O autocrata e a bomba

José Horta Manzano

O destino de todo autocrata é o isolamento. É a consequência de seu estilo de mando, não há como escapar. Aquele que reina pelo terror não chega a colher reações sinceras dos que o cercam. Receosos de perder benesses, os integrantes do entourage não ousam contradizer o capo, e só lhe dizem sim.

Ao fim e ao cabo, o chefão se vê cada vez mais prisioneiro de uma bolha de aduladores, um grupo fechado onde o debate de ideias não tem lugar. Em tempos de bonança, quando os dias escorrem suavemente e a conjuntura é favorável, essa ausência de diálogo no topo da pirâmide não chega a entravar o andamento da nação. Já quando o céu escurece, o desastre é inevitável. O aprendiz de caudilho atualmente instalado no Planalto já nos deu um antegosto dessa tragédia.

Entre os autocratas do século passado, Saddam Hussein e Adolf Hitler cometeram a loucura de lançar guerra de conquista – o primeiro, sobre o Kuwait; o segundo, sobre a Europa inteira. Não acredito que faltassem bons assessores a nenhum deles. O fato é que, por funcionarem permanentemente em modo terror, inibiam os encarregados de aconselhá-los. Não davam ouvidos nem às tímidas advertências de seus generais mais experientes. Ambos os ditadores acreditavam ser super-homens e estar sempre no caminho certo. Sabemos como terminou a aventura deles.

Faz mais de uma década que o mundo vem acompanhando a ascensão de Vladímir Putin, personalidade de tendência fortemente autocrata. Por meio de cooptação das elites, de corrupção em todos os níveis e de eleições fraudulentas, chegou ao topo da pirâmide. Não tem opositores, todos assassinados ou encarcerados. Governa sozinho, faz o que quer, e ninguém ousa discordar.

Baseado numa análise tosca da geopolítica, achou que era chegada a hora de recobrar a glória perdida do finado Império Russo. Decidiu começar pela Ucrânia. Não levou em conta o fato de que um agressor externo sempre atiça o sentimento de patriotismo e de união nacional do povo agredido. Não percebeu que a invasão da Ucrânia despertaria os mesmos sentimentos entre todos os europeus – o temor de um inimigo comum é maior que querelas entre vizinhos. Não pensou que um sentimento antirrusso tão vigoroso se levantaria no mundo inteiro.

Mandou ver. Imaginou que em de poucos dias estaria tudo dominado. Não deu certo. Seu exército meteu-se num atoleiro. Sua economia está estrangulada. Sua popularidade está em queda. Seu povo periga deixar de confiar nele – suprema desonra para um orgulhoso autocrata. Que resta a Putin?

Resta a ameaça nuclear, que ele não para de mencionar, dia sim, outro também. No entanto, autocrata ou não, aconselhado ou não, o capo do Kremlin sabe que, se ele ousar apertar o botão, estará se expondo a duas consequências.

A primeira é imediata. Caso lance uma bomba atômica sobre a Ucrânia, Moscou periga ser riscada do mapa na meia hora seguinte. Submarinos americanos dotados de mísseis de ogiva nuclear rondam nas cercanias.

A segunda consequência pode até tardar, mas não vai falhar. A atmosfera do globo, imperturbável, vai continuar a se comportar como de hábito, independentemente das vontades de Putin. Já nos anos 1400, os portugueses que se aventuraram em mares nunca dantes navegados se deram conta de que, no Hemisfério Norte, as massas de ar se movimentam no sentido horário, de Oeste para Leste. Por um capricho da geografia, o território russo está situado a Leste da Ucrânia e da Europa.

Assim sendo, bombardear a Europa é como cuspir pra cima: quem comete essa besteira acaba sendo atingido no próprio cocuruto. A onda de contaminação provocada pela explosão atômica será fatalmente carregada pelos ventos e, em pouco tempo, atingirá em cheio a própria Rússia.

