Por ordem de chegada

José Horta Manzano

Você sabia?

Os primeiros automóveis não tinham placa. Um veículo esquisito, que se movia sem tração animal, era novidade absoluta. Havia poucos, razão pela qual não carecia identificá-los. Aliás, mais ou menos na mesma época, ocorreu o mesmo com os telefones residenciais. Quando ainda eram poucos, não tinham número. Girava-se a manivela pra chamar a telefonista; quando ela atendia, bastava pedir: «Quero falar com senhor Fulano (ou doutor Sicrano)». E pronto. Tinha mais charme.

As primeiras placas de automóvel surgiram nos Estados Unidos, mais precisamente na cidade de Nova York. Foi em 1901. Como ainda não havia sido instituído nenhum padrão, a lei obrigava cada automobilista a fabricar a própria placa. Material e cores ficavam a cargo do freguês, mas era obrigatório inscrever as iniciais do nome do proprietário. Com a multiplicação de carros nas ruas, o sistema caducou em poucos anos. Logo veio a normatização.

Na Europa, a superfície dos países é geralmente menor do que nas Américas. Com os novos veículos e estradas mais bem calçadas, viagens internacionais foram se tornando pouco a pouco comuns. Surgiu a necessidade de identificar todo veículo com um novo dado: o país onde estava registrado.

Já em 1910, uma dezena de países europeus – não necessariamente os mais adiantados – se reuniram pra estabelecer um sistema internacional de identificação de veículos. Decidiram que cada país seria designado por uma letra (ou uma combinação de letras). Essa(s) letra(s) deveria(m) aparecer numa placa suplementar, geralmente de formato oval, fixada na trazeira.

O critério para determinar o código de cada país foi… a ordem de chegada. Os primeiros saíram correndo na frente antes que viessem mais pretendentes. Como tinham o alfabeto inteiro à disposição, escolheram ser identificados por uma única letra. A Alemanha (Deutschland, em alemão) ficou com o D; a Áustria e a França reservaram o A e o F respectivamente; Portugal e Espanha garantiram o P e o E. A Hungria quis o H e a Bélgica se apoderou do B. Novos países foram se adicionando ao grupo e, lá pelos anos 1920, quase todos os códigos de uma letra só tinham sido atribuídos. Não havia mais remédio senão aceitar código de duas ou três letras.

Placas padronizadas Mercosul

O interessante da história é que, enquanto outros códigos internacionais foram repensados e reorganizados para refletir a nova realidade (o DDD particularmente), o sistema de identificação internacional de veículos continua igualzinho ao que era mais de um século atrás. Assim, países pequeninos como Luxemburgo e Malta têm código de uma letra só (L e M respectivamente). Enquanto isso, a imensa Índia ficou com uma sequência de três letras (IND), assim como a Rússia (RUS).

No Brasil, em virtude da imensidão do território, não é todos os dias que se cruza uma fronteira. Daí a parca difusão de nosso código. Desde que foi escolhido, em 1930, é BR (porque a Bélgica já tinha ficado com o B). As novas placas padronizadas Mercosul, já aplicadas a todo veículo novo, vão preencher essa lacuna. Pra ninguém botar defeito, trazem o nome do país por extenso.

Nosso vizinho do norte, antes identificado por duas solitárias letrinhas (YV) decidiu ostentar “República Bolivariana de Venezuela”. Pra fazer o nome caber na placa, estão condenados a usar sempre letra miudinha.

Os palpites do presidente

José Horta Manzano

Presidente da República pode até ter opinião sobre tudo, mas não convém torná-la pública sistematicamente. Na escala social da nação, a posição do presidente não é a de cidadão comum. Assim como tem direitos que nós não temos (imunidade judicial, foro privilegiado, segurança pessoal, palácio pra morar, pensão e transportes grátis), tem um dever de reserva que não nos é imposto.

O distinto leitor e eu podemos, se assim o desejarmos, sair por aí dando nossa opinião e palpite sobre qualquer assunto. Se formos elegantes ou politicamente incorretos, tanto faz, desde que não ultrapassemos os limites da ofensa. O presidente não tem a mesma latitude que nós. Suas palavras têm peso maior e alcance mais amplo. Além do que, o bom senso ensina que o que é mais raro é mais precioso. Quanto menos se exprimir, com mais atenção será escutado.

Nosso caro doutor Bolsonaro, embora estique as asas, ainda não conseguiu alçar voo pra alcançar o trono presidencial. Continua se comportando como se ainda estivesse no baixo clero da Câmara. Diga-se, a seu desagravo, que ele não é o primeiro nessa situação. Todos se lembrarão do Lula, que passou oito anos na presidência se conduzindo como se no botequim da esquina estivesse.

Firme na linha do homem que ainda não vestiu a roupa do cargo, doutor Bolsonaro decidiu opinar sobre… placas de automóvel. Imaginem só, com todos os problemas que temos, o presidente perder tempo dando sua visão de estadista sobre aquela chapa de metal que todo carro leva (ou deveria levar).

Os menos jovens se lembrarão de doutor Itamar Franco, que presidiu esta República faz um quarto de século, nos anos de 1993 e 1994. Ele ficou na história por ter solicitado à Volkswagen que ressuscitasse o Fusquinha, modelo que havia saído de linha em 1986. É o tipo de assunto em que presidente que se preza não deveria meter o bedelho. Doutor Bolsonaro está repetindo a dose. O que é que tem placa de automóvel de tão importante pra entrar nas preocupações presidenciais?

