Jiang Zemin

José Horta Manzano

Jiang Zemin faleceu dois dias atrás aos 96 anos. O homem político assumiu altas funções no governo de Pequim em 1989 e permaneceu na liderança da China por 15 anos. Jiang assumiu as rédeas em seguida ao massacre da Praça da Paz Celestial. Coube-lhe administrar o soerguimento do país da condição de pária ao status de potência.

Engenheiro de formação, aderiu a Partido Comunista quando ainda era estudante. Que se saiba, foi o único líder chinês capaz de se comunicar em inglês. Falava russo e, dizem, também outras línguas.

Na quinta-feira 25 de março de 1999, Jiang Zemin, então presidente da China, estava na Suíça em visita oficial. A recepção havia sido preparada em detalhe e tudo corria bem. Cordões de isolamento, crianças agitando bandeirinhas, percurso em limusine (dessas que começam aqui e terminam na esquina), autoridades sorridentes, flores por toda parte.

Em Berna, assim que a comitiva parou na praça do Palácio Federal à porta do edifício que abriga o governo e o parlamento suíço (que corresponde à brasiliense Praça dos Três Poderes), a coisa subitamente desandou.

Vaias, gritos, apitos se fizeram ouvir. Do alto do prédios próximos desenrolaram-se bandeiras do Tibete, país ocupado e anexado por Pequim nos anos 1950. Cartazes com os dizeres «Free Tibet» apareceram por toda parte. As autoridades suíças, que não esperavam por essa, não sabiam se riam ou choravam.

O presidente da China, homem orgulhoso e colérico, teve um ataque de fúria. Rispidamente, perguntou à presidente da Confederação Suíça se ela não tinha capacidade de controlar seu próprio povo. E emendou, enfezado: «Vocês acabam de perder um bom amigo!».

Assim mesmo, o resto do programa foi cumprido. Mas o mandachuva chinês continuava muito chateado. Como é praxe, veio a troca de presentes. O governo suíço ofereceu ao chinês uma caixinha de música de grande valor, uma preciosidade, toda esculpida e pintada à mão, uma maravilha mecânica. E o visitante, depois de examinar o presente, ousou: «Ela parece funcionar melhor que a segurança deste país».

O visitante, pouco afeito à liberdade de opinião de que gozam os cidadãos europeus, não conseguia entender que “perigosos manifestantes” pudessem ter sido deixados à vontade. Em seu país, esse tipo de acontecimento é inconcebível. Antes de eventos importantes, tomam-se as devidas providências para dedetizar o terreno, esconder a miséria e tirar de circulação potenciais manifestantes.

A visita continuou num clima azedo. Passaram-se 23 anos e nenhum dirigente máximo chinês tornou a visitar a Suíça em caráter oficial.

As viúvas de Bolsonaro

José Horta Manzano

 


Visão de mundo das carpideiras do mito defunto


 

Entre os dois turnos da eleição, Bolsonaro já havia deixado clara sua visão do povo brasileiro. Foi quando insinuou que o Nordeste era povoado por analfabetos e ignorantes, razão pela qual votam no Lula.

Traduzindo o pensamento transcendente de Seu Mestre, deduz-se que os brasileiros não são todos iguais. Por um lado, há os que votaram no “mito”, cidadãos letrados e inteligentes cujo voto deveria valer mais que o dos outros. Por outro, há os que preferiram Lula, cidadãos de segunda classe cujo voto teria de ser impedido a qualquer custo.

A declaração do presidente deu sinal verde para as blitzes efetuadas no Nordeste pela PRF no dia do segundo turno. O objetivo era impedir que cidadãos de segunda classe se aproximassem da urna eletrônica. Pode até ser que milhares de eleitores tenham sido mandados de volta pra casa naquele dia, talvez se descubra um dia.

Outra consequência da senha lançada por Seu Mestre afetou o bom funcionamento do país inteiro. Foram os bloqueios que devotos do capitão montaram nas estradas, enquanto outros discípulos decidiram organizar manifestações de protesto defronte a quartéis do Exército. Todos fantasiados de verde-amarelo como manda o figurino.

De memória de eleitor, ninguém nunca viu, desde a redemocratização, hordas de carpideiras chorarem a má sorte do candidato perdedor e organizarem manifestações de indignação em que o Exército é chamado pra dar um jeito. De tão fora de esquadro, a coisa roça o grotesco.

Atribua-se ao capitão a culpa dessa baderna que perturba a vida da sociedade inteira. Foi ele quem fez seus seguidores acreditarem que estavam um degrau acima dos eleitores do candidato adversário. É essa a lógica que embasa a indignação dos protestatários, que devem pensar: “Como assim? O voto dos cidadãos de segunda classe não pode sobrepujar o nosso!”. Daí o sentimento de ódio e revolta.

Se faz urgente um trabalho de retropedalada. É preciso mostrar a esses indignados que, diferentemente do que parecem acreditar, a escravidão não foi reinstaurada no país. Não há dois níveis de cidadania. Todos os conterrâneos têm direitos e deveres iguais. O voto do bonitão vale tanto quanto o do esfarrapado.

Vai ser muito difícil mudar essa visão distorcida. Essa gente vai continuar esperando um próximo messias que venha salvá-los.

A coragem da velhinha da boina

José Horta Manzano

Todos os que se opuseram frontalmente a Vladímir Putin ou foram assassinados ou estão presos. Sobrou um pacifista aqui, um iluminado ali, um resmungão acolá. Nos tempos atuais, ser iluminado, universalista, saudosista, resmungão ou vegano ainda passa. Mas falar em pacifismo em tempo de guerra é pecado mortal.

A polícia do Estado putiniano mantém sempre olho vivo nesses perigosos agitadores. Ao menor sinal, são imediatamente retirados de circulação antes que contaminem outros cidadãos.

Faz alguns dias, Putin fez aprovar novíssima lei que pune com até 15 anos de cadeia quem ousar se opor à invasão da Ucrânia. A mera utilização da palavra guerra (Война = vainá) pode levar o petulante a ser enquadrado como “terrorista” e a incorrer no mesmo artigo de lei.

Com tantos oponentes presos ou envenenados, uma velhinha pequenina, Yelena Osipova, tornou-se o rosto da frágil oposição ao regime. Aos 77 anos de idade, a velha senhora é figura conhecida na Rússia. Dedicou toda a sua vida a manifestar-se firmemente contrária à guerra e especialmente às armas atômicas.

Na semana que passou, Yelena decidiu enfrentar mais uma vez o frio de São Petersburgo, segunda maior cidade do país, que é, por coincidência, o lugar de origem de Putin e também o seu. Desenhou à mão dois cartazes com slogans pacifistas, enrolou um cachecol em volta do pescoço, cobriu a cabeça com uma boina e foi até o centro da cidade. De pé, em silêncio, passou alguns minutos exibindo seus escritos aos passantes.

O título principal de seus cartazes dizia: нет ядерному оружию во всем мире (=Não às armas nucleares no mundo todo). Em países normais, o espetáculo seria considerado excentricidade inocente de uma pessoa senil. Na ditadura de Putin, porém, as coisas não funcionam exatamente assim. Tudo o que possa, de perto ou de longe, se assemelhar a um desejo de que as “operações especiais” na Ucrânia logo terminem é passível de ser enquadrado no novo conceito de “terrorismo”. Na verdade, trata-se de indisfarçado terrorismo de Estado, isso sim.