É pouco provável que o ditador russo escolha a opção atômica, a menos que tenha perdido, por completo, as faculdades mentais. Se tiver realmente endoidado, só resta uma derradeira esperança: que a camarilha se revolte, enfie o desvairado dentro duma camisa de força e dê um golpe de Estado. Assim, a Terceira Guerra Mundial fica adiada para o dia em que um novo aprendiz de autocrata se apossar do poder na Rússia.

Bolsonaro cabulou

G20 em Roma
O isolamento do negacionista Bolsonaro: os outros líderes o evitam e o brasileiro se comporta como turista.
Il Messaggero, Roma

José Horta Manzano

Na escola, quando alguém fugia pra não assistir a alguma aula, a gente dizia que “fulano cabulou a aula”. Muito tempo depois, quando a escola tinha ficado no passado, aprendi que cabular é verbo intransitivo. Segundo o dicionário, não se deve dizer que “fulano cabulou a aula”, mas simplesmente que “fulano cabulou”.

Soa esquisito, concordo com o distinto leitor. Mas dado que são os falantes que fazem a língua, acho que já passou da hora de o dicionário registrar essa maneira nossa de falar.

Dito isso, chegamos aonde eu queria: Bolsonaro cabulou. Cabulou o quê, minha gente? Cabulou o miolo do G20, a cúpula que reúne os dirigentes dos países que respondem por 80% do PIB mundial. Não é coisa pouca.

Mas ele foi a Roma!, dirão vocês. É verdade, foi, mas não participou de todas as palestras. Tirando o encontro com o presidente da Itália – que, por ser o anfitrião, recebeu protocolarmente todos os dirigentes estrangeiros –, não aproveitou a proximidade física dos grandes do planeta para nenhum colóquio bilateral. Nenhum. Cabulou boa parte do encontro.

E o que é que o capitão foi fazer em Roma? Turismo. Aproveitando o bom tempo e o clima ameno destes dias de outono, visitou a Fontana di Trevi – aquela onde se joga uma moedinha. Mas evitou ir lá com os demais dirigentes, que foram todos juntos. Foi numa “excursão privada”, cercado por seus 20 ou 30 cães de guarda. Sentindo-se protegido, passeou por ruas e ruelas, comeu de balcão, fez o que todo turista faz. Vê-se que o G20 não passou de pretexto para a vilegiatura.

Il Messaggero, tradicional jornal romano com história de quase século e meio, reparou na solidão do negacionista Bolsonaro: “os outros líderes do G20 o evitam, e o brasileiro vai de turista”. Sublinha a “boa ação” da alemã Merkel que, condoída do isolamento a que o capitão estava sendo submetido, deu com ele algumas palavrinhas de cortesia. Me pergunto em que língua ele terá respondido à boa ação. Se é que respondeu.

O jornal lembra a seus leitores o pesadíssimo relatório da comissão do Senado brasileiro (CPI), um ato de acusação de mais de 1.200 páginas no qual 9 crimes e delitos lhe são atribuídos, entre os quais, crime contra a humanidade. Menciona ainda os mais de 600 mil mortos de covid no Brasil.

Il Messaggero ressalta ainda que, se Bolsonaro se mostrou inerte nos trabalhos do G20, esteve ativíssimo nos giros turísticos pela capital. É verdade que ninguém imaginava que, da noite para o dia, ele se transformasse em soldado engajado na luta contra o aquecimento global, mas é incompreensível que, ao não organizar nenhum encontro bilateral, tenha deixado escapar todas as ocasiões de se entreter com os colegas.

Mas Bolsonaro está em boa companhia. Dois grandes poluidores globais também esnobaram o G20: o chinês Xi Jinping e o russo Vladimir Putin. Só que os dois tiveram a decência de manter-se à distância de Roma, enquanto nosso capitão não resistiu a levar sua avantajada comitiva de dezenas de participantes para um alegre passeio turístico pela capital italiana, enquanto líderes mais civilizados discutiam o futuro da humanidade. Ir a Roma e não ver o papa, pode?