Imagino que o fato de a nova placa se chamar «do Mercosul» e ser comum a meia dúzia de países da região incomode a visão estreita do Planalto. Devem estar achando que uma tal abertura nos faça mergulhar direto num perigoso terceiro-mundismo. Cada bobagem… Alguém precisa explicar àquele gente empacada que a introdução do novo modelo de placa é necessária porque as possibilidades de combinação do modelo antigo estão prestes a esgotar-se. Não é difícil entender, pois não?

Será que, se as novas placas copiassem modelo americano, seriam mais bem aceitas?

Os automóveis

José Horta Manzano

Você sabia?

Nos primeiros anos dos século XX, a língua francesa vivia um período de prestígio mundial. Embora já não exercesse predominância absoluta como nos anos 1700, sua influência ainda era notável. No Brasil, a moda, os remédios, os alimentos enlatados, os livros e as revistas vinham de Paris.

Aprisionado a seu desterro tropical, o brasileiro endinheirado só tinha olhos para o que chegasse da França. Tudo o que de lá viesse era bem-vindo. Chique mesmo era mandar vir uma preceptora francesa para guiar os pequerruchos ‒ privilégio só concedido a muito poucos.

Por aqueles anos, os primeiros automóveis começaram a rodar sobre os sacolejantes paralelepípedos das ruas brasileiras e pelos caminhos do interior, picadas poeirentas que só costumavam ver passar carros de boi. Dá pra imaginar o espanto das gentes que, à beira da estrada, observavam bólidos malucos, que desafiavam as leis do bom senso ao disparar a 25 ou 30 quilômetros por hora!

O ‘vehiculo automovel’ descrito no Almanaque Richards de 1909
Repare que a palavra automóvel é usada indistintamente como substantivo e adjetivo

A maior parte das peças que compõem o automóvel tem nome francês. Embreagem, capô, freio, marcha, banco, carburador, virabrequim, manivela, escapamento, volante, vela, radiador, alternador, pistão, biela, bobina, distribuidor, bateria, condensador ‒ cada uma dessas palavras é o aportuguesamento ou a tradução literal do original francês.

A palavra automóvel, naturalmente, também vem de Paris. A curiosidade é que, no início, era um adjetivo. A expressão original é «veículo automóvel», que designa o veículo que se move por si mesmo, como uma geladeira autodescongelante ou um profissional autodidata. Nos primeiros anos, a palavra importada foi utilizada como adjetivo. Na França, ainda hoje, um carro pode ser chamado indiferentemente de automobile ou de véhicule automobile.

No Brasil, essa flutuação vigorou durante uns poucos anos. Rapidamente, na certa por ser expressão muito comprida, o antigo vehiculo automovel saiu de cena e abriu passo para o substantivo automóvel. Bênção e praga dos tempos modernos.

Tráfego pesado

José Horta Manzano

A Ponte Velha (Ponte Vecchio), de Firenze, foi erguida no ano de 1345, faz quase sete séculos. E está lá até hoje, galharda e elegante, o que é normal. De fato, não é corriqueiro ver ponte cair. Ninguém imagina que a ponte medieval que liga as duas margens do Rio Arno possa desmoronar assim, de uma hora pra outra.

Faz uns dias, a pista de um viaduto paulistano afundou bem na junção de duas placas de concreto. O sinistro criou um degrau na pista. Esse desnível, além de ameaçar derrubar o viaduto sobre os trens que circulam mais abaixo, impossibilita o trânsito de veículos.

Chamada Estadão, 20 nov° 2018

Este blogueiro é do tempo em que trânsito significava tráfego, passagem, movimento de pessoas ou de veículos, o ato de atravessar ou de circular. No entanto, dado que o trânsito de veículos nas desorganizadas megalópoles brasileiras costuma ser lento e encrencado, o significado da palavra evoluiu. Hoje em dia, trânsito deixou de ser palavra neutra, sem qualificação. Passou a ser sinônimo de tráfego pesado.

O jovem estagiário do jornal responsável pelas chamadas não conheceu a época em que o trânsito, conhecido então como tráfego, era pacato. Para o jovem, trânsito é engarrafado por natureza. Daí o título esquisito que informa que vias estão abertas à circulação «para evitar trânsito», quando um incauto imaginaria o contrário, isto é, que as vias tivessem sido abertas justamente «para facilitar o trânsito» e não para evitá-lo. É conversando que a gente se entende.

Como o diabo da cruz

José Horta Manzano

Para lavar 83 carros oficiais, a Câmara Federal mantém contrato com uma empresa externa. O custo mensal é de 538 reais por veículo. Enquanto isso, o valor médio cobrado por um Lava Jato de Brasília é de 30 reais por lavagem.

Por que a Câmara desperdiça tanto com uma terceirizada se poderia economizar até 80%? É evidente: Suas Excelências entram em pânico só de ouvir falar em Lava a Jato. Querem mais é passar longe.

Democracia direta ‒ 2

José Horta Manzano

Para a esmagadora maioria dos brasileiros, política é conceito vago. É feita de noções disparates que incluem eleições, regalias, títulos, roubalheiras, conchavos, discursos, acertos, malas de dinheiro. Parece-nos que política é coisa de profissionais ‒ nem sempre qualificados ‒ que decidem, entre quatro paredes, os rumos da nação. A quase totalidade da população se comporta como se fossemos todos reféns dos eleitos, sujeitos a caprichos, a conluios, a alguns poucos benfeitos e a enxurradas de malfeitos.

