ foram distribuídos entre os vizinhos. A única coisa que sobrou do casal desaparecido foram duas ou três fotos, mais nada. Passaram-se as décadas.

As mudanças climáticas destes últimos tempos têm provocado estragos em muitos lugares. A elevação da temperatura média tem ocasionado recuo das geleiras e derretimento mais pronunciado da superfície. Faz duas semanas, um passante notou um objeto escuro pousado sobre o gelo. Imaginou que fosse uma pedra. Ao olhar mais de perto, deu-se conta de que se tratava de pertences humanos de aparência antiga. Acionou a polícia especializada em buscas de alta montanha. Constataram que se tratava de dois corpos mumificados, o de um homem e o de uma mulher.

Feitos os testes ADN(2), toda dúvida se dissipou. Tratava-se realmente do casal que desaparecera 75 anos antes. Avisados, os descendentes não se sentiram tristes, mas aliviados. Terminadas as incertezas, era chegado o momento de dar sepultura digna aos antepassados. Alguns dos filhos ainda vivem, entre eles a mais velha, hoje com 86 anos. Neste último sábado, realizou-se a cerimônia fúnebre do casal, com a presença de filhos, netos e bisnetos. Foram enterrados na aldeia de onde tinham saído numa manhã ensolarada.

As geleiras ainda guardam segredos. O derretimento destes últimos anos favorece o reaparecimento de desaparecidos. Assim mesmo, estima-se que só no Cantão suíço do Valais ainda haja despojos de 180 viajores sumidos.

(1) Geleira (ou glaciar) é acidente geográfico ausente da paisagem brasileira. Consiste numa massa de gelo formada pela neve acumulada por muitos séculos. A tepidez do verão não é suficiente para derreter a neve caída no inverno. Quando volta a estação fria, a neve superficial, de consistência meio mole, endurece e se solda às camadas inferiores. E assim por diante, neve, ligeiro derretimento, mais neve, num ciclo sem fim.

(2) ADN é o Ácido DeoxiriboNuclêico, curiosamente conhecido no Brasil pela sigla inglesa DNA.

Na antevéspera do gozo

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Não sou adepta de nenhuma teoria conspiratória. Admito, no entanto, ter sentido um frio na barriga e um arrepio percorrer meu corpo quando ouvi a notícia. Imaginei ter ouvido até uma gargalhada soturna do destino, alertando que ainda não é hora de celebrar a chegada de novos tempos para a sociedade brasileira. Como não tenho elementos para solucionar o mistério nem me sinto gabaritada para tanto, deixo para os especialistas a investigação e a análise das consequências do infausto acidente que custou a vida do ministro do STF encarregado da operação Lava a Jato.

A perplexidade com mais esse duro golpe na autoestima dos brasileiros foi tanta, porém, que meu cérebro se recusou a aprofundar o exame dos altos e baixos de nossa história contemporânea. Preferiu uma saída lateral e me induziu a juntar acontecimentos díspares para compor um painel ilustrativo de nossos traços culturais mais fortes.

Ao fim e ao cabo do desvario mental, a conclusão, inevitável, explodiu na minha cabeça: tantas tragédias acontecidas na antevéspera de eventos históricos decisivos para mudar o rumo de nosso país não podem ser mera coincidência. No processo, deve haver algum outro fator que ainda não está claro.

O batizado de Macunaíma by Tarsila do Amaral (1883-1973), artista paulista

O batizado de Macunaíma
by Tarsila do Amaral (1883-1973), artista paulista

Foi tentando interpretar as razões desse movimento pendular extremo de emoções, característico de nossa história, que me ocorreu a hipótese: há uma faceta distintiva da brasilidade que até hoje não foi investigada. Poderia se tratar, pensei eu de começo, de um transtorno bipolar, que vem nos afetando secularmente e que induz nossa sociedade a alternar momentos de grande autoestima e euforia (como acontece no Carnaval e no futebol) com momentos de depressão e autocondenação (síndrome do vira-lata do ponto de vista social e político).

Mesmo considerando a hipótese plausível, ainda faltava investigar as causas do transtorno. Tentei aprofundar a análise, introduzindo nela mais um elemento: o modo como a libido atua em cada esfera do nosso cotidiano. Pensei no grande investimento que fazemos na beleza e na exposição do próprio corpo, provável herança de nossos antepassados indígenas. Ao mesmo tempo, lembrei como incorporamos pesadas noções de pecado e culpa, decorrentes da tradição católica herdada dos colonizadores portugueses. Pareceu-me bastante provável que essas forças religiosas tenham acabado atuando como importante freio para sublimarmos o Macunaíma que insiste em viver dentro de cada um de nós.