Diferentemente dos demais dirigentes, Bolsonaro negou-se a conceder entrevista coletiva à imprensa. Mas deixe estar, já está previsto um encontro dele com Matteo Salvini, o líder da extrema-direita italiana. Será esta terça-feira em Pistoia, cidade toscana que abriga o cemitério militar brasileiro. O capitão participará de cerimônia em memória dos quase 500 pracinhas da Força Expedicionária Brasileira caídos na Segunda Guerra.

O trágico da história é que os soldados brasileiros foram enviados à Itália em 1944 justamente para combater o nazi-fascismo, doutrina admirada por Bolsonaro, Salvini e respectivos devotos. Os gestos, os atos e as falas dos dois tendem a confirmar que teriam preferido que nazistas e fascistas tivessem vencido a guerra.

Como se vê, cá como lá, a hipocrisia não tem limites.

Lei? Ora, a lei!

José Horta Manzano

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“Lei? Ora, a lei!”

A frase, um tanto estranha, é atribuída a Getúlio Vargas

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A meu conhecimento, não há gravação do pronunciamento. Gravador era artigo escasso nos tempos do velho ditador. Mas historiadores explicam que, ao pronunciar essas palavras, ele não estava se referindo a sua própria pessoa. Naquele tempo, a petulância do homem político ainda não havia chegado a esse ponto. Dizer isso referindo-se a si mesmo seria um acinte acima dos padrões da época.

Na verdade, a frase refletia uma crítica de Getúlio aos empresários que passavam por cima da lei e descumpriam pontos da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), o arcabouço da legislação trabalhista brasileira, instituído justamente durante sua gestão.

No entanto, até hoje a frase é empregada com outra conotação. É posta, em sentido irônico, na boca de governantes que se creem acima do populacho vil. Estou falando daquele tipo de políticos que ignoram a lei quando ela lhes põe obstáculos para obter benefícios ilícitos. Em resumo, infringem todo regulamento que não lhes agrada. A frase aparece em diálogos assim:

O assessor:
“Senhor governador, não dá pra fazer assim! É a lei!”

O governador:
“A lei? Ora, a lei…”

Todos temos tendência, sejamos francos, a torcer o nariz para uma proibição que nos desagrada. Mas não gostar é uma coisa; reagir é outra. A reação de cada um está ligada à própria personalidade. 1) Há quem aceite embora não goste, e acabe cumprindo a obrigação. 2) Há quem fraude no escurinho, sem alarde, sem dar muito na vista, tipo “atirando a pedra e escondendo a mão”. 3) Há, enfim, os que transgridem abertamente, sob o sol do meio-dia, tipo “eu sou mais eu; vai encarar?”.

O Brasil atravessa um período conturbado, com um presidente que se enquadra na terceira categoria, a dos que delinquem sem vergonha, sem se esconder e sem sequer ruborizar. Para ele, deve ser divertido. Para o país, é uma desgraça, uma noite interminável, um dia que não amanhece.

Pelas notícias que me chegam, a mais recente afronta feita à lei pelo capitão foi ainda em Nova York. Horas depois de ter sido informado de que seu ministro da Saúde, o improvável doutor Queiroga, estava infectado pelo coronavírus, descumpriu a regulamentação aplicável ao que chamamos aqui “caso-contacto” (qualquer um que tenha estado em contacto com um indivíduo comprovadamente positivo).

Bolsonaro havia estado em contacto com o ministro. Portanto, era um “caso-contacto” e tinha de seguir o protocolo de isolamento. Pois nosso capitão não só não se isolou, como desceu à calçada em frente ao hotel e misturou-se ao grupo apoiadores que por ele esperavam. Se eu fosse o prefeito de NY, mandava deter o homem. Para averiguações. Nem que fosse por algumas horas. Já imaginaram o susto? O quê? Incidente diplomático? Não temam. Com o Itamaraty que temos hoje, está tudo dominado. Durmam tranquilos.

Ah, me ocorreu! – 1
Francamente, como esse homem gosta de calçada, já repararam? Primeiro, a pizza. Agora, a aglomeração.