Não demorou muito para uma meia dúzia de policiais acorrerem, cada um medindo o dobro da altura da velhinha. Sob aplausos de populares, ela foi levada embora de braço dado com dois “sordado”. Decerto por estarem sendo filmados, trataram a senhora com delicadeza. Pelo menos, diante das câmeras. Depois disso, não se teve mais notícia de Yelena Osipova.

O vídeo de 39 segundos divulgado pelo Tweeter por um jornalista deu a volta ao mundo. Agora que a poeira está baixando, não seria impensável que a velha senhora fosse condenada a passar uns anos nalguma masmorra de Putin. Vindo dele, nada mais espanta.

De que cô qué?

José Horta Manzano

Na Suíça, vigora um sistema original de democracia. Dois métodos correm paralelos, ambos destinados à manifestação da vontade popular.

Do lado tradicional do sistema, estão os representantes do povo, deputados e senadores, eleitos pelo voto universal e secreto, com mandato fixo – como em qualquer democracia que se preze.

Por outro lado, menos comum em outras partes do mundo, o método plebiscitário é muito utilizado. Embora a possibilidade também seja prevista pela Constituição de outros países (inclusive a nossa), é raramente utilizada. Não é o caso da Suíça, país onde qualquer cidadão (ou grupo de cidadãos) pode lançar uma coleta de assinaturas, conhecida como “iniciativa popular”. O objetivo é reunir um determinado número de cidadãos que, com sua assinatura, confirmam estar de acordo com a matéria proposta.

Para ser válida, a iniciativa não pode entrar em colisão com a Constituição. Portanto, antes de lançá-la, seu texto será submetido à autoridade competente para análise. Uma vez considerada constitucional, é liberada. A coleta de assinaturas pode ser iniciada e deverá estar terminada dentro do prazo estipulado. Há diferentes modalidades de iniciativa, cada qual com um determinado número de assinaturas necessárias.

Uma vez obtido o número mínimo de assinaturas dentro do prazo, as pilhas de documentos são entregues ao departamento encarregado de validá-las. Cada assinatura será conferida. Se as regras tiverem sido respeitadas e o número de assinaturas válidas tiver sido alcançado dentro do prazo fixado, o governo marcará a data do voto popular.

É um dos aspectos que integram a chamada democracia direta. Em média, o povo suíço vota quatro vezes por ano. O voto não é obrigatório. Cada votação pode reunir duas, três ou mais iniciativas. O eleitor dará sua opinião sobre cada uma delas. Tanto podem ser de âmbito municipal, cantonal ou federal.

Assim mesmo, apesar de já ter esses amplos meios de exprimir sua vontade, a população ainda conta com a possibilidade de manifestar seus desejos (ou, mais frequentemente, suas contrariedades) por meio de passeatas e manifestações ao ar livre. (“Carreatas” ainda não estão na moda aqui. E muito menos “motociclatas”.)

Passeatas, há muitas. Nessas horas, o importante não costuma ser a vestimenta dos manifestantes, mas os slogans escandidos e, principalmente, os cartazes brandidos. O que vai aparecer na mídia e na tevê são justamente os cartazes, a palavra escrita. Vê-se gente vestida de preto, branco, azul, vermelho, amarelo, cor-de-rosa, e quantas mais cores houver. Não há código vestimentar. A mensagem não está na cor da roupa, mas na palavra gritada ou escrita.

É estranho que, nas manifestações de rua do Brasil deste começo de século, a vestimenta fale mais alto que as palavras. Às vezes, penso que essa bizarrice se deve à falta de argumentos – quem não tem o que dizer, veste-se de determinado modo como marca de identificação tribal. Mas posso estar enganado.

Nos tempos do lulopetismo, vinham todos de vermelho. Até o Lula e os acólitos. Vermelho, por acaso, é a cor preferida deste blogueiro, mas isso não vem ao caso; já gostava dessa cor antes que o PT existisse. Agora, desde que o capitão assinou contrato de locação no Palácio do Planalto, a cor dos desfilantes mudou: vêm todos de verde-amarelo.

Quando de grandes movimentos do passado, como as Diretas Já e as Marchas de 1964, o povo não vinha fantasiado. As convicções, boas ou más, estavam dentro das gentes e vinham expressas em cartazes. Por que mudou?

Lula e Bolsonaro são do tipo cabeça-dura. Não lhes viria à ideia sugerir a seus devotos que variassem a cor da indumentária. Então, aproveito a deixa para dizer o que penso. Acho que tanto um lado quanto o outro ganhariam se maneirassem no uso do vermelho, por um lado, e do verde-amarelo, por outro. Do jeito que está, fica caricato. Passa a ideia de rebanho domesticado e amestrado, o que não pega bem pra ninguém.

Dado que as manifestações de rua são marcadas com antecedência e amplamente divulgadas, todos sabem se o desfile é a favor deste ou contra aquele. Por que as cores, então? Fosse eu, daria aos apoiadores instruções para que cada um viesse vestido da cor que mais lhe agrada. Não está escrito em lugar nenhum que esquerdista tem de se vestir obrigatoriamente de vermelho, nem que um neofascista deve usar roupa amarela.

Está ficando ridículo para ambos os lados. Um desfile com um bando de vermelhinhos lembra mais um reclamo de outras eras, de um tempo em que crianças trabalhavam em fábricas e mulheres não tinham o direito de voto. Um desfile com um bando de verde-amarelinhos lembra mais um circo, em que alguns parecem proteger-se enrolados numa bandeira brasileira, como se tivessem medo de sermos invadidos pela Bolívia.

Vamos! Coragem, minha gente! O importante são as ideias e, principalmente, as palavras. A vestimenta não voga.

(*) De que cô qué?
Devo uma explicação sobre o título deste artigo. Este blogueiro, que teve avó mineira de Mariana, se lembra de piadas que deviam parecer muito engraçadas no século 19. Hoje, não tenho certeza de que fariam tanto sucesso. A bizarrice da cega preferência que os manifestantes de hoje demonstram por esta ou aquela cor me lembrou uma delas.

Na empoeirada cidadezinha do interior, um cliente entra na loja de armarinhos e pede um corte de tecido.

Balconista:
– De que cô qué?

Cliente:
– De caqué cô.

O 8 de setembro

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Estamos todos apreensivos com as manifestações programadas para o 7 de Setembro. Se não fosse por outras razões mais, digamos assim, vexaminosas como o último desfile de tanques no Planalto, assusta o fato de que, paradoxalmente, nem o amor à pátria nem o amor a Deus estarão na pauta dos atos convocados para Brasília e São Paulo. Dentro e fora do país, imprensa e autoridades alertam continuamente para o risco de embates violentos nas ruas, uma vez que a motivação pressuposta para aderir à chamada para as ruas é a de dar um “ultimato” ao STF e ao TSE.

Eu não sou exceção. Acompanho diariamente o noticiário, as falas bravateiras dos protagonistas, as análises dos especialistas políticos e dos responsáveis pela segurança pública, a temperatura mais alta dos pronunciamentos oficiais. Sou catastrofista crônica assumida e, só de pensar na possibilidade de ruptura institucional e da volta dos anos de chumbo, meu diafragma fica mais tenso que corda de violino.

