Nada mudou

José Horta Manzano

A história da política brasileira registra espantoso fato ocorrido faz mais de meio século. É o caso do senador Arnon de Mello, despachado para o xadrez em 1963. No dia 4 de dezembro daquele ano, no plenário da Câmara Alta, senhor Mello sacou da arma e desferiu três tiros em seu inimigo Silvestre Péricles, também senador.

Bandido 2Em razão da péssima pontaria do pistoleiro, o inimigo não foi atingido. Por desgraça, uma das balas perdidas tirou a vida de José Kairala, suplente de senador, que se apresentava para seu primeiro dia na função.

Os senadores não julgaram conveniente cassar o mandato do colega. Não lhes pareceu que entrar armado na Casa do Povo, atirar e matar um homem fosse motivo suficiente para decretar quebra de decoro parlamentar.

O cangaceiro, acusado de homicídio, foi preso. Poucos meses depois, absolvido pela justiça, voltou ao Senado e reassumiu imediatamente o mandato. Na caradura, cumpriu a missão até o último dia sem ser importunado.

Só para informação: Arnon de Mello, o que atirou num e matou outro, é o pai de Fernando Collor de Mello, o «caçador de marajás» que, trinta anos mais tarde, chegaria à presidência do país. Não caçou marajás nem senadores: foi cassado.

Interligne 18h

Senador pelo Mato Grosso do Sul, Delcídio Amaral foi preso em fins de novembro passado. A detenção deixou a República boquiaberta, não tanto por ter atingido pessoa de destaque, mas por estar o senador em pleno exercício do mandato, exatamente como tinha acontecido com senhor Mello meio século antes.

Revolver 2Desta vez, a prisão não ocorreu por crime de sangue, mas por delinquência ligada à corrupção. Assim mesmo ‒ ou talvez por isso mesmo ‒ assombrou a opinião pública. Não obstante, ninguém ousou criticar a medida, nem mesmo a alta cúpula do partido do senador.

No entanto, os fatos mostram que os cinquenta anos decorridos entre a prisão do senador de 1963 e a do senador de 2015 não modificaram as práticas bizarras em vigor no Senado da República. Assim como crime de sangue, tampouco crime de corrupção é motivo suficiente para determinar quebra de decoro. Delcídio Amaral continua dono do mandato.

Senado federal 1Por razões que, no momento em que escrevo, não estão claras, Amaral foi solto após menos de dois meses de cárcere. Uns dizem que teria concluído acordo de delação, outros dizem que não. Pouco importa. O que se constata, de certeza, é que, entre as restrições impostas ao ir e vir do investigado, não está a suspensão do mandato.

Estranha República a nossa. Em países civilizados, por mera suspeita de haver cometido algum «malfeito», qualquer eleito do povo é rejeitado por seus pares que, para eliminar toda suspeita de cumplicidade, o forçam à demissão. Entre nós, a vida segue numa boa.

Daqui a meio século, quem sabe, os eleitores e seus representantes se horrorizarão com a aberração a que estamos assistindo hoje. Quem viver verá.

Interligne 18h

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Chamada d'O Globo, 21 fev° 2016

Chamada d’O Globo, 21 fev° 2016

A caixinha mágica

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 7 mar 2015

Caixa 1Minha avó, genuíno produto do século 19, nasceu antes do rádio, do avião e do automóvel. Mal e mal chegou a conhecer a televisão. Costumava contar uma história fantástica que tinha ouvido quando criança. Falava de um rei de conto de fadas que possuía uma caixinha mágica. Aproximando o ouvido do estojinho, o monarca podia escutar tudo o que acontecia no reino, inclusive as conversas de todos os súditos. Um prodígio.

Radio 4«Era o rádio!» – explicava-nos a velhinha, extasiada de ter assistido à transmutação da caixa mágica em objeto real. Até o último suspiro, a velha senhora acreditou firme que, com a radiodifusão, a humanidade tinha atingido o apogeu em matéria de comunicação e de encurtamento de distância.

Estava enganada, como hoje sabemos. Ainda havia muito pela frente. Vieram os satélites artificiais e, com eles, a banalização da telefonia intercontinental. Aviões a jato converteram expedições dificultosas em escapadinhas de fim de semana. Os complicados «cérebros eletrônicos» de antanho evoluíram: onde antes exigiam local vasto e exclusivo, cabem hoje no bolso de qualquer mortal. Calculadora de supermercado tem poder superior ao dos gigantescos ancestrais.

Carro 3Veja só como era. Uma explosão, atribuída a enorme meteoro, sacudiu a Sibéria em 1908. A rebentação destruiu a floresta num raio de 20 quilômetros e danificou aldeias a léguas dali. De trem, a notícia levou alguns dias para chegar aos ouvidos do tsar, na capital do império. Precisou mais algumas semanas para o mundo ficar sabendo. Para arrematar, a primeira expedição de inspeção científica ao local só foi organizada vinte anos mais tarde. Era essa a velocidade com que notícias se alastravam.

O mundo mudou. O andamento se acelerou. A assombrosa rapidez com que zilhões de gigabaites se disseminam a cada segundo tem facilitado a vida de muitos – mas conturbado a existência de outros. Quem pouco ou nada tem a esconder aprecia o ritmo frenético de redes sociais, uotisaps & congêneres. Já pra quem prefere a discrição… todo cuidado é pouco. O ambiente está ficando perigoso.

Qualquer cidadão dotado de bom senso concorda que o Brasil atravessa etapa periclitante. Se a vertiginosa circulação da informação não é causa única, tem contribuído para agravar.

