Não conte comigo

José Horta Manzano

Pepe Mujica ‒ por extenso, José Alberto Mujica Cordano ‒ nasceu em 1935 no Uruguai. Nos anos 60 e 70, quando o Brasil e alguns países hispano-americanos eram castigados por regime ditatorial repressivo, tomou a decisão de juntar-se a um movimento de liberação. Aderiu aos Tupamaros, grupo rebelde violento, o mais importante de seu país.

A trajetória do personagem lembra, até certo ponto, a da doutora que presidiu nossa República até pouco tempo atrás. Como ela, imaginou que guerrilha, sequestros e ações armadas pudessem derrubar o regime. Arroubos juvenis empolgam, mas raramente são bem sucedidos. Tanto no Uruguai quanto no Brasil, a luta armada fracassou. A redemocratização chegou por outros caminhos.

Passou o tempo, a poeira baixou, señor Mujica entrou para a política e chegou à presidência de seu país. Manteve-se discreto e, um tanto cabeçudo, recusou a ostentação que o cargo lhe oferecia. Num comportamento que pareceu forçado, conservou seu fusquinha. Continuou residindo num rancho modesto e afastado dos ouros da corte. No entanto, bem lá no fundo, guardou reflexos da juventude turbulenta.

lula-e-mujicaAinda dois dias atrás, o diário El Observador, de Montevidéu, informava que Pepe Mujica participaria, ao lado do Lula, de manifestação programada para domingo próximo em São Paulo. Viria participar de passeata com o objetivo de protestar contra a proposta de emenda constitucional (PEC 241) que limita gastos públicos.

Faz quatro séculos, Miguel de Cervantes ‒ o pai da literatura castelhana ‒ já insinuava que não faz sentido lutar contra moinhos de vento. Rios seguirão sempre seu curso, independentemente de toda tentativa de barrar-lhes o fluxo.

Não se sabe se señor Mujica releu Dom Quixote ou se terá ouvido conselho de algum político ajuizado. Fato é que, às vésperas de viajar ao Brasil para engrossar o protesto do Lula, lembrou-se de repente que ‒ oh, céus! ‒ tinha um outro compromisso imperdível e inadiável em Montevidéu. Anulou a viagem.

Resta a impressão de que o ex-presidente uruguaio ficou sabendo que ser visto ao lado do Lula pode ser interpretado como conivência com os «malfeitos» de que nosso demiurgo é acusado. Não cai bem aparecer ao lado de réu de processo criminal.

Até ex-guerrilheiro cabeçudo acaba aprendendo.

Aqui se faz, aqui se paga

José Horta Manzano

Costuma-se dizer que um mal nunca vem sozinho. Sei não, mas parece que o destino é realmente brincalhão. As «brincadeiras» ‒ nem sempre de bom gosto ‒ são cíclicas, como uma linha ondulada. Tem horas em que a gente se sente no topo da onda, com um bocado de coisas boas acontecendo. O chefe dá um aumento, o médico informa que os preocupantes exames deram resultado negativo, o vizinho barulhento se muda. E tem, infelizmente, aquela temporada em que más notícias se acumulam.

Poucos anos atrás, no auge da popularidade e sabendo que não poderia concorrer a um terceiro mandato, o Lula sonhava com a presidência do Banco Mundial ou, por baixo, com o secretariado-geral da ONU. Por seu lado, o Nobel da Paz já lhe parecia praticamente garantido, estava no papo. Pelo menos, era voz corrente entre os cortesãos do andar de cima.

sinusoidal-1Desgraçadamente… a vida é cruel. As coisas são como são e nem sempre como gostaríamos que fossem. Nosso guia, aquele que, garboso, já passeou de carruagem ao lado da rainha da Inglaterra, está no baixo da curva. Ou no fundo do poço, se preferirem. No curto espaço de 24 horas, três notícias pesadas lhe caíram direto no cocuruto.

Dia 6 de outubro, uma pancada. O sorridente senhor Guterres, que já foi primeiro-ministro de Portugal, foi sacramentado como secretário-geral da ONU. Assume as novas funções dia 1° de janeiro. Nosso taumaturgo pode dar adeus àquele trono.