Anteontem, no entanto, comecei a sentir uma brisa mais leve soprando ao ver as imagens das rodovias superlotadas, das aglomerações nas praias e o clima geral de festa popular nos bares e restaurantes. Parece que, mais uma vez, nossa população está mais interessada em curtir o feriado, experimentar o alívio de estar de novo ao ar livre, em confraternização com a família e os amigos – e pretende deixar para quem não pôde viajar ou não tem nada melhor a fazer o entediante encargo de defender os ameaçados valores da pátria (leia-se do presidente).

Foi só então que me dei conta de que a política tende a ser sentida entre nós como coisa “dos hómi lá de cima”, um assunto estimulante só para quem entende dela, algo que não diz respeito ao cidadão comum que tem de empregar todas as suas energias para sobreviver com o mínimo de dignidade possível. É assim, sempre foi assim, por exemplo nos dias de eleição. O negócio é encarar a fila de votação (já que o voto é obrigatório) o mais cedo possível para, depois de cumprido o dever pseudamente patriótico, pegar o carro e cair na estrada, empanturrar-se com um bom churrasco regado a muita cerveja e pagode. Alegria já, o amanhã pode esperar.

É bem verdade que nos últimos dois anos o interesse pelo debate político-ideológico escalou, alimentado pelos discursos de ódio nas redes sociais e regado pelos delírios persecutórios de militares, congressistas, evangélicos e policiais militares. E promete ser exatamente a obediência devida aos pastores e comandantes de tropa o estopim para a ocorrência de um gigantesco e virulento protesto no Dia da Independência.

Por outro lado, também é verdade que o mar não está para peixe para o restante da população. A motivação para participação de um maior número de segmentos sociais esbarra inevitavelmente no aumento do preço dos alimentos da cesta básica, do gás de cozinha, da gasolina, da energia elétrica, entre outros, e ainda conta com o auxílio luxuoso da crise sanitária, da crise hídrica, do desemprego, do congelamento de salários, do extermínio de direitos trabalhistas e da falta de perspectivas de ascensão social para incrementar o desânimo em avalizar manifestações de grande porte em favor do presidente.

Não há, portanto, muito o que fazer, qualquer que seja a orientação político-ideológica de cada um, a não ser aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Uma coisa é certa, porém: haja o que houver, no dia 8 as coisas voltarão ao “normal”. Entre mortos e feridos, salvar-se-ão todos e os combatentes cansados voltarão para suas casas, com o rabinho entre as pernas. As bandeiras serão novamente enroladas e jogadas num fundo de gaveta, os cartazes de papelão servirão como combustível nos fogões a lenha, as camisetas amarelas serão lavadas e reservadas para os jogos da Seleção de futebol e a principal preocupação voltará a ser cuidar do próprio umbigo. O noticiário voltará ao cardápio rame-rame da pandemia, temperado com notas picantes e ácidas de confrontos entre o Executivo e novas atuações preventivas do Judiciário.

Como assim? Não é que eu não acredite na garra do povo brasileiro para lutar por liberdade. É apenas que preferimos que tudo aconteça sem a necessidade de grande esforço pessoal. Se dá para negociar, nosso jeitinho de fazer revoluções sem sangue prevalecerá. Vamos examinar com cuidado as possibilidades.

Se os protestos forem realmente gigantes, restará comprovado que o presidente tem forte poder de mobilização… dos seus apoiadores de sempre, mas continua tendo baixíssimo poder de persuasão para mudar a disposição emocional do restante do eleitorado. Além disso, alguém acha realmente que o STF vai se deixar intimidar pela multidão nas ruas e recuar na sua decisão de enquadrar o incendiário em um sem-número de transgressões da ordem legal?

Se, montado no já encilhado cavalo militar e empolgado com o sucesso de seus planos de poder absolutista, o presidente resolver desembainhar a espada para declarar uma “nova independência” e fechar o Supremo (ou substituir os 11 ministros por outros mais compassivos e lenientes), sabe que enfrentará forte resistência, tanto no plano interno quanto internacional. Com a economia em frangalhos e sem o apoio maciço dos segmentos que contam, periga assistir à deterioração final do seu capital político em poucas semanas, se muito. Muita gente está pulando do barco antes mesmo da primeira gota de água entrar, só de pensar na inabilidade do capitão para encontrar o rumo de um porto seguro.

Coincidentemente, algumas das manchetes da semana passada informam que o TSE já estuda a possibilidade de decretar sua inelegibilidade para 2022, algumas igrejas evangélicas já estão apelando para seus fiéis não participarem do evento, lideranças de caminhoneiros dizem desconhecer o autoproclamado líder bolsonarista que ameaçou parar o país, alguns líderes do Centrão já ameaçam cair fora para não comprometer suas chances de reeleição, etc. A turma do ‘deixa disso’ é engrossada ainda por sanitaristas e epidemiologistas, preocupados com a disseminação da variante delta.

Se, ao contrário, as manifestações forem minguadas e deixarem claro que as palavras de ordem do “meu povo” [Intervenção militar com Bolsonaro no poder, Volta do AI-5, Eu Autorizo] não representam de maneira alguma os anseios da maioria esmagadora da população brasileira, restará a ele muito pouco arsenal para novas ameaças minimamente críveis, assim como para se manter sentado no trono até outubro de 2022.

Ainda é preciso considerar que novas manifestações estão sendo planejadas pela oposição para o dia 12. Dependendo do resultado das aguerridas demonstrações de força do dia 7, é provável que o clima de tensão piore, que sangue corra pelas ruas durante o protesto. Mas, guerra civil? Não acredito. Dizem que as pessoas só mudam quando se cansam – e eu posso apostar que até mesmo os bolsonaristas de raiz estão exaustos com tanta turbulência.

Claro que o bom senso indica a necessidade de não botar a mão no fogo, apostando na racionalidade e moderação dos combatentes de ambos os lados. Mas, se conheço bem o caráter brasileiro de perseguir resultados imediatos e não se comprometer com nenhum processo longo de transformação da realidade, vaticino que o 7 de setembro que se avizinha será uma impensável e colorida mistura autolimitada de Marcha para Jesus com Micareta Fardada.

Façam suas apostas.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Vem aí o Sete de Setembro

José Horta Manzano

Já faz semanas que os franceses são obrigados a apresentar um “pass sanitaire” (passaporte vacinal) para entrar em bares, restaurantes, teatros, salas de concerto, museus e outros lugares públicos. Para obter o documento, é preciso dar prova de estar vacinado contra a covid ou de ter contraído a doença e estar curado. Há também raros casos em que, por razões médicas, o cidadão não pode tomar a vacina.

Desde que a obrigação foi anunciada, os franceses voltaram a praticar um de seus esportes preferidos: a tradicional passeata dos sábados. O ambiente costuma ser familiar, uns com faixas e cartazes, outros escandindo slogans. Todos exigem que lhes seja devolvida a liberdade de ir e vir, de entrar onde quiserem, sem ter de tomar essa vacina nem apresentar esse “maldito passaporte”, que consideram imposição de um governo tirânico.

Eu estava ouvindo hoje a fala do dirigente de uma região do país, a quem perguntaram o que gostaria de dizer a esses manifestantes que, sábado sim, outro também, saem às ruas pra manifestar desacordo e rebeldia. Sua explicação me pareceu cheia de bom senso. Aponto aqui os pontos principais.

Viver em sociedade implica aceitar abrir mão de certos direitos individuais em prol do bem coletivo. Por exemplo, todo adulto tem direito de se embriagar, à condição de depois renunciar a dirigir. Essa regra é, sem dúvida, uma restrição ao direito de ir e vir, mas foi imposta para proteger a maioria.