Não deveria ser assim. A própria Constituição determina, logo no primeiro artigo, que «todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente». O grifo é meu. Exercer o poder diretamente não se limita a bater panelas ou desfilar com faixa e bandeira uma vez de tanto em tanto. Há instrumentos mais sutis e eficazes que, por ignorância ou desleixo, são subestimados.

É o caso da SUG ‒ Sugestão Legislativa. O portal e-Cidadania, alojado no site do Senado Federal, acolhe ideias legislativas que podem ser apresentadas por qualquer cidadão. Uma vez lançada, a sugestão será publicada no site e permanecerá à disposição dos visitantes para votação. Aquelas que alcançarem, em até 120 dias, o apoio de pelo menos 20 mil pessoas serão enviadas para análise pelos senadores integrantes da Comissão de Direitos Humanos.

Uma sugestão interessante, apresentada por uma cidadã de Sergipe, está em tramitação atualmente no portal. Preconiza que seja concedido, a professores, desconto de 30% na compra de automóvel. Numa primeira análise, a ideia é generosa. De fato, em vista dos baixos salários, os profissionais do ensino se veem obrigados a exercer em diferentes escolas. Dada a precariedade do transporte público, é indispensável contar com transporte individual. Está formado o círculo vicioso: a baixa remuneração não lhes permite comprar carro; sem carro, não têm condições de se deslocar de uma escola a outra.

A meu ver, ainda que simpática, a sugestão combate o sintoma em vez de se atacar à raiz do mal. Se o professor, mal pago, é obrigado a ter dois (ou mais) empregos, a solução não será dar-lhe os meios de correr de uma escola a outra. Melhor será lutar pela valorização da profissão. No lugar de baixar o preço do automóvel, mais importante será aumentar o salário do professor.

Se o desconto no preço do veículo for concedido, quem vai arcar com a diferença? O fabricante? Certamente não. A concesionária? Que esperança… É evidente que, ao fim e ao cabo, a conta cairá no colo do contribuinte. Visto que a escola pública é financiada com o dinheiro de nossos impostos, será mais racional direcionar o gasto extra para o aumento salarial dos professores em vez de criar mais um dos milhares de nichos legislativos de que nosso país está repleto.

Enfermeiros, faxineiros, cuidadores também enfrentam o problema de trabalhar em dois empregos para conseguir sobreviver. Deve-se conceder também a eles um desconto na compra de carro? Fazer isso seria contornar o problema sem resolvê-lo. Seria conceder mais uma “bolsa família” setorial, uma solução meia-sola.

É de crer que minha visão do problema diverge da maioria dos que se dignaram manifestar no portal do Senado. Em duas semanas, até o momento em que escrevo, apesar de vivermos num país de mais de 200 milhões de habitantes, menos de 10 mil cidadãos se manifestaram. Noventa por cento deles concordam com a sugestão de conceder desconto somente aos professores. Naturalmente, cada um é livre de opinar.

Caso o distinto leitor queira se manifestar, bastam dois ou três cliques. O caminho é por aqui.

Leilão de placas

José Horta Manzano

Você sabia?

Já contei, em artigo de alguns meses atrás, algumas particularidades do emplacamento de automóvel na Suíça. A diferença mais notável com relação ao resto do mundo ‒ com o Brasil em especial ‒ é o fato de a placa não pertencer ao veículo, mas ao dono dele. Quando vende o veículo, o proprietário entrega o carro mas segura a placa. O sistema é interessante por dar ao detentor da placa a garantia de que nenhum veículo desconhecido circulará por aí utilizando identificação do antigo dono.

Assim, em princípio, o detentor de uma placa guardará sempre o número de identificação original, ainda que troque de carro numerosas vezes. Essa peculiaridade faz que muito proprietário de veículo deseje ter uma placa cuja combinação de números lhe seja simpática. Há quem gostasse de um arranjo de números que lembrasse uma data especial, um aniversário, um casamento. Há também quem preferisse ter simplesmente uma combinação fácil de lembrar. Outros, mais vaidosos, ficariam felizes em ter um daqueles números que chamam a atenção.

Cada cantão é responsável pela atribuição das próprias placas. Elas são padronizadas. Mostram as duas letras e o escudo que identificam o cantão. Quanto à numeração, começa pelo número um e segue adiante. As autoridades enxergaram nesses desejos pessoais um bom meio de engordar o erário. Ultimamente, muitos cantões têm organizado leilões periódicos de placas disponíveis. Os interessados podem dar lances por internet até a data limite. Quem der o lance mais elevado leva a placa.

Certos automobilistas não hesitam em despender fortunas para conseguir o número de seus sonhos. Recentemente um desses leilões foi muito comentado no país. No Cantão do Valais ‒ região bilíngue cuja capital é a cidade de Sion ‒, a placa de número 1 foi posta em leilão. Muitos a cobiçavam. À medida que a data limite se aproximava, os lances foram subindo. O vencedor foi um empresário que não vacilou em desembolsar 160 mil francos suíços (quase meio milhão de reais). No país, nenhuma placa de automóvel jamais tinha sido vendida por valor tão elevado.