Foi então que um insight me fez alterar ligeiramente o diagnóstico: temos, como cultura, um caráter francamente histérico diante da possibilidade de gozo. Com isso, quero dizer que nos condenamos a surfar perenemente na crista de uma onda de excitação, sem jamais encontrar descarga satisfatória. Sempre que sentimos que um orgasmo coletivo se avizinha, algo em nós se tranca, a musculatura social se retesa e impede o livre fluir das paixões, a concentração desaparece e a potência orgástica se perde, dividida em uma miríade de gratificações secundárias.

O paradoxal é que até mesmo nas esferas em que nos julgamos superiores aos demais povos – como na alegria, na conciliação, na inventividade e na capacidade de superação de obstáculos ‒ estamos sempre a um passo de atingir a merecida consagração, mas algo inesperado acontece que nos força a permanecer num platô intermediário que não é total prazer nem total alívio.

Relembrando e exemplificando: foi assim quando nos preparávamos para retomar a posse plena de nossa cidadania e explodiu em nosso colo a notícia de que a emenda de restabelecimento da eleição direta para a presidência não tinha passado no Congresso. Na sequência, novo coito interrompido quando tivemos de amargar a morte do primeiro presidente civil, Tancredo Neves, antes mesmo de ele tomar posse, após 21 anos de convívio com o arbítrio e o desprazer. A mesma quebra de expectativa se abateu sobre nosso organismo cívico quando, poucos meses depois de termos eleito o primeiro presidente civil por voto direto, fomos forçados a admitir que tínhamos escolhido uma raposa-marajá para tomar conta do galinheiro.

Outro ciclo de excitação e engrandecimento teve início com os avanços do governo social-democrata de Fernando Henrique e seu plano de controle da inflação. Já antevíamos o raiar esplendoroso do dia em que o Brasil seria finalmente reconhecido como um país sério, uma economia de primeiro mundo e um centro político de excelência. Logo, no entanto, nos entediamos com esse projeto de poder certinho demais, elitizado demais, intelectualizado demais. Em resumo, estávamos cansados da relação tipo “papai e mamãe” que mantínhamos com o poder central.

morte-1Já se agitava em nosso peito a vontade de nos deixarmos seduzir por um parceiro mais propriamente “latino”, mais fogoso e com mais “pegada” para diminuir as desigualdades sociais, nossa principal fonte de preocupações e culpa. Nos encantamos com o guerreiro-camponês que chegou embalado ao som do apelo de ‘sem medo de ser feliz’. Tudo ia bem na relação, quando ele resolveu nos propor um ménage à trois e trouxe uma mulher para dar continuidade aos tempos de diversão sem culpa. Não demorou muito para que nosso superego começasse a emitir sinais de alerta de que nosso parceiro não tinha intenções sérias, só queria se divertir.

Quando essa mulher tentou nos convencer de que poderíamos extrair prazer também do “amor que não ousa dizer seu nome”, a coisa desandou de vez. Reinstalou-se entre nós de imediato o desejo de autocontrole, de moralidade irrestrita e expurgo de todos os vícios.

A sequência desse enredo de ligações perigosas todos já conhecem: um acidente de avião matou o único candidato com brilho nos olhos e que prometia nos levar a sério, Eduardo Campos. Agora, face a mais um acidente inexplicado e inexplicável atravessando nosso caminho rumo ao prazer total, impossível não perguntar: com a saída de cena de Teori, quem poderá investigar a folha corrida de todos os nossos futuros parceiros amorosos e nos tranquilizar quanto à índole não-perversa dos atuais?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Balanço de fim de ano

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Em anos normais, fujo das retrospectivas ‒ que pululam por toda parte ‒ como o diabo foge da cruz. Além daquele gosto azedo de “déjà-vu”, as imagens coladas umas às outras em flashes alucinados, acompanhadas por uma locução empostada e altissonante, só fazem reforçar minha sensação de enjoo, tontura e ressaca, como se eu tivesse passado o ano envolta em desenfreada esbórnia.

Neste ano terrível que periga não se despedir sem novas pitadas de indigestos acontecimentos, manter a televisão, o rádio, o computador, o celular, a internet e as redes sociais inoperantes é decisivamente questão de saúde mental. Ninguém, acredito eu, vai ter estômago nem fígado para digerir a sucessão de eventos trágicos que envenenaram nossos dias por estas bandas, nem aqueles que enlamearam mais uma vez a história da civilização universal.

check-list-1Como já disse muitas vezes, invejo os animais por sua capacidade de viver apenas no presente. O passado, idealmente, deveria estar a serviço de nosso aprendizado, desvelando a estupidez das escolhas erradas que fizemos e iluminando nossa capacidade de nos desviarmos dos buracos e becos sem saída. Infelizmente, não é assim. A montanha-russa de imagens e sons recortados acaba inexoravelmente por reativar mágoas e ressentimentos que julgávamos adormecidos, ajudando a cavar ainda mais fundo o fosso que separa os que acreditam ter se posicionado do lado certo da história e os que se deixaram iludir por apostas temerárias.