Com a vacina, dá-se o mesmo. A vacinação individual serve para proteger a sociedade como um todo. Na região administrada pela autoridade que citei, 7 mil manifestantes têm saído em passeata toda semana. Enquanto isso, entre 40 mil e 50 mil cidadãos têm se apresentado toda semana para a vacinação. Esses que tomam a vacina, embora quietos, sem faixa e sem slogans, também estão se manifestando!

Isso é democracia. Sondagens indicam que 67% dos franceses são favoráveis ao passaporte sanitário, ou seja, 2 em cada 3 cidadãos. Apesar de barulhenta, a minoria não pode impor sua vontade à maioria. Esse documento não foi inventado por capricho de uma autoridade qualquer; é fruto da decisão dos eleitos do povo – é a lei. No dia em que a minoria impuser sua vontade no grito, já teremos deixado de viver em democracia.

Acho que a lição cai bem para nosso Dia da Pátria. Quem decide é a urna. Como não dá pra votar todos os dias, as pesquisas fazem as vezes. Todas elas são claras e mostram de que lado está a maioria no Brasil.

Então, o que é que fazemos? Entregamos a vitória aos que berram mais alto?

Observação
Repare num detalhe revelador. Em países mais adiantados, não viria à cabeça de ninguém sair em “carreata” ou “motociclata”. Em Paris, tem disso não. Vai-se a pé, sem pensar duas vezes.

A divisão da população em classes superiores e inferiores é especialidade de sociedades mais atrasadas. E é tão arraigada no Brasil – em especial entre devotos do capitão – que a tradicional passeata, em que todos se igualavam ao pisar o asfalto, transformou-se em “moto-carreata”.

Na cabecinha dos “moto-carreateiros”, esse comportamento apresenta duas vantagens. Por um lado, têm a impressão de que a lataria protege sua frágil pessoa contra a plebe ignara. Por outro, mostram a todos que possuem veículo potente, o que significa que são importantes e ricos.

Os símbolos de lá e os de cá

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 novembro 2020.

Berlim, 29 de agosto de 2020
Era uma passeata autorizada. Milhares de manifestantes desfilaram pela cidade para exigir a suspensão da obrigação de usar máscara de proteção contra a covid-19. A manifestação decorreu pacífica, mesmo porque, fora a reivindicação dos participantes, não havia choque de ideias. Não se tratava de embate entre facções; os que se dispunham a acatar a ordem de usar máscara ficaram em casa.

Lá pelas tantas, um grupo de 200 a 300 simpatizantes de extrema-direita, mais exaltados que os demais, conseguiu saltar as grades de proteção que rodeiam o Reichstag, a sede do Parlamento Nacional. Alguns chegaram até a subir os degraus da escadaria antes de serem dispersados por policiais munidos de bombas de gás lacrimogêneo.

Numerosos invasores, saudosistas, agitavam a bandeira do Império Alemão (1871 a 1918) assim como a do início do III° Reich (1933 a 1935). É atitude temerária num país em que cicatrizes de um passado trágico ainda não se fecharam de todo. Ninguém ousou erguer a bandeira nazista, aquela com a suástica, que isso é pecado mortal na Alemanha, passível de encrenca pesada com a Justiça. Após o malogro, os invasores revelaram ter tido intenção de ‘ocupar’ o Parlamento.

Brasília, 13 de junho de 2020
Fazia tempo que apoiadores de Jair Bolsonaro tinham montado acampamento na Esplanada dos Ministérios. Era uma forma peculiar de protestar contra determinadas instituições da República cujo funcionamento não era do gosto deles. O assentamento era selvagem. A lógica elementar ensina que é vedado a um particular assenhorear-se do espaço público, mormente instalando lá sua residência, ainda que temporária. O governo do Distrito Federal ordenou a remoção das tendas. Naquele dia, a ordem foi cumprida. Os apoiadores do presidente, simpatizantes de extrema-direita como os berlinenses, não apreciaram o despejo.

Lá pelas tantas, um grupo mais exaltado de recém-expulsos teve a bizarra ideia de munir-se de fogos de artifício e utilizá-los como mísseis terra-terra. Atiraram os artefatos em direção à sede do STF, como se de bombardeio se tratasse. Jornalistas presentes à ocorrência gravaram ameaças acompanhadas de um caudal de impropérios, todos endereçados a ministros do Supremo.

Conclusão
Ambos os episódios têm pontos em comum. Por exemplo, as duas manifestações começaram dentro de relativa calma para, no final, desandarem por obra e graça de grupos radicais. Por seu lado, seguindo um figurino de romantismo adolescente, alemães e brasileiros se rebelavam contra a ordem estabelecida, fosse ela encarnada por insituições do Estado, fosse pela obrigatoriedade de portar a detestada máscara anticovid. Mais um ponto comum: os manifestantes, tanto os de lá quanto os de cá, estavam cientes de não ter a menor chance de atingir o objetivo esboçado. Nem o Reichstag seria tomado, nem o STF, incendiado. Os atos eram claramente simbólicos.

Ao observador atento, porém, não há de escapar a discrepância maior entre os manifestantes de Berlim e os de Brasília: a simbologia contida na violência de cada episódio. Os exaltados de Berlim mimaram uma tomada de assalto do Parlamento alemão. Por trás de toda purpurina, estava o desejo de tomar a si as rédeas de uma instituição do Estado. Foi como se dissessem: «Arredem daí! Nós, o povo, vamos cuidar do Parlamento melhor do que vocês. Fora!». Nada, na movimentação dos manifestantes alemães, deixou transparecer desejo de eliminar o Parlamento; só de corrigi-lo e de pô-lo no ‘bom caminho’.

Já em Brasília, foi diferente. Nossos exaltados não mostraram intenção de ‘corrigir’ nem de redirecionar a atuação do STF para o ‘bom caminho’. A simbologia contida na simulação de ataque balístico era de destruição pura, de eliminação da Justiça republicana, como quem dissesse: «Não queremos uma Justiça independente. Essa instituição podre tem de ser eliminada. Exigimos que esse Poder seja entregue a nosso líder».

A conclusão que se pode tirar é tenebrosa: nossos exaltados tupiniquins são mais perigosos do que os herdeiros do III° Reich.

Memento mori

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que se aprendia latim na escola. Apesar de a língua dos romanos ter me provocado muita dor de cabeça e trazido muita nota baixa, guardei certa simpatia por ela. Volta e meia, quando dá, enxerto alguma citação, alguma máxima latina. Os romanos podiam ter seus defeitos, mas tinham notável bom senso.

Memento mori – é o título de um artigo que o Correio Braziliense publicou no caderno Opinião faz dois dias. O autor é Otávio do Rêgo Barros, general de divisão e doutor em ciências militares, aquele senhor sério e comedido que foi porta-voz de Bolsonaro do primeiro dia de governo até um mês atrás. Dizem as más línguas que ele foi expelido do cargo por ter caído em desgraça junto a um dos bolsonarinhos, aquele mais desequilibrado e intriguento.

O artigo do general já começa com citação latina, coisa fina. O texto é o reflexo do jeitão do autor: claro, pausado, bem explicado, ponderado, sóbrio. E erudito. Ele cita batalhas da segunda Guerra Púnica, travadas entre tropas romanas e cartaginesas 22 séculos atrás, embates em que entra em cena Aníbal Barca, aquele que atravessou os Alpes montado em elefantes. Me lembrou as aulas de dona Leocádia – quanto tempo!