Apito 1Já não se pode mais ter confiança em nada nem em ninguém. Câmeras, grandes e pequenas, estão por toda parte. Você pode estar sendo filmado e gravado pelo próprio cidadão com quem está confabulando – um microaparato pode-se dissimular no nó da gravata ou até no botão do colarinho.

Um magistrado toma emprestado por alguns minutos um carrão apreendido, só pra sentir o gostinho de sentar-se ao volante de um bólido, e pronto: já foi filmado, gravado e denunciado. Um apuro!

Camera 1Um figurão, no inocente intuito de conhecer a cotação do dólar, chama um doleiro amigo, e pronto: já caiu na boca do povo. Uma impropriedade!

Um obscuro funcionário dum banco de Genebra, ao levar no bolso um trivial pendrive carregado com dados financeiros de seleta clientela, incendiou a banca e mandou para o espaço o secular segredo bancário suíço. Uma iconoclastia!

Nossa presidente já disse mais de uma vez que nunca antes neste país se haviam investigado tantos crimes. Tem razão. Primeiro, porque nunca se tinha visto cachoeira de malfeitos tão caudalosa. Segundo, porque a linha que antes apartava os bastidores do picadeiro está cada dia menos nítida. Francamente, já não se pode mais nem delinquir em paz.

Computador 8O que tem salvo figurões, medalhões e magnatas – por enquanto! – é o fato de o cenário andar muito concorrido. Os envolvidos são pletora, e o palco está lotado. Tudo o que é demais cansa. Chegado ao ponto de exaustão, o cidadão, vencido pela apatia, vai-se tornando blasé, indiferente.

Mas deixe estar. Mais dia, menos dia, esse deprimente espetáculo do petrolão, em cartaz já faz um ano, há de chegar ao fim. Alguns comparsas serão irremediavelmente condenados, nem que seja para exemplo. Já os capangas-mores – alguém duvida? – escaparão. Impedimento da presidente? Nem pensar. Não interessa a ninguém, e a emenda pode sair pior que o soneto.

Big Brother 1O petrolão terá sido marco divisório entre o velho Brasil e o novo. Deverá desestimular a corrupção, assim como a Segunda Guerra baniu conflitos globais.

Nepotismo, compadrio e corporativismo sempre existirão, é inelutável. Mas, convenhamos, candidatos à delinquência em escala industrial serão muito cuidadosos da próxima vez. Onde antes não havia risco, hoje há. Big Brother veio pra ficar.

Façam como eu digo

José Horta Manzano

José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, dito José Sarney, foi-se embora atirando. Depois de ter sido eleito e reeleito durante 60 anos, o político – que muitos consideram ser o homem mais poderoso do País – saiu de cena. Pelo menos oficialmente.

Dono hoje de considerável fortuna, passeou por sete partidos políticos. Representou dois Estados no parlamento, fato assaz raro. Foi governador, senador, presidente do Senado e até, por uma dessas traquinagens com que a história nos surpreende, presidente da República. Sublinhe-se que chegou lá sem ter recebido um voto sequer.

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Sempre procurou estar ‘de bem’ com o poder. No tempo em que só os fardados mandavam, grudou-se a eles. Ironicamente, serviu de dobradiça entre o período militar e o atual período de governança civil.

Aos 84 anos, decidiu pendurar as chuteiras. Não se candidatou a um enésimo mandato. Não deve tê-lo feito de coração leve. Astuto, há de se ter dado conta de que sua estrela declinava. Aqueles a quem havia dado uma senhora ajuda no difícil começo – entenda-se o PT – já andam com suas próprias pernas e não precisam mais dele. Para piorar, nas últimas eleições, seu clã perdeu o controle do Estado do Maranhão, um péssimo sinal.

Foi-se o homem. Mas fez questão de detonar um derradeiro petardo em seu último discurso no Senado. Confessou-se arrependido de ter voltado à vida pública depois de ter sido presidente da República. Dou-lhe inteira razão. Os que já exerceram o cargo máximo deveriam ter a dignidade de se eclipsar. É a melhor garantia de manter aura respeitável.

Numa demonstração de que sua visão autoritária de mundo não se alterou, propôs a proibição, a ex-presidentes, de ocuparem cargo eletivo. Pois que vá plantar batatas. Como diria o outro, ninguém precisa de seus conselhos, cada um sabe errar sozinho.

Além de anticonstitucional, sua proposta é hipócrita. Faz 25 anos que deixou de ser presidente. Desde então, vem-se elegendo e reelegendo ininterruptamente. Quer nos fazer crer que foi só na semana passada que descobriu que não devia ter feito isso? Essa foi muito boa, senador, conte outra.

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Tem mais. Lançou ao vento a ideia de «reforma política», aquela tecla na qual todos voltam a bater cada vez que se sentem numa posição desconfortável. Disse que o voto distrital deveria substituir o proporcional. Concordo com o senador. Mas… por que, diabos, não trabalhou nessa direção enquanto segurava as rédeas do poder?

Tinha mais cacife que qualquer outro parlamentar para levar adiante a discussão e vencer a batalha. Não fez porque não quis. Dizer isso na hora do adeus não tem mais alcance – só faz apequenar ainda mais a imagem do mais antigo dos quatro ex-presidentes da República ainda vivos.

José Sarney saiu de cena pisando duro e batendo a porta. Sua personalidade concentrou os piores males que afligem a política brasileira: patrimonialismo, paternalismo, oligarquia, ‘vira-casaquismo’, coronelismo, fisiologia, leniência com ‘malfeitos’, corporativismo, vaidade, menosprezo para com os eleitores. Foi-se o homem, mas… deixou uma revoada de filhotes.