Observação
Para coibir um mercado paralelo, é vedada a venda de placa entre particulares. A única exceção admitida é a cessão entre parentes próximos (ascendente,  descendente ou cônjuge).

Placa de automóvel na Suíça

José Horta Manzano

Você sabia?

A Suíça é um dos poucos países onde placa de automóvel não pertence ao veículo mas ao proprietário do veículo. E como é que funciona?

Suponhamos que o cidadão compre seu primeiro carro, novinho em folha, direto da concessionária. A própria loja se encarregará de cumprir as formalidades junto às autoridades. O feliz proprietário já receberá seu carro emplacado e pode sair por aí.

placa-24No dia em que quiser revender o carro, vai entregar os documentos ao comprador mas não a placa. Deve tirá-la do carro e guardá-la. Se tiver intenção de utilizar a placa em outro veículo (novo ou de segunda mão), basta avisar o Departamento de Tráfego, completar a papelada, pagar eventuais taxas e pronto: pode instalar sua placa no novo carro.

Caso tenha aderido à filosofia do ecologicamente correto e tiver desistido de possuir veículo próprio, basta devolver as placas ao Serviço dos Automóveis e não se fala mais nisso. Vai receber reembolso da taxa de circulação e do seguro pro rata temporis.

Se tiver intenção de dar um tempo antes de comprar novo veículo, o melhor será entregá-la ao Departamento de Tráfego para armazenagem. Por módica taxa, ela será conservada por até um ano, à disposição do proprietário a qualquer momento. A vantagem dessa devolução temporária é que, durante o período de armazenagem, o proprietário não terá de pagar taxa de circulação nem seguro. Passado um ano, o direito ao uso da placa prescreverá. Caso o cidadão compre novo veículo no futuro, receberá nova placa.

placa-23Nenhum veículo pode circular sem placa ‒ é o que diz a lei. Então como é que fica no caso do comprador de carro de segunda mão? Se o proprietário antigo retém a placa, o novo dono sai por aí sem placa? Não pode. Pra remediar, a administração já pensou nesse problema. Antes de concluir a transação, o comprador terá de passar pelo Departamento de Tráfego e solicitar uma autorização provisória de circulação. O papel lhe dá direito a deslocar-se ‒ uma vez só ‒ do lugar onde está o veículo até o posto de emplacamento mais próximo. Se for parado no meio do caminho, o documento o protegerá contra toda sanção.

A grande vantagem desse sistema é evitar que, depois de haver vendido um carro, o antigo proprietário continue a receber multas cujo culpado é um novo dono que, distraída ou dolosamente, se «esqueceu» de transferir a posse. No Brasil, isso já aconteceu comigo. Dá uma dor de cabeça dos diabos, porque nem sempre é fácil localizar o novo possuidor.

placa-25Tem mais uma particularidade suíça: a placa intercambiável. Suponhamos que o indivíduo tenha dois veículos que nunca são utilizados ao mesmo tempo. Digamos que usa um deles para o trabalho, durante a semana, reservando o outro para passear no fim de semana. É possível ter uma placa só, intercambiável entre os dois carros.

As condições são duas. Por um lado, os dois automóveis nunca poderão circular ao mesmo tempo. Por outro, aquele que estiver sem placa não pode ser estacionado em via pública ‒ terá de ser guardado em lugar particular, que seja garagem, jardim, terreno ou assemelhado.

A vantagem de ter uma placa só para dois veículos é que uma só taxa de circulação e um só seguro valem para os dois. São 50% de economia.

Apagando a História

José Horta Manzano

Nos anos 1960-1970, enquanto a Europa optava pelo aperfeiçoamento da malha ferroviária ‒ que desembocaria na construção das atuais linhas de trem-bala ‒, uma ideia um tanto tosca da modernidade fez que, no Brasil, fosse dada prioridade ao transporte por rodovia. Poderosos lobbies petroleiros deram empurrão certeiro ao projeto tupiniquim.

Vendeu-se a ideia de que o trem era um meio de locomoção ultrapassado. Empolgada com a recente instalação de filiais de montadoras estrangeiras, a opinião pública imaginou que o progresso havia chegado. E aplaudiu a ideia. Em poucos anos, linhas de estrada de ferro foram desativadas. Até os bondes foram mandados para o esquecimento.

Minhocão, São Paulo ex-Costa e Silva, agora João Goulart

Minhocão, São Paulo
ex-Costa e Silva, agora João Goulart

Em vez de privilegiar o transporte coletivo por ferrovia, racional e econômico, prioridade foi dada à locomoção individual. O automóvel, apesar de ser ineficiente, barulhento e poluidor, passou a representar o objeto do desejo. Cada um queria ter o seu.

Placa 21Estradas tiveram de ser construídas. Nas cidades, o número de carros cresceu exponencialmente. Rios foram enterrados para dar lugar a avenidas. O tráfego foi-se tornando infernal. Para «desafogá-lo», vias elevadas tiveram de ser erguidas. Entre elas, o ultraconhecido Minhocão paulistano. Seguindo onomástica tradicional, foi-lhe atribuído o nome de um figurão da época. Por artes do destino, o nome oficial nunca foi usado pelo povo. Nasceu Minhocão e assim continua.

Em decisão tomada esta semana, a Câmara Municipal de São Paulo ‒ cujos 55 vereadores, decididamente, não devem ter muito que fazer ‒ decidiu alterar o nome da via elevada. A denominação oficial de Elevado Presidente Costa e Silva vai às favas. Em seu lugar, entra outro presidente. Em documentos oficiais, o Minhocão torna-se Elevado Presidente João Goulart.