Mas vamos deixar os elefantes e voltar ao general. Seu artigo, elegante, não cita nomes. Mas descreve claramente o comportamento do antigo chefe, Bolsonaro. O título, Memento mori (=Lembra-te que és mortal), refere-se a um costume romano. Quando voltavam de uma batalha, cobertos de glória, os generais faziam-se cercar de escravos que lhes sussurravam ao pé do ouvido essa frase o tempo todo. Era para não caírem na tentação de se deixarem embevecer por aplausos e adulações, que a glória é passageira.

Batalha de Zama
Segunda Guerra Púnica, 202 a.C.

No memorável artigo, o general Rêgo Barros faz um convite à reflexão. Depois de incentivar os outros Poderes da República e a imprensa a manterem firmeza e não recuarem diante de pressões, conclama a população a exercer seu papel de «árbitro supremo da atividade política».

O general não diz isto, mas, num país em que parlamentares são corruptos e organizações de classe – se é que existem – estão anestesiadas há duas décadas, o único canal aberto para o povo mostrar descontentamento é a rua. Manifestações como as de 2013, que acabaram por derrubar Dilma e o PT, são a única porta de saída deste pesadelo. Como conclamar o povo? Não sei. Vocês, que vivem no Brasil e são peritos em feicibúquis, tuítch e zap-zap, sabem melhor que eu. Minha parte, estou fazendo aqui.

Não sei como é que Bolsonaro foi escolher Rêgo Barros para o cargo de porta-voz. O general não combinava com a súcia que gravita em torno do Planalto. Sem condições: não podia dar certo.

Se o distinto leitor tiver 5 minutos, vale a pena ler o artigo do ex-porta-voz. Não é longo. Está disponível no site do Correio Braziliense. Aqui.

De salários

José Horta Manzano

Passeando pela internet, caí por acaso num site que divulga os salários do funcionalismo público. São fortes as diferenças entre uma categoria e outra. Para quem está acostumado, esses contrastes devem parecer corriqueiros; para quem vive, como eu, longe do país há muito tempo, assustam. São inacreditáveis, de deixar de queixo caído.

A gente sabe que o Brasil está na lista dos campeões mundiais de desigualdade, informação que não parece comover ninguém em nosso país. Greves e manifestações por aumento de salário, frequentes algumas décadas atrás, são hoje raras. Os tempos do lulopetismo no poder deixaram um rastro de sindicalistas anestesiados, deve ser isso. Parece que agitadores de massas desaprenderam a razão pela qual estão lá.

Os números que tive ocasião de observar são fornecidos pelo Portal da Transparência do Estado de São Paulo, fonte que suponho confiável. Informam que, no mês de agosto passado, o salário médio do funcionalismo público paulista foi de 4.900 reais, em números arredondados. Até aí, morreu o Neves. O que atordoa qualquer um é o valor do salário mais elevado: 395.000 reais. Yes, my dear friend! Faltou pouco para meio milhão. Em um mês.

Observe-se que o governador, que se suporia fazer jus ao salário mais elevado, recebeu 23 mil reais. Portanto, há funcionários infinitamente mais bem pagos que ele, o que não deixa de ser um assombro.

Anos 40: preparando o pagamento do ordenado

O salário mais elevado equivale a 80 vezes o ordenado médio. Depreende-se que, só no mês de agosto, o contemplado com o maior salário recebeu o que o funcionário médio receberá em 6 anos e 8 meses (=80 meses). Examinando de outro jeito, é de crer que o dono do supersalário produza tanto quanto 80 colegas reunidos. É de crer.

Seja como se examine, fica evidente que algo está muito errado com os quase 500 mil funcionários do estado. Das duas uma. Ou a imensa maioria deles é de gente mal paga, o que é uma aberração. Ou é a elite funcional que está recebendo remuneração muito acima do que merece e do que é razoável, o que é tremenda distorção.

Eu me pergunto para que servem esses portais de transparência facilitados pelo Estado magnânimo. Fica-se sabendo que o cidadão X recebe 80, 100, 130 vezes mais que o cidadão Y e… fica tudo por isso mesmo? Não há nenhuma reação, nenhum movimento de revolta? Parece que esse tipo de informação só serve pra satisfazer a curiosidade malsã dos que querem saber quanto ganha o colega que se senta ao lado.

As passeatas de antigamente

José Horta Manzano

Houve uma época, não faz tanto tempo assim, em que opinião política se manifestava no grito. Na rua, de preferência. Havia quem chamasse de passeata; alguns diziam desfile; outros preferiam protesto. Faixa, megafone, cartaz, palavras de ordem eram de rigor. Por fim, o mais importante de tudo: a cor da indumentária. Aquela maré humana, principalmente fotografada do alto, não teria o mesmo encanto se não estivessem todos uniformizados. Boné, camiseta e bermuda respeitavam o código.

Manifestações assim sempre houve. Foi um lulopetismo desmascarado por mensalões e petrolões que cuidou de dar relevo a elas. Quando a seita já caminhava para o fim, multidões de aluguel vestiram o vermelho das bandeiras progressistas enquanto uma maré de gente se apresentou de verde-amarelo. Era o bom senso nacional despachando os vermelhinhos pra fora da pista.

A roda gira. Desfiles, passeatas e protestos andam meio fora de moda. Palavras de ordem (palavrões?) não saem mais de megafones, mas brotam de redes associais. Mas palavras não têm cor. Onde foi parar a alegre paleta dos velhos dias?

Ela hoje está à porta do palácio presidencial, contida num cercadinho destinado a amestrados prontos a aplaudir o que Seu Mestre disser. Os vermelhinhos sumiram, e os figurantes se vestem de verde-amarelo. É manifestação unívoca, sem contestação possível, senão… «Cala a boca!».

Tudo estaria na santa paz, só que Seu Mestre só diz besteiras. As enormidades presidenciais vêm em modo mesa de pizzaria quando proferidas ao vivo, e em modo balcão de boteco quando são ditas em ambiente restrito. Quem quiser mostrar desagrado e não estiver disposto a escrever palavrão nas redes teria caminho certo: organizar contramanifestação. Só que vai enfrentar um problema espinhoso. A turma do ódio é que trocou o vermelho pelo verde-amarelo. Portanto, que cor o cidadão equilibrado deve vestir?

Está explicado o porquê do silêncio das ruas. Por um lado, a ala do bom senso não se anima a soltar palavrão pela internet. Por outro, dado que o verde-amarelo foi parar em mãos indevidas, gente fina está hesitando em manifestar nas ruas. Tá complicado, parceiro.

Das duas, uma

José Horta Manzano

Não vi as imagens, mas li que doutor Bolsonaro andou de novo fazendo das suas. Foi ontem, por ocasião das manifestações que ele ajudou a convocar, e que serviam a dois propósitos: louvação do próprio convocador (o presidente) e execração dos ‘inimigos’ (que é como extremistas primitivos enxergm todos os que não pensam como eles).

Segundo o Estadão, doutor Bolsonaro teve contacto direto com 272 pessoas, manuseou 128 celulares alheios, apertou a mão de 140 pessoas! Nestes tempos de pandemia e confinamento, é atitude nojenta. Estamos acostumados às extravagâncias do capitão, mas ontem ele subiu mais um degrau da escada da estupidez.