Ah, me ocorreu! – 2
Tenho dificuldade em entender como é possível que cidadãos brasileiros que vivem numa das cidades mais cosmopolitas do planeta e que, aparentemente, não ganharam carona de ônibus com direito a hambúrguer+coca grátis só pra aplaudir o presidente – como é que essa gente consegue apoiar aquele estropício.

Ah, me ocorreu! – 3
A melhor sugestão que o general Mourão, presidente substituto, recebeu durante sua interinidade no cargo foi a de editar um decreto proibindo a entrada no país de todo cidadão não-vacinado. Ele ficou de pensar. Mas não deu tempo, que o outro voltou. Fica pr’a próxima. Um dia, ele vai, pede asilo nalgum paraíso fiscal e não volta mais.

Dom Bolsonaro Primeiro

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 setembro 2019.

Doutor Bolsonaro emergiu das catacumbas de um «baixo clero» tão populoso quanto inexpressivo. Assim que tomou posse do cargo, cercou-se de equipe heterogênea. Ministros de primeira grandeza foram nomeados ao lado de integrantes um tanto folclóricos. O conjunto dos designados até que parecia sólido, feito pra durar. Àquela altura, muita gente fina acreditou na coesão e na longevidade do grupo. Os novos chegados traziam ideias e, até certo ponto, supriam faltas e falhas. Enriqueciam os desnutridos dotes presidenciais. O tempo que passa, no entanto, lesa ilusões.

O presidente não era um habituado dos costumes palacianos. Não contava entre os assíduos dos salões seletos da República. Não tendo antes exercido cargo executivo, não sabia dos beija-mãos e dos rapapés que cercam um chefe de Estado. Há de ser realmente um choque ser alçado, de repente, a tão excelso posto. Da noite para o dia, brotam assessores, serviçais, secretários, auxiliares – um mundaréu de gente. O chefe acaba desaprendendo a simples arte de abrir portas, visto que haverá sempre um solícito assistente pra fazê-lo. Entronizado no novo cargo, doutor Bolsonaro há de ter viajado de surpresa em surpresa. O poder, vitaminado por tantas delícias, é inebriante.

Atualmente, ninguém é capaz de traduzir, à clara, o que ocorre no entorno presidencial. O povo tem a impressão de que, ao votar num presidente, acabou elegendo uma família. Não estava escrito nos santinhos da campanha, mas a realidade é essa. Diferentemente de famílias discretas que reinam em outras terras, a nossa é barulhenta. Num ritual diário, pai e filhos falam pelos cotovelos. Dão entrevista, tuítam, postam, gesticulam, vociferam, ameaçam, humilham, ralham, espinafram, esculhambam, ironizam, atacam.

O eleitor, que tinha esperança de entrar num período mais sereno depois de 15 anos conturbados, sente frustração diante de tamanha violência vinda daqueles que deviam zelar pela pacificação nacional. Do estrangeiro, ecoam protestos contra nosso país. Grandes firmas começam a boicotar produtos brasileiros em razão da apatia do governo federal em matéria de respeito ao meio ambiente. Nossa terra, vítima de embargo! O que era inimaginável está se tornando realidade. Passamos dois séculos a construir imagem de país sorridente, acolhedor e pacífico… pra uma família destruir tudo com um par de tuítes? É insuportável.

The Little King, criação de Otto Soglow (1900-1975)

Por capricho ou erro de cálculo, doutor Bolsonaro tem criado um cordão de vácuo em torno de si. Dos assessores graduados da primeira hora, diversas cabeças já rolaram. Dos que (ainda) não se foram, os mais importantes estão mergulhados em ‘fritura’ a fogo lento. São alvo constante de humilhações e flechadas. Não vão demorar a sair. Com a partida de assessores antes apresentados como excelentes, doutor Bolsonaro está se isolando. Decifrada a charada, aparece a desavergonhada propensão de nosso presidente a tornar-se Dom Bolsonaro Primeiro. É aposta temerária. Ao desligar todas as luzes que lhe estão em torno, o presidente tende a aparecer como farol e guia único da nação. Quer pôr seu nome no topo do edifício, descurando o tremendo risco de ser atingido por um raio.