Placa 22É sempre melhor que Elevado Presidente Dilma Rousseff, convenhamos. Ainda assim, a decisão soa como tentativa bisonha de refazer a História. O que aconteceu, aconteceu. Não tem como mudar. Muito menos cabe a uma Câmara Municipal, seja ela a da maior cidade do país, tomar a si a tarefa de apagar o passado à sua conveniência.

Senhor Costa e Silva pertence a uma casta de medalhões que mudaram, à força, o regime vigente no Brasil. Está longe de ser o único, que a casta é avolumada. Não tenho simpatia particular por esse senhor. Aliás, devo dizer que, tendo vivido no exterior durante seu inteiro mandato, pouca notícia tenho do personagem.

Certo é que, sozinho, ninguém faz revolução nem dá golpe. É preciso contar com bom número de auxiliares, acólitos, cúmplices e simpatizantes. Se o ato da Câmara paulistana reflete intuito generalizado de apagar o nome dos que participaram de todas as mudanças forçadas de regime, há muito trabalho pela frente. Milhares de logradouros terão de ser renomeados. E não só em São Paulo.

Igreja da Memória, Berlim

Igreja da Memória, Berlim

Placa 19Comecemos por D. Pedro I, aquele que deu um golpe no próprio pai. Sigamos com Deodoro da Fonseca, aquele que, traiçoeiramente, apeou do trono o imperador legítimo. Continuemos com Getúlio Vargas, o sorridente baixinho que derrubou presidente eleito e conduziu o país com mão de ferro. Aliás, Filinto Müller, chefe da política política de Vargas e torturador notório, continua a dar nome a um logradouro da mesma São Paulo.

É inútil tentar ocultar a memória de um passado doloroso. Tê-lo em mente é a melhor maneira de evitar que se repita. Tentativas isoladas de pasteurizar a História aparecem como obra de um bando de eleitos ignorantes, que não entenderam bem por que razão foram eleitos nem o que estão fazendo ali.

Onda de frio

José Horta Manzano

Você sabia?

Frio 3Faz muitos anos, passei uns dias de férias na Floresta Negra, sul da Alemanha. Era inverno, logo após o Natal, e fazia muito frio. Ficamos em casa de família, numa hospedagem do tipo bed & breakfast. Casa de campo, família muito simpática, sorrisos pra cá e pra lá.

Deixávamos o carro estacionado no espaço apropriado, um quadrado cimentado situado bem em frente à casa. Os vidros do carro amanheciam invariavelmente cobertos por fina camada de gelo.

Em regiões onde o fenômeno é frequente, todo automobilista carrega, no porta-luvas, pequena plaquinha de plástico cuja função é raspar o vidro pra eliminar a umidade congelada. É fácil de usar mas bom acabamento demanda tempo e trabalho. Automobilista sem pressa pode também ligar o motor e a calefação. É menos ecológico mas, em poucos minutos, o gelo acaba derretendo.

Racloir 1Sem pressa, mas também sem vontade de esfregar, um dia apanhei um balde d’água e derramei sobre o para-brisa. Rapidinho, o gelo foi-se. Orgulhoso, fiquei a matutar como é que os alemães ainda não haviam pensado numa solução tão evidente. Eis senão quando… aparece a dona da casa. Assustada, pôs as mãos na cabeça: «Nein, nein!» ‒ Não, não faça isso!

Vendo que eu não tinha entendido a razão do pito, a hospedeira explicou que a água entornada, ao se acumular sob o carro, ia formar uma placa de gelo no chão transformando o quadrado de cimento numa pista de patinação onde é impossível frear sem derrapar. Manobra sobre gelo é acidente esperando pra acontecer.

Racloir 2Estes dias, chegaram notícias de que o frio intenso tinha congelado água dentro do cano em certas regiões do sul do Brasil. Meus distintos leitores talvez se lembrem de que líquidos, ao congelar, se expandem. É o que acontece com cerveja esquecida dentro do congelador. Portanto, fica fácil entender que, com frio abaixo de zero, água parada dentro do cano periga arrebentar o metal.

Nas regiões em que frio forte ocorre com frequência, é recomendado purgar os canos externos ‒ as torneiras de jardim, por exemplo. Fecha-se o registro, abre-se a torneira e esvazia-se até a última gota. Isso vale para canalização externa, mais exposta a baixas temperaturas. Não vale, naturalmente, para torneiras instaladas dentro de casas aquecidas. Os habitantes das serras catarinenses certamente conhecem a manha.

Quanto a nós, vamos vivendo e aprendendo.

Estocada e fuga

José Horta Manzano

Obras 3Numa noite paulista da semana passada, uma moça dirigia seu automóvel. O céu estava escuro e a moça… embriagada. O que tinha de acontecer aconteceu. Atropelou dois homens que, em plena jornada de trabalho, cuidavam da pintura de sinalização no solo.

O estado em que ficou o carro prova que o choque foi violento e sugere que a velocidade fosse elevada. Apesar disso, a moça não se feriu no acidente. Contrariando todas as regras que a humanidade teceu desde que o primeiro hominídeo desceu da árvore, ela reagiu de modo torpe: abandonou o local às carreiras, sem se preocupar em prestar socorro aos que havia ferido.