Das duas, uma
Primeira suposição. Doutor Bolsonaro, apesar de usar máscara cirúrgica na última ‘laive’ que fez para seu clube, não acredita na ameaça do coronavírus. Continua certo de que é «invenção da grande mídia». Se assim for, está dando prova de viver num universo paralelo. O terrível exemplo que ele está dando tem o poder de contaminar meio Brasil. Os mais humildes, que viram as imagens, vão se dizer: «Ué, se ele pode, eu também». E a porteira estará aberta para a contaminação exponencial do povo brasileiro.

Segunda suposição. Doutor Bolsonaro sabe que está infectado. Não divulgou porque é contrário a seus interesses. Mesmo sabendo que está potencialmente contagioso, teve contacto voluntário com centenas de pessoas. Se assim for, temos na chefia do Executivo um perigoso delinquente que não merece o trono em que está sentado.

Quarta-feira

José Horta Manzano

Em vídeo lançado nas redes, doutor Bolsonaro autoqualificou-se de «presidente cristão, patriota, capaz, justo e incorruptível». A falsidade intelectual contida da frase é tamanha, que faz a desonestidade petista parecer coisa pouca. Aliás, em matéria de hipocrisia, o atual inquilino do Planalto está deixando o próprio Lula no chinelo. Uma façanha!

Em atitude pra lá de temerária, Bolsonaro encasquetou de convocar o povo pra afrontar o Congresso. Levando em conta que o Congresso foi eleito por esse mesmo povo, algo está fora de lógica. Enfim, como exigir lógica de um presidente desequilibrado?

A lei permite que o mandato de um indivíduo (congressista ou o próprio presidente) seja cassado. Há regras para isso, sem necessidade de botar o povo nas ruas. No entanto, não é possível fechar o Congresso, cassando assim, de facto, o mandato de todos os congressistas. Isso tem nome: é golpe de Estado.

Posso entender a boa intenção dos que votaram no Lula em 2002, assim como a dos que votaram no Bolsonaro em 2018. Por seu lado, tenho dificuldade em captar a lógica dos que votaram no lulopetismo depois do mensalão e do petrolão, assim como dos que apoiam doutor Bolsonaro depois de um desastroso primeiro ano no poder.

Respeito todos os apoiadores de um e de outro. Assim mesmo, recomendo a todos aproveitar esta Quarta-Feira de Cinzas pra dar uma passadinha numa igreja qualquer e tomar as cinzas – prática com a qual os fieis de antigamente se penitenciavam dos excessos carnavalescos. Pode servir pra apaziguar ânimos e aclarar mentes.

Vale retro, Satanas

José Horta Manzano

O mesmo sapato vai funcionar de modo diferente, conforme o pé que o calce. Alguns indivíduos hão de se sentir à vontade com ele. Outros vão reclamar que aperta o dedinho. Haverá quem o ache estreito, preferindo mais alto no peito do pé. Alguém pode até sentir que o couro roça o calcanhar, o que pode formar bolha. No fundo, cada um é que sabe onde lhe aperta o sapato ‒ expressão que, em matéria de deboche, vale esta outra: «pimenta nos olhos dos outros não arde». Assim é a vida. Há vários ângulos a partir dos quais a mesma realidade pode ser encarada.

Sede da Vale International
Chemin de la Vergognausaz

No Brasil, a tragédia provocada pela ruptura do dique de contenção de um depósito de rejeitos mineiros chocou, em primeiro lugar, pela dimensão humana. Centenas de compatriotas mortos é número maior que o das vítimas do avião da TAM que se espatifou anos atrás. A opinião pública se alarmou ao saber que existem milhares de reservatórios espalhados pelo país, todos sem garantia de solidez. A sensibilidade da população foi também abalada pelo fato de um acidente semelhante já ter ocorrido nas Minas Gerais três anos atrás. Pior: a gloriosa Companhia Vale do Rio Doce ‒ hoje simplesmente Vale ‒ está implicada em ambos.

A Suíça não tem exploração mineira. Dos montes helvéticos, não se extrai ferro, nem carvão, nem petróleo, nem metal nenhum. Não há reservas minerais conhecidas. No entanto, o país abriga, há quase dez anos, a sede de operações da Vale na Europa, na América do Norte e no Oriente Médio. O luxuoso prédio, de aparência futurista, foi construído sob encomenda, num bairro de altíssimo padrão, a dois passos da beira do lago.

Quando da instalação, a direção da companhia solicitou à municipalidade que mudasse o nome daquele trecho de rua. É que o nome antigo, «Chemin de la Vergognausaz», soava muito próximo a «Caminho da Vergonhosa». Solícitas, as autoridades aquiesceram. Perda de tempo. O futuro viria confirmar que a mudança de nome não passava de emplastro em perna de pau, ou seja, ação cosmética, sem efeito prático. A companhia continuaria a envergonhar o Brasil e o mundo com seu desleixo assassino.

Vale retro, Satanas
Manifestação contra a Vale

Enquanto o Brasil chora seus mortos, um grupo de bem-comportados cidadãos suíços decidiu protestar contra a empresa, brandindo cartazes e usando máscaras. Foi dia 30 de janeiro. Deu até no jornal nacional do país. A grita dos manifestantes não é de ordem humanitária, mas econômica. Alertam para o fato de a Vale poder vir a abater do lucro as multas milionárias que terá de pagar. Se fizer isso, a lucratividade vai baixar e, consequentemente, os impostos cobrados em território suíço. Cada um é que sabe onde lhe aperta o sapato.

A Vale soltou comunicado informando que as atividades no Brasil não afetam a lucratividade da unidade suíça. Bem, se eles dizem, há de ser verdade.

Vale retro, Satanás!
Jogo de palavras anotado num dos cartazes levantados pelos manifestantes.

Fora, todos!

José Horta Manzano

Toda vez que líderes mundiais se reúnem, há quem manifeste desagrado, quiçá enrolado em bandeira e marchando sobre o asfalto aos gritos de «Fora este!» ou «Fora aquele!». É sacrossanto o direito a protestar, não há democrata que o negue. De lá a protestar por protestar, com objetivo nebuloso, só pra armar confusão ‒ já não estamos falando da mesma coisa.

Aconteceu quando doutor Trump estava para se encontrar com aquele excitado líder (dono?) da Coreia do Norte. Reuniram-se, cumprimentaram-se, conversaram. Muita gente ‒ na Coreia do Sul, nos EUA, no Japão ‒ contrária à ideia de os dois se encontrarem, manifestou indignação. Conversaram assim mesmo. Ao final, se o mundo não consertou, pelo menos ficou menos tenso do que antes. Mal não fez, a conversa.

Dias atrás, os grandes do planeta estiveram na reunião do G20 em Buenos Aires ensaiando acertar o passo no tango planetário que nos rege. De Mr. Trump a Frau Merkel, de doutor Temer a Monsieur Macron, estavam todos lá. Não deu outra: avenidas da capital argentina foram tomadas por manifestantes irados que ordenavam, sem sutileza nenhuma: «Fuera FMI!, Fuera G20!, Fuera imperialistas!, Fuera todos!». Edificante.

Fico perplexo com essas manifestações. «É conversando que a gente se entende» ‒ é moto repetido à farta entre nós. Ao observar os que protestam ruidosamente na rua, fico a imaginar que seria lógico proporem outra forma de resolver o problema contra o qual se insurgem. No entanto, nenhuma proposta aparece. Protestam por protestar. Mandam todos embora sem apresentar nem a sombra do esboço de um caminho novo.