Não quero jogar mais gasolina nesse incêndio, mas não posso me furtar a apontar uma assustadora analogia entre as decisões que tivemos de tomar no plano econômico, político e social ao longo do ano e o trágico acidente aéreo que vitimou a equipe de Chapecó. Acompanhem comigo as coincidências e vejam se não tenho razão.

Os dirigentes do time vice-campeão da Copa Brasil precisavam contratar uma companhia aérea para nos levar até o destino com que sonhávamos há muitas gerações. Tinham uma importante final de campeonato de ética e capacidade de gestão pela frente e sentiam que já estavam preparados para garantir o cumprimento das regras pelos jogadores e técnicos. Ainda que de modo titubeante, recrutaram analistas e consultores especializados para pesquisar os antecedentes e os critérios de qualidade adotados pelas empresas interessadas na licitação. Estes entregaram seus relatórios, aconselhando que o contrato fosse fechado com a empresa que demonstrasse possuir os recursos técnicos mais avançados e a equipe mais idônea e mais comprometida com o bem-estar dos passageiros. Entretanto, depois de muito ponderarem, os dirigentes, ainda assustados com as perspectivas sombrias de prolongamento da crise financeira do clube, acabaram optando pela companhia que propôs o custo mais baixo.

Estadio 1Embora pequena, essa empresa já havia lhes prestado serviços minimamente satisfatórios em ocasiões anteriores. Se o nível de conforto e segurança que ela propunha não podia ser descrito exatamente como o ideal, ao menos eles encontravam consolo no fato de que o piloto escolhido para comandar o voo já conhecia a região e estava familiarizado com as carências e desejos dos passageiros.

O avião praticamente lotado com nossas esperanças de um futuro melhor estava na cabeceira da pista, pronto para decolar, mas faltava aguardar a autorização do controle aeronáutico. O despachante da companhia vencedora havia entregado o plano de voo no último minuto e algumas irregularidades na documentação haviam sido constatadas. Os órgãos responsáveis pela autorização da decolagem (TCU, TSE e STF) alertaram que não havia combustível de reserva para chegar com segurança ao destino caso houvesse alguma emergência. O despachante deu de ombros ao alerta e respondeu com certa empáfia: “Faremos o trajeto em tempo menor, não se preocupem”.

Intimidados diante do histórico de aprovação automática dos planos de voo em todas as administrações anteriores, os órgãos controladores limitaram-se a assinar, com ressalvas, a autorização. O avião decolou. Tudo correu como previsto nos primeiros minutos, mas, logo depois de a aeronave ter estabilizado e entrado em velocidade de cruzeiro, pequenos sinais de alerta de mau funcionamento começaram a surgir por todos os lados. O espaço exíguo entre as poltronas, o forte ruído interno, o precário serviço de bordo e a desatenção da equipe de comissários para com as necessidades especiais de alguns passageiros somaram-se à turbulência típica do trajeto e detonaram um clima generalizado de insatisfação.

Havia uma escala prevista para reabastecimento (convocação de eleição direta), mas o piloto – que também era um dos sócios-proprietários da companhia – optou por não fazê-la. Sabia que a margem de lucro da empresa seria seriamente comprometida se tivesse de pagar por mais combustível e confiava cegamente em sua própria capacidade de encurtar o tempo de viagem. Acreditava também que bastaria conceder algumas benesses aqui e ali, distribuir sorrisos e se mostrar simpático para que os passageiros mais exaltados se aquietassem.

aviao-17A poucas milhas do destino, no entanto, percebeu que os tanques da aeronave estavam praticamente esgotados. Relutantemente, acionou a torre de controle e pediu prioridade para pouso, sem informar com exatidão qual era a emergência a bordo (aprovação da PEC do Teto e Reforma da Previdência). Foi informado de que já havia outra aeronave nessa condição (dívida dos Estados). Foi orientado a dar voltas até que a outra pousasse.

Um tanto temeroso, mas ainda confiante de chegar com segurança ao destino, uma vez que já havia enfrentado situações de risco semelhantes, o piloto permaneceu em silêncio por mais alguns minutos. Aos poucos, a aeronave foi perdendo altitude e se aproximando perigosamente do cume das montanhas da região. Angustiado, o piloto deu-se por parcialmente vencido. Sem usar o código internacional obrigatório que poderia colocá-lo imediatamente em terra firme, gastou, tresloucado, os poucos segundos de que dispunha para admitir que enfrentava pane elétrica total causada pela falta de combustível (crise ética e decorrente falta de credibilidade da tripulação) e solicitar que lhe fossem informados os vetores para o pouso. Infelizmente, era tarde demais. O choque com a montanha Lava a Jato foi inescapável.