Daqui a três anos, se ele segurar o cargo até lá, virá a hora do veredicto. Caso a maior parte da população tenha a sensação de que o governo deu certo, Bolsonaro terá ganhado a aposta; será reeleito com um pé nas costas. Se, no entanto, a impressão reinante for de que o governo deu errado – hipótese mais provável –, doutor Bolsonaro terá dado com os burros n’água. A manutenção de nomes de primeira grandeza a seu redor, ainda que ofuscasse sua glória, seria biombo providencial nessa hora. «Não foi culpa minha. Eu dei a ordem certa, foi o ministro X que não cumpriu!» – seria a justificativa. Do jeito que o presidente está fazendo, beberá sozinho o cálice amargo da derrota. Agora, vamos ser francos: doutor Bolsonaro dá mostra mesmo é de sonhar com um golpe militar. No entanto, se esse desastre devesse ocorrer, seria ele a primeira vítima.

A única arma

José Horta Manzano

A sobriedade ‒ qualidade esplêndida ‒ é um dos atributos que mais dignificam um homem político. É marca certeira daquele que tem confiança nos próprios gestos e palavras. É traço distintivo dos que não precisam vociferar nem ameaçar. Ah, como tem feito falta ultimamente…

No Brasil, o que se vê é deprimente. Ex-presidentes berrando ameaças sem conseguir alinhavar pensamentos nem dizer coisa com coisa. Deputados, senadores, magistrados e integrantes de altas esferas dando pronunciamentos agressivos, ofensivos, intimidantes. Quanto menos têm a dizer, mais gritam. É sintomático.

Não só no Brasil é assim. Outras partes do mundo sofrem do mesmo mal. Os Estados Unidos, por exemplo, já estão há um ano sendo presididos por um senhor cuja qualidade principal não é exatamente o comedimento. Ainda estes últimos dias, mostrando que não se dá conta da fragilidade do equilíbrio que rege o balé das nações, tornou pública sua decisão de transferir a embaixada americana em Israel de Tel-Aviv a Jerusalém.

Muçulmano
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Em si, a mudança de endereço não altera uma palha na borbulhante situação da região. Cada contendor continuará a seguir o caminho de sempre. O ódio mútuo que nutrem permanecerá, nem maior nem menor. No fundo, quem mais tem a perder com o estrepitoso anúncio do presidente parlapatão são os EUA.

Ao pôr-se deliberadamente à margem do resto do mundo, contribuem para o isolamento do próprio país. Espicaçam, de resto, a animosidade de que já são objeto de parte de muita gente. Ao demonstrar parcialidade, demitem-se do papel de mediadores privilegiados e favorecem o aumento da importância política de outros atores. Um furo n’água.

Pode-se apreciar ou não o antigo presidente Barack Obama. Ninguém pode negar, no entanto, a sobriedade e o comedimento do homem, virtudes que espalham tranquilidade e confiança. Ao deixar a presidência, Mister Obama se propôs a não intervir nem comentar os atos do novo presidente. Mas Mister Trump é parada dura. Nem quem tem sangue de barata consegue aguentar calado.

Faz alguns dias, Obama deu palestra num encontro em Chicago. Sem citar nem uma vez o nome do sucessor, disparou flechas em sua direção. Lembrou que a democracia não deve ser considerada direito adquirido automático e imutável. Para despertar a consciência do auditório, usou a imagem de um hipotético salão de baile na Viena do final dos anos 1920. A magia da música levava a acreditar que o rodopio dos casais era sem fim, uma felicidade perpétua. Ninguém podia prever que, dali a poucos anos, a democracia desapareceria e a hecatombe da guerra ceifaria 60 milhões de vidas.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

A advertência do ex-presidente americano vale para o Brasil. Que ninguém tome o atual período democrático por garantido e eterno. Basta muito pouco para fazer o país resvalar ladeira abaixo. No andar de cima, há muita gente fazendo o que pode para enterrar a Lava a Jato a fim de escapar da cadeia. No andar de baixo, ainda há muito ingênuo achando que é muito engraçado votar no Tiririca, no Eneas ou no Cacareco. É a receita do cruz-credo.