Francamente, esses que gritam «Fora!» a todos não têm solução alternativa a propor. Nesse caso, mais vale ignorá-los e perseverar nos encontros e nos diálogos. Post nubila Phoebus. Depois das nuvens, sai o sol. Há de sair.

O país do molha a mão

Carlos Brickmann (*)

A procuradora-geral Raquel Dodge disse, ao tomar posse, que o povo “não tolera a corrupção”. Sua Excelência está certa, mas na frase faltou um pedacinho que lhe daria mais precisão: o povo não tolera “a corrupção dos outros”. O problema não somos nós, mas aqueles safados que condenamos.

Uma entidade séria, a Transparência Internacional, em pesquisa agora divulgada, mostrou que 11% dos brasileiros admitiram pagar propina para ter acesso a serviços públicos como saúde, educação, segurança, emissão de documentos. Detalhe interessante: a pesquisa se realizou na época do impeachment da presidente Dilma Rousseff, com manifestações de massa contra a corrupção do governo. Petrolão, não; mas tudo bem molhar a mão.

As respostas positivas, em que tanta gente confessa não apenas seu hábito de transgredir a lei como o desprezo pelos que protestam contra isso, são obviamente verdadeiras: ninguém mente ao confessar que age fora da lei. Portanto, se as autoridades pensam ter apoio do povo para combater os atos mais comuns de corrupção, podem ir desde logo mudando de ideia.

A pesquisa, porém, traz aspectos mais positivos. Dos brasileiros, 81% garantem que, se presenciassem um ato de corrupção, denunciariam. Claro que até agora ninguém o fez, exceto em troca de algum tipo de perdão dos suculentos – em alguns casos, tão bons que vale a pena até assumir a culpa de um crime. Mas é bom sinal. Quem sabe um dia?

(*) Carlos Brickmann é jornalista, consultor de comunicação e colunista.

Tomataço

José Horta Manzano

Uma coisa que me revolta é desperdício de comida. Quando de recente visita que doutor Gilmar Mendes, ministro do STF, fez a São Paulo, um grupo de manifestantes se valeu da ocasião para demonstrar desagrado com determinadas decisões do magistrado. Para isso, não encontraram melhor maneira que lançar tomates em frente ao edifício onde se encontrava o referido doutor.

Num país onde parte significativa da população ainda depende de uns caraminguás da bolsa família para sobreviver, a iniciativa é mais que escandalosa: é indecente. Jogar comida fora quando tem gente passando necessidade? É surreal.

Na China e em outras regiões do mundo que trazem na memória coletiva o terrível espectro de séculos de fome e privações, jamais viria à mente de um cidadão desperdiçar alimento. Seria ato impensável, de uma estupidez inimaginável. Por que razão isso não deixa ninguém indignado no Brasil?

Chamada Estadão, 9 out° 2017

Mesmo se fôssemos ricos ‒ o que está muito longe de acontecer ‒ já seria irrespeitoso. Quando se sabe que, a algumas centenas de metros do local do «tomataço», famílias vegetam debaixo de viadutos, abrigadas por pranchas de papelão e cobertores ralos, é incompreensível.

Ainda que o magistrado fosse o único culpado pela miséria nacional ‒ o que não é verdade ‒ o desbaratamento de gêneros alimentícios não se justificaria.

É questão de coerência e de bom senso. Que se manifestem com bandeiras, cartazes, passeatas. Que gritem palavras de ordem, que berrem ao megafone. Que se unam em «tuitaço» de repúdio. Que organizem petição de reclamação. Há mil maneiras civilizadas de protestar. Desperdiçar comida num país como o nosso? É pecado mortal. Não tem alcance e só serve pra dar trabalho extra a mal pagos garis.

Nota
Não sou advogado do magistrado. Aliás, estou frequentemente em desacordo com posições dele. Nem por isso acho correto atirar-lhe tomates, ovos ou qualquer outro tipo de comida.

O distinto leitor há de se lembrar do dia em que, diante das câmeras do mundo inteiro, um manifestante atirou um maço de cédulas falsas sobre o então presidente da Fifa. Achei fantástico. Aquela chuva de «dinheiro» doeu mais que uma tomatada. E fez efeito: pouco tempo depois, o dirigente pediu as contas.

Greve

José Horta Manzano

Alvíssaras! As notícias são excelentes! O Brasil está voltando a ser um país normal. Como assim? Num dia como o de hoje? Com tudo parado?

Exatamente. Melhor ver o país temporariamente parado por uma greve do que paralisado durante anos por incompetência do governo. Pelo espaço de quase quinze anos, sindicatos estiveram anestesiados, cooptados, mamando nas tetas gordas do erário, inativos, servindo aos interesses escusos de políticos e desservindo aos reclamos dos trabalhadores. Isso está acabando.

O momento é complicado. Uns perderam hoje o dia de trabalho, outros se assustaram, houve os que não puderam honrar um compromisso ou ainda os que deixaram de fazer coisa importante. Mas isso passa. Mais uns dias, e será página virada. Estamos voltando à normalidade democrática ‒ é o que importa.

O próprio de sindicatos e de associações de classe é fazer ouvir a voz dos representados. Naturalmente, excessos e ações violentas têm de ser coibidos. Polícia existe exatamente para isso. De resto, que se devolva o legítimo direito de expressão aos que trabalham.

Os reclamos, cá entre nós, serão infrutíferos. Gostemos ou não, nossas leis trabalhistas envelheceram e terão de ser atualizadas. Os costumes e o modo de vida evoluíram, o que nos impede de continuar a viver sob legislação antiquada. No entanto, mesmo sem grande chance de sucesso, trabalhadores devem continuar a gozar do direito de se manifestar. Democracia é assim. Melhor ver sindicatos se agitando do que vê-los curvados e obsequiosos em reverência ao poder do dinheiro que brota do andar de cima.

Como diz o outro, no final, tudo dá certo. Se não deu certo, é porque ainda não acabou.

Greve clara

José Horta Manzano

A letargia em que anda mergulhado o povo brasileiro estes últimos anos é de preocupar. Duzentos milhões de pessoas, zilhões de problemas e… nenhuma reclamação marcante com objetivo claro e definido.

Houve, sim, protestos generalizados em junho de 2013. Em seguida, tivemos passeatas na orla de Copacabana, caminhadas na Avenida Paulista, panelaços no Recife, em BH, em Porto Alegre, em Belém do Pará e em tantos outros lugares. No entanto, todas essas manifestações tinham objetivo vago, indistinto, difuso ‒ pra não dizer confuso. «Pelo Brasil decente!», «Pelo fim da corrupção!», «Pela democracia!»

Agora, diga-me: seria concebível alguém se manifestar por um Brasil indecente, corrupto e ditatorial? Inimaginável. Portanto, por mais que milhões tenham saído às ruas, a grita não foi clara nem cristalina. Como se sabe, quanto mais vaga for a reclamação, menos eficaz será.

Lembram-se de junho de 2013, quando o Planalto engasgou ao ver o país desfilando? O problema maior, no entanto, é que, embora palavras de ordem fossem gritadas aqui e ali, o objetivo final variava conforme a conveniência de cada um. A doutora, que exercia então o cargo de presidente, chegou a propor a instalação de Assembleia Constituinte parcial, figura não prevista na atual Constituição, portanto, impossível de ser posta em prática ‒ um verdadeiro coelho tirado da cartola. O tempo foi passando, chegou a Lava a Jato, e tudo acabou ficando por isso mesmo.