O que pretendo demonstrar com essa analogia? Será que a retrospectiva de 2016 pode ser resumida como crônica de uma morte anunciada? Não, ainda não. Anime-se, foram encontrados sobreviventes! Cerca de 10% dos passageiros escaparam da morte e já se preparam para voltar a campo.

Feliz 2017 para todos.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Mayday

José Horta Manzano

Você sabia?

Roda pela internet a gravação do afligente diálogo travado entre a torre de controle do aeroporto de Medellín e o piloto do avião que levava a equipe do Chapecoense. O diálogo é tão angustiante que pulei uns trechos e preferi não ouvir de novo.

O piloto há de ter pronunciado, três vezes seguidas, a expressão Mayday. É anúncio reconhecido internacionalmente como pedido de socorro urgente, sinal de emergência máxima, a ser utilizado exclusivamente em situação de perigo gravíssimo e iminente. Se o piloto chegou a pronunciar a frase abre-alas, terá sido tarde demais, quando não havia mais o que fazer.

aviao-17Nem todos conhecem a origem da estranha expressão. De onde vem? Que significa na origem? Em inglês, traduzindo ao pé da letra, dá «dia de maio», conjunto de palavras sem sentido.

Mayday é aproximação fonética, pelos cânones da língua inglesa, de expressão francesa. O original é: «Venez m’aider» ‒ venham me ajudar. Para simplificar o pedido de socorro, ficou combinado truncar a frase e dizer somente «m’aider», que soa «mayday» em inglês. Portanto, Mayday é «me ajude». Ou «ajude-me», vai do gosto do freguês.

Se a expressão francesa fosse adaptada a nossa fonética, ficaria: «medê». Dado que, em inglês, os sons vocálicos são quase todos ditongados, deu «mayday». Pouco importa o sotaque, o importante é que todos os profissionais ligados à aeronáutica conheçam o desesperado pedido de socorro. Na aviação, pilotos, controladores, tripulação e todos os outros sabem que, uma vez irradiado, esse código é pra ser levado a sério. De verdade.

Mayday não é a única expressão francesa usada pra pedir ajuda na navegação marítima e aérea. «Pan-pan» é outra, derivada do francês «panne-panne». Como fica evidente, informa que há pane a bordo. Tem menos força que Mayday. Pode indicar, por exemplo, que um passageiro está passando mal e precisa de assistência médica. «Pan-pan» também tem de ser pronunciada três vezes. É seguida obrigatoriamente de explicação.

aviao-18Há outros chamados decalcados da língua francesa. Por exemplo, o surpreendente «Seelonce», transcrição de «Silence», um pedido para que outros usuários se abstenham de utilizar a mesma frequência. Um pedido de emergência absoluta pode ser anunciado como «Seelonce Mayday». Em seguida, para informar que a frequência está de novo liberada, o código é «Seelonce Feenee», transcrição inglesa de «Silence fini» ‒ acabou o silêncio.

Como é possível que subsistam expressões francesas num universo ultradominado pelo inglês? É que não foram introduzidas hoje. Vêm de um tempo em que a aeronáutica estava mais desenvolvida na França do que em outros países.

Caixa preta

José Horta Manzano

Vivemos no século 21. Todo o mundo tem telefone no bolso. Com dois cliques, sem se levantar da cadeira, qualquer um pode ter acesso ao outro lado do planeta. Coisas de ficção científica, como conversas ao vivo com som e imagem, tornaram-se corriqueiras e estão ao alcance de qualquer um.

Liga-se a tevê e pronto: lá está uma emissora internacional mostrando, ao vivo, um incêndio no Bangladesh, uma inundação na Mongólia, um tumulto em Moscou, o enterro de um figurão africano.

Caixa preta

Caixa preta

Li ontem que um jovem americano sobrevive, há ano e meio, sem coração ‒ no sentido próprio. Enquanto não aparece um órgão compatível para transplante, o que lhe foi retirado vem sendo substituído por uma maquineta de 6kg acondicionada numa mochila que o moço carrega às costas. O rapaz se movimenta, anda, sai à rua, fala, pensa, vive vida quase normal.

Mister Obama sabe, em tempo real, o que se trama em gabinetes de governos estrangeiros importantes. Mister Cameron, Frau Merkel, Mister Xi Jinping e Господин Putin(*) também sabem.

O distinto leitor pode até conhecer o site que vou nomear. Se não for o caso, aqui vai a dica. Quando estiver à espera de um conhecido que está viajando de avião, o interessantíssimo site Flight Radar é de grande utilidade. Serve também como passatempo pra momentos de farniente. Com três cliques, aparece o mapa-múndi com todos os aviões que voam naquele momento. Em movimento e em tempo real, com zoom, identificação e roteiro de cada aparelho. Um assombro.