Os dois homens morreram. Depois de duas noites presa, a automobilista foi acusada de homicídio não intencional e liberada sob fiança. Em liberdade, vai aguardar o julgamento.

Primeira consideração
Obras 2Em terras mais civilizadas, onde a vida humana tem mais valor que para-brisa estilhaçado, o desfecho teria sido diferente. Motorista que, em estado de embriaguês, atropela – e mata! – é considerado homicida intencional. Parte-se do princípio que, ao pegar no volante em estado de ebriedade, o piloto assume o risco de causar acidente.

E tem mais. Omissão de socorro já é passível de punição. Não socorrer vítimas de sua própria negligência é ato muito pior. Portanto, a moça seria acusada de homicídio doloso agravado por fuga da cena do crime e omissão de socorro a suas próprias vítimas. Aguardaria um bom tempo atrás das grades até que um júri decidisse sobre seu destino.

Acidente circulacao 3Segunda consideração
Imaginemos a cena ao contrário. Suponhamos que a moça estivesse trafegando de carro quando um operador de retroescavadeira, trabalhando sob efeito de álcool, fizesse um movimento brusco e abalroasse o automóvel.

Conjecturemos ainda que o carro, desgovernado, batesse num poste, e que a motorista se ferisse gravemente. Imaginemos que o operador da máquina abandonasse a cena do crime e fugisse imediatamente. Que aconteceria?

É impossível garantir como teria sido o que não foi. No entanto, é plausível que o operário fosse caçado, enjaulado e acusado de homicídio intencional. Pode-se imaginar que não lhe fosse sequer oferecida a possibilidade de comprar a própria liberdade por meio de pagamento de fiança.

Será que estou exagerando?

Obras 1Conclusão
Enquanto abutres se engalfinham no andar de cima disputando o butim de corrupção e de malversações, os cidadãos comuns perpetuam a tradição esquizofrênica de nossa sociedade. O 13 de maio não passa de dia comemorado nas escolas. Seu espírito ainda não foi assimilado pela população.

Sociedade civilizada é aquela que protege seus membros mais frágeis. Atenção: esmola não conta! Falo de mudança profunda de atitude. Ocorrências como essa provam que ainda falta muito.

Os “malfeitos” da Volkswagen

José Horta Manzano

Carro 5A coisa anda preta pros lados da Volkswagen. Para os que acham que desgraça pouca é bobagem, taí a confirmação dos fatos. A maior montadora de automóveis do planeta – pelo critério de número de carros produzidos – está numa sinuca de bico.

Já contei ontem o lado mais folclórico da tempestade que despenca sobre a companhia. O Wolfsburg Futebol Clube, cuja história se confunde com a da Volkswagen, tomou uma lavada do Bayern Munique por cinco a um. Com cinco gols marcados em apenas nove minutos pelo surpreendente Lewandowski. O deles, não o nosso.

Carro 6Fosse só isso, não daria uma crônica. O problema é bem maior e pra lá de grave. A mídia brasileira, preocupada com problemas internos, tem dado pouco espaço à catástrofe que se abate sobre a montadora alemã. Na Europa, já faz vários dias que jornais, rádio e tevê trazem, em manchete, a evolução da tragédia.

Apanhada com a boca na botija por autoridades de vigilância dos EUA, a VW foi obrigada a reconhecer ter instalado em 11 milhões(!) de carros movidos a diesel um dispositivo eletrônico secreto para fraudar controles antipoluição.

A coisa funcionava de modo sorrateiro. No momento em que o carro era submetido aos controles periódicos obrigatórios, a engenhoca emitia dados falsos que faziam crer que a emissão de poluentes estava dentro das normas americanas. Na verdade, os gases estavam muitíssimo acima da tolerância.

Carro 7O escândalo está assumindo proporções globais. O presidente do grupo, mesmo alegando ignorar a falcatrua, foi forçado a demitir-se – o que me parece consequência lógica. Se o homem sabia, é mau dirigente e tem de sair. Se não sabia, é mau dirigente e tem de sair. (Toda semelhança com situação ocorrida no Planalto terá sido coincidência fortuita e involuntária.)

O valor da ação da VW perdeu 35% em três dias. A companhia periga ser contemplada pelo fisco americano com multa bilionária: fala-se em 18 bilhões de dólares, quantia equivalente ao lucro total do grupo em 2014.

Como efeito colateral, a imagem de seriedade de toda a indústria alemã levou um arranhão. Outro efeito secundário é a confiança do consumidor na honestidade de todas as demais montadoras, alemãs ou não. Estão todos com um pé atrás. A pergunta que se faz estes dias é: «Na hora de compra seu novo carro, você compraria um Volkswagen?»

Carro 8Está aí um típico caso em que os «malfeitos» de um abalam outros que nada têm a ver com o peixe. Vale repetir que toda semelhança com acontecimentos brasileiros terá sido coincidência fortuita e involuntária.

Tem mais desgraça se despejando sobre a companhia alemã. Amanhã continuo.