Finalmente, com a greve geral desta quarta-feira, a população dá sinais de estar acordando. Estava na hora! Pelo menos, as manifestações de hoje têm alvo claro e definido: a reforma das regras da Previdência Social. Desta vez, não há como tergiversar ou escapulir pelas bandas como fizeram certos mandachuvas quando das manifestações anteriores. Há que responder aos argumentos dos que reclamam.

Desta vez, é diferente. Reclama-se contra algo tangível, uma reforma que está em via de ser votada. É natural que mudanças desagradem a alguns. Cabe explicar melhor, com didática e pedagogia, os comos e os porquês das novas regras. Explicar, explicar, explicar. Vale esclarecer que, caso nada seja feito, as contas nacionais não aguentarão o peso das aposentadorias daqui a alguns anos, o que levará à diminuição dos benefícios. Qualquer um pode entender esse princípio elementar.

Pela primeira vez em muitos anos, sindicatos e partidos que dizem representar os trabalhadores estão exercendo seu verdadeiro papel. É notícia bem-vinda. Francamente, partidos como o PT ficam muito melhor na oposição do que quando detinham ‒ teoricamente ‒ as rédeas do poder. Sejamos francos: os anos do PT no poder, além de afundar o Brasil, serviram apenas para enriquecer alguns afiliados e para arrastar outros perante os tribunais. Quanto à sociedade, continua exatamente como antes: injusta e desigual. Esperemos que, longe do poder, PT & assemelhados sejam mais úteis aos que trabalham.

Salto para trás

José Horta Manzano

Atribuem ao grande Antônio Carlos Jobim a frase «O Brasil não é para principiantes». Que seja dele ou não, a ‘boutade’ exprime uma grande verdade. O distinto leitor que, há tantos anos, tem visto o país descendo a ladeira, não não faz parte dos «principiantes» aos quais Tom Jobim se referia. Assim sendo, conhece os comos e os porquês do descalabro atual.

No entanto, quem não vive a realidade nacional no dia a dia recebe informações fragmentárias. Certas notícias chegam, outras não. Quem vive em Terras de Santa Cruz conhece nome, sobrenome e, muitas vezes, ‘codinome’ de todas as figurinhas carimbadas que circulam pelos corredores do Planalto, do Congresso e do STF. Para quem vive fora, é diferente.

jornal-6O respeitado jornal «Le Monde», quotidiano francês de referência, cujas análises costumavam ser respeitadas como as do New York Times, começa a dar mostra de ter abandonado a isenção, sua marca registrada. Quanto trata dos problemas brasileiros, sabe-se lá por que, tem mostrado visão sistematicamente capenga. Insiste em apresentar uma versão parcial dos fatos, dando a seus leitores uma ideia distorcida de nossa realidade.

A edição datada de 8 dez° 2016 traz um surpreendente artigo que ilustra o que acabo de dizer. Começa pelo título: «Brésil: le grand bond en arrière» ‒ «Brasil: o grande salto para trás». Para que fique ainda mais claro, o subtítulo insiste que «desde a destituição de Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer conduz uma política que combina conservadorismo, autoritarismo e corrupção». Pronto, o tom está dado.

Transcrevo abaixo os primeiros parágrafos do artigo. Vai no original, em seguida dou a tradução.

Interligne 18c

«Le mardi 29 novembre, le Sénat brésilien a voté en faveur d’un amendement constitutionnel (PEC-55) plafonnant pour 20 ans les dépenses publiques. Alors que les sénateurs votaient, une manifestation d’étudiants se déroulant sur l’esplanade du Congrès était violemment réprimée par la police militaire(1). Au même moment, les députés adoptaient une série de dix mesures anti-corruption, vidées de leur substance et perçues comme une manière de se protéger des investigations liées aux dédoublements de l’Affaire Petrobras et de contre-attaquer un pouvoir judiciaire prompt à théâtraliser son action, à outrepasser ses prérogatives et à bousculer l’équilibre entre les pouvoirs.

Une semaine plus tard, le Président du Sénat, Renan Calheiros (du Parti du mouvement démocratique brésilien, auquel appartient le président non-élu(2) Michel Temer) est mis en accusation et écarté de ses fonctions par un membre de la Cour suprême (STF). La décision «monocratique» est refusée par le comité directeur du Sénat. Cet ensemble de faits en dit long sur l’état de la démocratie au Brésil, ébranlée depuis le coup d’État parlementaire maquillé en processus d’impeachment.»

Chamada do jornal Le Monde, 8 dez° 2016

Chamada do jornal Le Monde, 8 dez° 2016

«Terça-feira 29 de nov°, o Senado brasileiro votou emenda constitucional limitando, por 20 anos, as despesas públicas. Enquanto os senadores votavam, uma manifestação de «estudantes» (as aspas são minhas) na esplanada do Congresso foi violentamente reprimida pela PM(1). No mesmo momento, os deputados adotavam um conjunto de dez medidas anticorrupção ‒ desfiguradas ‒ destinadas a protegê-los de investigações do escândalo Petrobrás e a contra-atacar um Judiciário prestes a ultrapassar teatralmente suas prerrogativas e a desestabilizar o equilíbrio entre os Poderes.

Uma semana depois, o presidente do Senado, Renan Calheiros (do PMDB, partido do presidente não-eleito(2) Michel Temer) torna-se réu e é afastado de suas funções por um membro do STF. A decisão «monocrática» é rejeitada pela mesa diretora do Senado. Esse conjunto de fatos traduz o estado da democracia no Brasil, abalada desde o golpe de Estado parlamentar disfarçado de processo de impeachment

Interligne 18c

É frustrante ver órgão respeitado da mídia internacional publicando esse tipo de análise lacunar e tendenciosa. Atravessamos um momento difícil, sim, mas ainda há esperança. Esse tipo de escrito, que reduz o Brasil a uma republiqueta de bananas, nos é altamente prejudicial. À leitura de artigos como esse, grandes investidores não se sentem encorajados a arriscar estabelecer-se num país tão primitivo.

Ninguém ignora que nosso país está longe de ser perfeito, mas está na hora de o governo federal tomar iniciativas enérgicas para dizer ao mundo que, apesar dos pesares, muito está sendo feito para sair do buraco em que nos metemos.

by Paul Colin (1892-1985), artista francês

by Paul Colin (1892-1985), artista francês

(1) Ao sublinhar que Michel Temer é presidente “não-eleito“,  o artigo desinforma. Dilma Rousseff e Michel Temer formavam uma chapa eleitoral. Os 54 milhões de votos foram dados aos dois, não somente a ela. Houve tempos, no Brasil, em que se votava separadamente para presidente e para vice-presidente. Faz tempo que não é mais assim. Todos os que sufragaram a doutora também votaram no doutor.

(2) PM (= Polícia Militar) é expressão corriqueira no Brasil. Contrapõe-se a Polícia Civil. Em francês, não é assim. A informação que o artigo dá aos franceses é maliciosa. A Polícia Militar brasileira deve ser traduzida simplesmente por Police ou Gendarmerie. À Polícia Civil brasileira, corresponde a Police Judiciaire francesa.

Dado que, na França, a expressão «Police militaire» não designa nenhum corpo policial corriqueiro, traz à imagem o exército. No texto, o autor dramatizou voluntariamente a situação. A ouvidos franceses, soa como se o exército tivesse sido chamado para reprimir inocentes «estudantes». Com tanques e brucutus.