Faz um mês, um avião da companhia EgyptAir desapareceu dos radares quando sobrevoava o Mediterrâneo. Destroços evidenciam que o aparelho se precipitou no mar. A França deslocou navios da Marinha, dotados de sonares altamente sensíveis, para a região onde se supõe que o avião tenha despencado. Faz quatro semanas que buscam as caixas pretas que encerram dados técnicos do voo e gravação dos sons da cabine. Na realidade, a cor das caixas é laranja, o que não altera o problema.

Imagem do site Flight Radar clique para ampliar

Imagem do site Flight Radar
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Nada garante que os objetos sejam um dia encontrados. Ainda que localizados, não é certo que estejam em condições de revelar os segredos que contêm. Supondo que não se as localizem nunca, ficaremos sem saber o que aconteceu. Erro humano, ação deliberada, falha mecânica, atentado terrorista? É possível que nunca se venha a conhecer a verdade.

Tendo na mão um telefone conectado a um satélite, qualquer um pode ser localizado, ouvido e gravado ainda que se encontre em pleno Sahara. Como é possível que conversas e dados de voo não seja registrados em tempo real e dependam de um disco rígido inserido numa frágil caixinha de metal que pode terminar no fundo do mar?

Para não iniciados, como eu, é um espanto.

Interligne 18c

(*) Господин (= Gaspadín) é marca de respeito que os russos antepõem ao nome de alguém. Nos tempos da União Soviética, o uso foi suspenso. Todos passaram a tratar-se por Товарищ (= Tavárich), ou seja, ‘camarada’. Derrubado o Muro de Berlim, tudo voltou ao que era antes no quartel de Abrantes.

Uma fábula contemporânea

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Coroa de rei

Era um reino grande, bonito por natureza e relativamente poderoso, mas sempre às voltas com a indolência e a indisciplina de seus cortesãos. Buscavam todos com avidez formas de agradar o rei, sem que para isso tivessem de fazer muito esforço. O fundamental, diziam, era que o rei acreditasse piamente que era amado por seu povo, respeitado por outros reinos e que sua fama de ser capaz de superar as piores adversidades jamais seria maculada.

O tesoureiro do rei era um dos mais criativos nessa missão. Sempre que o rei extrapolava nos gastos com guerras, acordos internacionais, recepção festiva a embaixadores estrangeiros, saraus, importação de cosméticos e roupas especiais para a rainha ou brinquedos para os príncipes, ele conseguia convencê-lo a introduzir novos tributos.

Rio Alma 1

O reino já tinha até mesmo conquistado fama além-fronteiras por ter inovado na geração de novas receitas. Cobrava-se, por exemplo, pela utilização dos espaços públicos, assim como pelo uso das águas dos rios e córregos. “Tudo isso reverte em favor das pessoas”, orgulhava-se em alardear o tesoureiro. “Afinal, a população não teria como sobreviver, cuidar de suas plantações e animais e transportar suas mercadorias se não pudesse contar com a generosa natureza de nosso reino e com a magnanimidade de nosso rei que não se opõe a compartilhá-la com o gentio. Nada mais justo, então, que todos paguem para usufruir dessas benesses”, concluía ele.

Secretamente, o tesoureiro vinha trabalhando na criação de um novo imposto que incidiria sobre o ar respirado, demorando-se apenas na finalização do difícil trabalho de estabelecer alíquotas proporcionais à estatura, peso, gênero, idade e condição física de cada cidadão. Mesmo antevendo novas e virulentas revoltas da população, nada abalava seu ânimo, já que sabia que podia contar com o fervor da guarda palaciana para refrear a fúria da população.

by Robert Thaves, desenhista americano

by Robert Thaves, desenhista americano

Outro que se esmerava em projetar uma imagem de dinamismo e inovação para o atendimento dos interesses do rei era o administrador do principal burgo do reino. Sabia ele que o rei apreciava fazer longos passeios diários em visita a suas múltiplas herdades, sempre cercado por seu séquito. Com isso, as estradas do reino estavam sempre congestionadas e, para facilitar a passagem de tantas carruagens e carroças de apoio, o administrador optava por interditá-las por longos períodos. Não havia como estipular a duração exata da obstrução na ida e na volta, uma vez que o rei não podia ser importunado com a pequenez de problemas administrativos.

Trafic 1Pouco tempo se passou para que as primeiras reclamações furiosas começassem a chegar. Muitos camponeses se queixavam das dificuldades para levar seus produtos até o burgo e alguns, descrentes de que a situação pudesse mudar a curto prazo, optavam por fazer o percurso a pé, carregando nas costas enormes cestos de palha.