Falam de nós – 12

0-Falam de nós

Thierry Ogier

Todas as manhãs, Francisco Tavares tirava seu pequeno bólido da garagem para ir trabalhar. Num percurso digno de quem venceu na vida, ele se dirigia à sua concessionária Peugeot da cidade litorânea de Santos (70 km de São Paulo) ao volante de seu RCZ. O trajeto à beira-mar durava uns vinte minutos. Dirigindo cupê esporte de marca francesa, ele não passava despercebido. Questão de prestígio…

Carro 4Mas a vida regrada de seu Chico – como é chamado pelos clientes – deu uma cambalhota recentemente. Primeiro, o desaquecimento do setor obrigou-o a mudar-se para um ponto mais modesto e mais barato. Em seguida, o gigantesco escândalo de corrupção que sacode o país há um ano começou a produzir efeitos devastadores no conjunto da economia, solapando a confiança do consumidor.

Não restou outra saída: Francisco Tavares fechou a concessionária.

Interligne 18c

Extrato do relato de Thierry Ogier, correspondente no Brasil do jornal econômico francês Les Echos. Para ler o artigo integral (em francês), clique aqui.

Um brinde

José Horta Manzano

Na virada de 2014 para 2015, a seca andava braba no sudeste do País. Seca é palavra em desuso. Na novilíngua politicamente correta, convém dizer «crise hídrica». É chique que não acaba mais.

Represa de Atibainha: chuvas aliviam a seca

Represa de Atibainha: chuvas aliviam a seca

A baixa do nível da água permitiu encontrar objetos, grandes e pequenos, que repousavam no fundo de reservatórios. Na barragem de Atibainha, que integra a rede de abastecimento da cidade de São Paulo, não foi diferente. Entre pneus, móveis e outros entulhos que nossa incivilidade prefere ocultar, encontraram-se carcaças de automóvel.

Represa 4Eu disse incivilidade? Deveria ter dito ignorância. Automóveis, baterias, pilhas, plásticos, vernizes encerram componentes tóxicos, metais pesados. Em contacto com a água, moléculas prejudiciais à saúde vão-se desprendendo e contaminam o precioso líquido. Filtros, por mais aperfeiçoados que sejam, não conseguem eliminar tudo o que não deve ser bebido.

O resultado é que acabamos ingerindo essa porcariada toda. Quem despeja objetos em reservatório age como se estivesse fazendo xixi na caixa d’água da casa onde vive. Todos acharam muita graça na descoberta de escombros, mas a ninguém ocorreu removê-los de lá.

As águas de janeiro aliviaram a seca. Represas, que estavam se exaurindo, começaram, lentamente, a se encher de novo. Em fevereiro, escrevi, sobre o assunto, o post A ruína emergente. Parecia-me o momento mais adequado para promover uma limpeza do entulho depositado no fundo das represas.

Represa de Atibainha: depois das águas de março

Represa de Atibainha: depois das águas de março

Tivesse falado com as paredes, teria obtido o mesmo resultado. Carcaças continuam lá, como se sua presença fosse natural. O perigo que oferecem a navegantes e a banhistas não comoveu nenhuma autoridade.

As águas de março continuaram enchendo os reservatórios. Já quase não dá pra distinguir os restos de automóveis mergulhados. Longe dos olhos, longe do coração. Levantemos um brinde – com água! – a nosso brilhante futuro.

Saúde!

A caixinha mágica

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 7 mar 2015

Caixa 1Minha avó, genuíno produto do século 19, nasceu antes do rádio, do avião e do automóvel. Mal e mal chegou a conhecer a televisão. Costumava contar uma história fantástica que tinha ouvido quando criança. Falava de um rei de conto de fadas que possuía uma caixinha mágica. Aproximando o ouvido do estojinho, o monarca podia escutar tudo o que acontecia no reino, inclusive as conversas de todos os súditos. Um prodígio.

Radio 4«Era o rádio!» – explicava-nos a velhinha, extasiada de ter assistido à transmutação da caixa mágica em objeto real. Até o último suspiro, a velha senhora acreditou firme que, com a radiodifusão, a humanidade tinha atingido o apogeu em matéria de comunicação e de encurtamento de distância.

Estava enganada, como hoje sabemos. Ainda havia muito pela frente. Vieram os satélites artificiais e, com eles, a banalização da telefonia intercontinental. Aviões a jato converteram expedições dificultosas em escapadinhas de fim de semana. Os complicados «cérebros eletrônicos» de antanho evoluíram: onde antes exigiam local vasto e exclusivo, cabem hoje no bolso de qualquer mortal. Calculadora de supermercado tem poder superior ao dos gigantescos ancestrais.

Carro 3Veja só como era. Uma explosão, atribuída a enorme meteoro, sacudiu a Sibéria em 1908. A rebentação destruiu a floresta num raio de 20 quilômetros e danificou aldeias a léguas dali. De trem, a notícia levou alguns dias para chegar aos ouvidos do tsar, na capital do império. Precisou mais algumas semanas para o mundo ficar sabendo. Para arrematar, a primeira expedição de inspeção científica ao local só foi organizada vinte anos mais tarde. Era essa a velocidade com que notícias se alastravam.

O mundo mudou. O andamento se acelerou. A assombrosa rapidez com que zilhões de gigabaites se disseminam a cada segundo tem facilitado a vida de muitos – mas conturbado a existência de outros. Quem pouco ou nada tem a esconder aprecia o ritmo frenético de redes sociais, uotisaps & congêneres. Já pra quem prefere a discrição… todo cuidado é pouco. O ambiente está ficando perigoso.

Qualquer cidadão dotado de bom senso concorda que o Brasil atravessa etapa periclitante. Se a vertiginosa circulação da informação não é causa única, tem contribuído para agravar.