Acordai, cidadãos! Temos uma única arma: o voto. Se soubermos manejá-la com engenho, temos uma chance de nos salvar. Uma só.

Terrível

José Horta Manzano

Apesar da existência de (raros) excelentes profissionais, o Brasil apresenta lacunas no campo da tradução. Os bambas na área não são regra, mas exceção. Entre nós, não é fácil encontrar gente traquejada em línguas estrangeiras. Entrevejo diversas razões possíveis.

● deficiência crônica no ensino de línguas;

● isolamento voluntário do país, acentuado nos últimos 15 anos;

● sentimento difuso de que aprender língua não serve pra nada;

● interrupção do fluxo imigratório a partir dos anos 70;

● diminuto afluxo de turistas forasteiros, fato que não incita ao aprendizado de línguas;

● alastramento da preguiça macunaímica, já detectada por Mário de Andrade faz um século.

Chamada do Estadão, 28 fev° 2017

Chamada do Estadão, 28 fev° 2017

Provavelmente cada uma dessas razões contribui com um tijolinho para construir o muro que nos isola ‒ linguisticamente ‒ do resto do mundo. Aprende swahili, mongol ou tailandês quem tem especial interesse. São idiomas de difusão limitada. Já inglês, francês, alemão, espanhol são outra coisa.

Este blogueiro é do tempo em que, além da norma culta do Português, se aprendia latim, francês e inglês. Fosse um ou dois anos mais velho, teria tido grego também. Não sei como anda o currículo hoje, mas espero que o inglês continue a ser lecionado.

É interessante notar que, no auge da dominação da Inglaterra vitoriana, no século 19, a língua inglesa ainda não tinha alcançado a irradiação do francês, então dominante. Só depois do desfecho da Segunda Guerra, o mundo assistiu à vigorosa ascenção da língua de Shakespeare. E o fenômeno se amplia a cada dia. Quem pretender passear pela internet e beber no maior número de fontes tem de conhecer bem inglês. Do contrário, seu horizonte estará um bocado limitado.

O ensino de línguas estrangeiras ‒ com foco especial no inglês ‒ deveria ser preocupação constante das autoridades que cuidam da Educação básica no Brasil. Vale a pena refletir sobre melhora na formação de professores, intercâmbio internacional, reforço na carga horária. A pobreza da formação gera indigência na tradução, é uma evidência. Certas matérias jornalísticas parecem ter passado por tradução automática do google. Certas informações se deformam a ponto de não serem mais entendidas.

Chamada da Folha, 28 fev° 2017

Chamada da Folha, 28 fev° 2017

É certo que, pelos lados de Brasília, a coisa anda feia. Os grandes males nacionais são tão agudos que deixam outras deficiências em segundo plano. Mas uma coisa não impede a outra. Que a Lava a Jato siga seu curso: há quem cuide dela. Não há desculpa para deixar a Educação nacional ao deus-dará.

Observação linguística
Terrível deriva de terror. O étimo latino terreo significava propriamente ‘fazer tremer’. Terrível é o que dá medo, o que apavora, o que assusta, o que aterroriza.

O desastrado rapaz que trocou os envelopes na cerimônia de entrega dos prêmios cinematográficos não quis dizer que apavorava nem que assustava nem que amendrontava ninguém. Se o tradutor tivesse posto seus miolos a funcionar, teria encontrado termo melhor. Temos uma coleção de expressões para exprimir o sentimento do moço: confuso, mal, envergonhado, arrasado, vexado, desconfortável, desbaratado, destroçado, abatido, deprimido, destruído, frustrado, em pandarecos, acabrunhado, acabado.

Terrível? Francamente não. Terrível foi o erro. Não cabe ao responsável se «sentir terrível».