Fosse como fosse, os congestionamentos e os vários acidentes envolvendo cavalos, pessoas, cestos, carruagens e carroças começaram a incomodar o administrador. Temendo que os sinais de descontentamento da população fossem percebidos pelo rei, ele teve, então, a ideia de dividir todas as estradas e ruas do burgo em duas faixas: uma mais larga para uso exclusivo da família real e de seu entourage – à qual deu o nome de faixa nobre; e outra, bem mais estreita, para o tráfego de carroças e uso dos cidadãos comuns, que passou a designar como faixa de serviço. O projeto amainou os conflitos por algum tempo, mas logo novas reclamações começaram a pipocar.

Trafic 2Os conflitos mais sérios passaram a acontecer nos dias em que o rei decidia ir à caça, acompanhado de membros da família real, dos cortesãos de praxe, de seus auxiliares diretos, de suas matilhas de cães e, ainda, dos servos encarregados de alimentá-los, hidratá-los e recolher suas fezes. Se os cortesãos podiam se valer da faixa nobre para sua locomoção, aos demais participantes dessas empreitadas só restava utilizar a faixa de serviço, compartilhando-a com os cidadãos comuns.

Embora os enormes congestionamentos na faixa de serviço fossem o ponto focal da maioria das reclamações, os vários acidentes e incidentes envolvendo agora cavalos, cães e pessoas de todas as estirpes tornaram-se alvo de agudas críticas e novas preocupações para o administrador.

Ciclofaixa do futuro

Ciclofaixa do futuro

Num dia em que o rei perdeu dois de seus melhores cães atropelados, o administrador percebeu que não havia mais como adiar a tarefa de refazer a divisão das faixas de trânsito. Relutantemente, diminuiu alguns poucos centímetros da faixa nobre e dividiu o espaço restante em duas novas faixas: uma pela qual deveriam circular as carroças dos auxiliares diretos e os servos do rei, a população e suas carroças de transporte de mercadorias; a terceira e nova faixa destinava-se exclusivamente à circulação dos cães da matilha real.

O que aconteceu após a implantação da nova regulamentação de tráfego? Um imprevisto e incontrolável aumento no número de queixas, vindas desta vez tanto da nobreza quanto dos cidadãos comuns. O problema agora era que as faixas de tráfego haviam se tornado tão estreitas que, inevitavelmente, as carruagens e carroças colidiam umas com as outras, as pessoas eram pisoteadas por cavalos e mordidas por cães, e estes continuavam a ser atropelados e mortos por não respeitarem as divisórias de faixas – uma situação compreensível não só por se tratar de animais irracionais, mas principalmente porque os cachorros do rei não estavam acostumados a obedecer a limites.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Vem de cima

José Horta Manzano

Cachorro 13Desde pequenino, a gente ouve dizer que o exemplo vem de cima. É pura verdade. Assim como a criança se molda imitando os adultos, a sociedade se norteia pelo exemplo de seus líderes. É lógica da qual não dá pra escapar.

O cão rosna para afastar quem ousar se aproximar dele na hora da comida. Por natureza, o homem também é egoísta. Se se deixar dominar pelo instinto, não há de se comportar de modo diferente. Não somos espontaneamente altruístas – muito pelo contrário. «Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro.»

Assalto 1A educação, a família, a escola, a sociedade e – mais importante ainda – os que estão no topo da pirâmide são os que ditam o ritmo e o tempo da valsa. Com pequenas variantes individuais, os cidadãos de determinada sociedade costumam agir e reagir de modo coerente e homogêneo.

Petrificado, leio que vítimas de um desastre ferroviário nos arrabaldes do Rio de Janeiro foram assaltadas enquanto aguardavam por socorro.

Já tinha ouvido falar em roubo de carga espalhada na estrada por motivo de colisão de veículos. Já tinha ouvido falar em saqueio a casas abandonadas por motivo de terremoto ou tsunami. Já tinha até ouvido falar em assalto a cidadãos presos no tráfego e impossibilitados de se defender.

Ambulância 1De agressão a vítimas de acidente, é a primeira vez que tenho notícia. Parece difícil que nossa sociedade descambe ainda mais baixo na escala da selvageria. Até brutamontes do Velho Oeste sabiam que não se atira em homem caído. Todo bandido sabe que tampouco se deve atirar em ambulância.

Assaltar vítimas de desgraça – infligindo-lhes, assim, duplo castigo – é covarde e ignóbil. É ato incompreensível num País cuja presidente afirmou, ainda outro dia, que seu governo é «o que mais tem combatido malfeitos».

Das duas, uma:

Interligne vertical 151) A correia de transmissão de valores, que deveria conduzir o exemplo do topo à base, está emperrada. Há que providenciar conserto urgente.

2) Ou então – o que é bem pior – a correia está, sim, funcionando. O comportamento abjecto dos que assaltaram vítimas de desastre é mero reflexo do comportamento dos inquilinos do andar de cima. Os valores do topo estão-se alastrando para a base. Meu pirão primeiro, companheiro!