Apito 1Já não se pode mais ter confiança em nada nem em ninguém. Câmeras, grandes e pequenas, estão por toda parte. Você pode estar sendo filmado e gravado pelo próprio cidadão com quem está confabulando – um microaparato pode-se dissimular no nó da gravata ou até no botão do colarinho.

Um magistrado toma emprestado por alguns minutos um carrão apreendido, só pra sentir o gostinho de sentar-se ao volante de um bólido, e pronto: já foi filmado, gravado e denunciado. Um apuro!

Camera 1Um figurão, no inocente intuito de conhecer a cotação do dólar, chama um doleiro amigo, e pronto: já caiu na boca do povo. Uma impropriedade!

Um obscuro funcionário dum banco de Genebra, ao levar no bolso um trivial pendrive carregado com dados financeiros de seleta clientela, incendiou a banca e mandou para o espaço o secular segredo bancário suíço. Uma iconoclastia!

Nossa presidente já disse mais de uma vez que nunca antes neste país se haviam investigado tantos crimes. Tem razão. Primeiro, porque nunca se tinha visto cachoeira de malfeitos tão caudalosa. Segundo, porque a linha que antes apartava os bastidores do picadeiro está cada dia menos nítida. Francamente, já não se pode mais nem delinquir em paz.

Computador 8O que tem salvo figurões, medalhões e magnatas – por enquanto! – é o fato de o cenário andar muito concorrido. Os envolvidos são pletora, e o palco está lotado. Tudo o que é demais cansa. Chegado ao ponto de exaustão, o cidadão, vencido pela apatia, vai-se tornando blasé, indiferente.

Mas deixe estar. Mais dia, menos dia, esse deprimente espetáculo do petrolão, em cartaz já faz um ano, há de chegar ao fim. Alguns comparsas serão irremediavelmente condenados, nem que seja para exemplo. Já os capangas-mores – alguém duvida? – escaparão. Impedimento da presidente? Nem pensar. Não interessa a ninguém, e a emenda pode sair pior que o soneto.

Big Brother 1O petrolão terá sido marco divisório entre o velho Brasil e o novo. Deverá desestimular a corrupção, assim como a Segunda Guerra baniu conflitos globais.

Nepotismo, compadrio e corporativismo sempre existirão, é inelutável. Mas, convenhamos, candidatos à delinquência em escala industrial serão muito cuidadosos da próxima vez. Onde antes não havia risco, hoje há. Big Brother veio pra ficar.

Rodízio eleitoreiro

José Horta Manzano

Desde que veículos automóveis proliferaram, as grandes aglomerações passaram a sofrer forte poluição atmosférica. Quando chove ou venta, o problema diminui. Já quando fica aquela pasmaceira, sem chuva nem vento, as partículas finas não se dispersam. Respirar essa sopa química é fonte de males diversos.

Cada metrópole tem lidado com o problema a seu modo. Há as que não fazem nada ― a maioria. Deixam como está para ver no que dá.

Algumas adotam sistema permanente de rodízio de veículos, como é o caso da cidade de São Paulo. Com isso, as autoridades conseguem retirar da circulação 20% da frota. Não é muito, mas sempre ajuda.

Estocolmo: pedágio urbano

Estocolmo: pedágio urbano

Outras, como Londres e Estocolmo, optaram pelo pedágio urbano. É medida mais vigorosa. Transpor os limites estabelecidos custa caro e faz que automobilistas pensem duas vezes antes de fazê-lo.

Paris não impõe, em princípio, nenhuma medida destinada a refrear o volume de tráfego. A abundante oferta de ônibus e de metrô, aliada à raridade de vagas de estacionamento, se encarrega de convencer a população a utilizar transporte público.

No entanto, depois de quase duas semanas sem chuva e sem vento, o ar parisiense ficou estes dias saturado de porcariada. Os habitantes, especialmente os mais frágeis ― idosos e crianças pequenas, começaram a apresentar problemas respiratórios.

O nó da questão é que, na França também, este é ano eleitoral. Cada um dos mais de 36 mil municípios do país deverá escolher prefeito. Medidas que atrapalham o tráfego são, por natureza, impopulares. Mas… com eleição ou não, cairia muito mal se o governo mostrasse despreocupação com a saúde do povo. Que fazer?

Resolveram cortar a maçã ao meio ― nem muito pra lá, nem muito pra cá. Esperaram até que os serviços de meteorologia predissessem o fim da calmaria atmosférica. Quando, enfim, vento e chuva estavam para chegar, o primeiro-ministro decidiu instaurar um rodízio pra lá de restritivo.

Paris: rodízio urbano Crédito: François Guillot, AFP

Paris: rodízio urbano
Crédito: François Guillot, AFP

O revezamento, baseado no algarismo final de cada placa, exclui da circulação metade da frota. Em dia par, circulam aqueles cuja placa tem número par. Em dia ímpar, vice-versa.

O sistema começou na segunda-feira, 17 de março, e se aplicou ao município de Paris e aos municípios vizinhos. Os congestionamentos habituais diminuíram 60%, um espetáculo! Em compensação, o descontentamento dos que não puderam sair de casa quase gerou uma nova Revolução Francesa.

A experiência durou apenas um dia. Já foi suspensa. Terá servido para acalmar alguns e para enervar outros. Não se pode agradar a gregos e a troianos. Será que a população gostou? Daqui a algumas semanas, as urnas vão tirar as dúvidas.