O distinto leitor é livre de escolher a opção que lhe pareça mais adequada.

A insensatez

José Horta Manzano

As palavras têm peso. Quanto mais elevada for a posição de quem as exprime, maior será o impacto do que disser. Nem todos os dirigentes se dão conta disso.

Muito tempo atrás, o mundo era dividido entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos. O Brasil se situava entre estes últimos. Um dia, já faz uns 40 anos, chegou-se à conclusão de que a expressão subdesenvolvido era pesada e infamante. Foi substituída por em desenvolvimento. Na prática, nada mudou: nosso país continuou na mesma categoria.

Mais recentemente, firmou-se a convicção de que uma meia dúzia de países subdesenvolvidos ― oops, em desenvolvimento ― pesavam mais que os outros. Foi-lhes atribuído outro epíteto. Passaram à categoria de potências emergentes. Entre os promovidos, ainda que fosse pela macicez de sua população, figura o Brasil.

Interligne 18c

Um avião de linha caiu ontem na Ucrânia. Despencou justamente numa zona conflagrada, nos confins do país, a poucos quilômetros da fronteira com a Rússia. Segundo especialistas, é forte a probabilidade de que o aparelho ― que explodiu em voo ― tenha sido vítima de míssil terra-ar.

Cada um tem seu palpite sobre o que possa ter ocorrido: erro, distração, ataque proposital. Uns acham que o exército ucraniano possa ter disparado o foguete mortífero. Outros garantem que isso só pode ser obra dos insurgentes ucranianos pró-russos. Ainda há quem veja o dedo de Moscou por detrás do desastre.

Dificilmente saberemos nós, meros mortais, o que realmente aconteceu. Ainda que se descubra ― ou já se saiba ― como foi, é pouquíssimo provável que a verdade seja um dia revelada à larga.

Os grandes deste mundo já se pronunciaram sobre o acidente. Barack Obama, François Hollande, Angela Merkel & companhia se limitaram, como manda o figurino, a declarações de pesar e a condolências dirigidas à família das vítimas.

Nossa presidente não se esquivou. Afirmou que o governo brasileiro não deverá se manifestar sobre a queda do avião. Manifestar-se para dizer que não vai se manifestar já é, em sim, incongruente. É como aquele sujeito que bate à sua porta para dizer que hoje não vai poder vir. Mas dona Dilma foi mais longe.

Dilma Rousseff & Vladimir Putin

Dilma Rousseff & Vladimir Putin

Esquecendo-se de que a expressão «potência emergente» inclui a ideia de «potência», soltou palavras pra lá de desconcertantes. Além de manifestar-se para dizer que não ia se manifestar, acrescentou que, segundo órgãos da imprensa, «o avião derrubado estava na rota da volta do presidente Putin. Hora e percurso coincidiam. O míssil seria, então, dirigido ao avião presidencial».

É raro que um chefe de Estado se arrisque tanto em situação tão incerta. Incapaz de liberar-se de seu complexo de vira-lata, a chefe do Brasil-potência não se deu conta de que sua fala é analisada com atenção em chancelarias estrangeiras e jogou pesado. Insinuou que inimigos do senhor Putin estariam por detrás do atentado. Naquela região, de inimigos, o senhor Putin tem um só: o governo constituído da Ucrânia, eleito há poucos meses.

A ousadia de quem soprou essa extravagante mensagem a nossa incauta presidente nos põe numa saia pra lá de apertada. A chefe do Estado brasileiro ― voz oficial da nação! ― acusa, por meio de um circunlóquio, que Kiev tentou assassinar o presidente da Rússia.

Essa desajuizada declaração é um desastre diplomático. Demonstra mais uma vez, se ainda fosse necessário, que a cúpula instalada do Planalto não leva jeito para dirigir nosso País.

Mais dia, menos dia, russos, ucranianos pró-russos e ucranianos antirrussos vão acabar se entendendo. A conflagração vai logo ser coisa do passado, que não interessa a ninguém que se eternize. Feitas as pazes entre os beligerantes, sobrarão três grandes vítimas do evento.

A primeira, naturalmente, são os que viajavam dentro do aparelho derrubado. Vítimas inocentes que ― e é isso que nos consola ― devem ter expirado na hora, sem tempo de se dar conta do que acontecia.

A segunda vítima deverá ser a companhia aérea malaia. Tendo em conta que um de seus aviões já desapareceu misteriosamente quatro meses atrás, este novo golpe periga ser fatal para a empresa.

A terceira vítima, por obra e graça de nossos preclaros dirigentes, será a relação entre o Brasil e a Ucrânia. E tudo por causa de palavras levianas pronunciadas ― sem a menor necessidade ― por nossa presidente. Quanta insensatez!

Coerência no futebol

José Horta Manzano

Panico 1Outro dia, ao perder para a Alemanha por 7 a 1, nossa equipe nacional de futebol deu susto em todo o mundo. Nem o mais ousado dos videntes, nem o mais pernudo dos polvos teria previsto placar tão elástico.

É difícil encontrar explicação. Quando sobrevém um acontecimento fora de toda previsão e de todo controle, costumamos falar em acidente. Foi a palavra mais utilizada para descrever a hecatombe.

Os ingleses se referiram ao fato como mishap. Os franceses tanto usaram mésaventure como accident de parcours. Quanto aos italianos, deram preferência a disavventura. E os espanhóis disseram percance.

Bom, isso valeu para o 7 a 1. Assim como raio não costuma cair duas vezes no mesmo lugar, a segunda derrota seguida da Seleção muda o cenário.

by João Bosco Jacó de Azevedo, desenhista paraense

by João Bosco Jacó de Azevedo, desenhista paraense

O fato de o «scratch»(*) nacional perder de goleada dois jogos consecutivos ― em Copa do Mundo jogada em casa! ― já não se encaixa mais no departamento de acidentes. Os bilhões de telespectadores que assistimos aos lances principais desta Copa estamos a nos perguntar se os termos da explicação não estariam invertidos.

Sim, agora tudo parece indicar que, se acidente houve, foi o resultado dos primeiros jogos da Seleção. Agora dá pra entender o que estava por detrás daquelas vitórias sofridas, estreitinhas, acudidas por pênaltis inexistentes, resolvidas na loteria do tiro ao alvo e salvas por bolas na trave.

Passarinho 2Pensando bem, até que há lógica nisso tudo. Nosso país, por decisão de seus perspicazes e ilibados líderes, caminha em marcha forçada para se tornar uma Venezuela. Nessa perspectiva, dispor de equipe nacional de futebol de padrão Fifa não combina. A lógica elementar exige que nosso futebol se aproxime do padrão bolivariano.

É o que está acontecendo. É coerente e faz sentido.

Interligne 37l

(*) Scratchera um dos nomes que se dava ao grupo de jogadores selecionados para representar o futebol do País. Falo do tempo em que o Brasil era respeitado em campo. Falo daquela época em que a simples visão de uma camisa amarela fazia qualquer adversário engolir em seco.

Mineirinho no tribunal

José Horta Manzano

Depois de refletir um pouco, seu Bento, o mineirinho, chegou à conclusão de que os ferimentos que tinha sofrido num acidente de tráfego, duas semanas antes, eram suficientemente sérios. Valia a pena processar o dono do outro carro.Tribunal

No tribunal, o advogado do réu começou a inquirir seu Bento:  

Advogado: 
― O Senhor não disse na hora do acidente que estava muito bem?

Seu Bento: 
― Bão, vô-lhe contá o que acunteceu. Eu tinha acabado di colocá minha mula favorita na caminhonete…

Advogado (interrompendo): 
― Eu não pedi detalhes! Só responda à pergunta, o senhor não disse na cena do acidente que estava muito bem?

Seu Bento: 
― Bão, eu fiz a mula subi na caminhonete e tava desceno a rodovia…

Advogado (dirigindo-se ao juiz): 
― Meritíssimo, estou tentando estabelecer os fatos aqui. Na cena do acidente este homem disse ao patrulheiro rodoviário que estava bem. Agora, várias semanas depois, ele está processando meu cliente. Isso é tentativa de estelionato! É uma farsa! Por favor, poderia dizer a ele que simplesmente responda à pergunta?

Mas, a essa altura, o juiz estava muito interessado na resposta de seu Bento e respondeu ao advogado:

― Eu gostaria de ouvir até o fim o que ele tem a dizer.

Seu Bento agradeceu ao juiz e prosseguiu:

― Como eu tava dizeno, fiz subi a mula na caminhonete e tava  desceno a rodovia quando uma picapi atravessô o sinar vermeio e bateu na minha caminhonete bem na laterar. Eu fui jogado fora do carro prum lado da esa e a mula foi jogada protro lado. Eu tava muito firido e num pudia mi movê.

E continuou:

― De quarqué jeito, eu pudia ouvi a mula zurrano e grunhino e, pelo baruio, eu pude percebê que ela tava muito mar. Logo adispois do acidente, os guarda chegô no locar. Teve um que oviu a mula gritano e zurrano e foi até onde ela tava. Depois de dá uma zoiada nela, ele pegô a arma e atirô bem nos ôio do animar. Então, o policiar atravessô a estrada ca arma na mão, oiô pra mim e disse ansim:

― Óia, sua mula tava muito mar e eu tive que atirá nela. Cumé que o senhô tá se sentino?

― O senhô ia respondê o quê, meritísso?”