A segunda pancada ‒ essa doeu! ‒ veio no mesmo dia. Foi a decisão do STF de «fatiar» acusações de corrupção. Deixo a explicação dos pormenores para especialistas, que o assunto é meio complicado. Trocando em miúdos, fica a certeza de que nosso guia, pelo menos nesse caso específico, escapou de Curitiba mas caiu direto no tribunal maior. Condenado ali, não terá a quem apelar: é direto pro xilindró.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Se não bastasse a decepção de ver, ao mesmo tempo, a ONU escapar-lhe das mãos e as grades se aproximarem, recebeu outra paulada no dia seguinte. O presidente da Colômbia ‒ que insolência! ‒ acaba de ser anunciado como o ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2016. Justamente o presidente Santos!

O distinto leitor há de se lembrar que certos “assessores” do Lula levaram anos tentando dar uma mãozinha à guerrilha colombiana. De repente, vem um pouco conhecido presidente do país vizinho e, como quem não quer nada, acaba com o conflito de meio século! Que bordoada, Lula!

Assim são as coisas, que fazer? Resta a nosso demiurgo esperar por um convite para presidir o Banco Mundial. Nada é impossivel, mas acho que vai ser difícil. Ainda que escape da cadeia, o homem não tem inglês fluente.

O sequestro

José Horta Manzano

Raptar uma pessoa e mantê-la em cativeiro a fim de chantagear terceiros é um dos crimes mais abjectos, mais nojentos. Se a extorsão por meio de chantagem já é ignóbil, o uso de um inocente como mercadoria de escambo é repulsivo e insuportável.

O rapaz raptado

O rapaz raptado

No começo de abril, bandoleiros paraguaios sequestraram um adolescente brasileiro e mandaram avisar os parentes que só o libertariam contra pagamento de resgate de meio milhão de dólares em dinheiro mais cinquenta mil dólares em víveres. A família, que tem posses, não discutiu e pagou rapidinho. Acontece que, além de criminosos, os cangaceiros eram desleais: embolsaram a fortuna, mas não soltaram o menino.

Agora, mais de seis meses depois do sequestro, o quotidiano paraguaio ABC Color informa que os delinquentes acabam de divulgar um vídeo inspirado nas asquerosas encenações de Al Qaeda e do grupúsculo Daech. No filminho, o sequestrado lê um texto escrito por outrem.

A quadrilha, que se autodenomina EPP «Ejército» del Pueblo Paraguayo, traindo a promessa feita em abril, exige a libertação de seis de seus membros, atualmente encarcerados. Sem isso, não soltará o jovem brasileiro nem um outro refém, um policial paraguaio.

Em outros tempos, esse drama, que se desenrola a poucos quilômetros da fronteira brasileira, já teria contado com reação eficaz do Planalto, do Itamaraty e até – por que não? – do exército brasileiro. Afinal, uma corriola de malfeitores está zombando de nós todos.

Em outros países mais zelosos de seus cidadãos, a opinião pública não permitiria que o caso se eternizasse, encalacrado. Afinal, o Paraguai, nosso vizinho, tem governo constituído, democrático, minimamente organizado, sobre o qual se pode fazer pressão. O brasileirinho não foi levado para as montanhas da Península Arábica nem para o dédalo de ruelas do centro antigo de Bagdá. Cáspite! Está a um tiro de estilingue da fronteira do Brasil.

Para infelicidade de todos nós, a alta cúpula que deveria estender sua mão protetora a todos os brasileiros está mais preocupada em garantir sua própria permanência no poder. Não sobra tempo nem disposição para outro assunto. Os brasileiros em apuros que se lixem. De todo modo, sequestrado não vota, não é mesmo?

Dilma e Garcia 2

Dona Dilma e o senhor Garcia

E pensar que temos, no primeiro círculo que rodeia a atual presidente, um assessor para assuntos internacionais. Seu nome é Marco Aurélio Garcia. Esse senhor, que está entre os mais influentes ideólogos do governo, tem tido, tradicionalmente, contacto com as autodenominadas Farc – Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, narcoguerrilha que, há mais de 40 anos, atormenta a existência de nossos vizinhos do norte. O senhor Garcia tem passe livre no seio daquele, digamos assim, movimento.

Não se sabe exatamente quem escreveu o discurso pronunciado por dona Dilma na ONU, aquele em que ela preconiza o diálogo com os decapitadores do deserto sírio. Ainda que o texto tenha sido redigido por um assessor, é improvável que tenha sido liberado sem o beneplácito do senhor Garcia, nosso virtual ministro de Relações Exteriores.

Já que não fica bem despachar um comando especial para resgatar o jovem refém, que se despache o assessor especial. Tanto pode ele ir pessoalmente à selva paraguaia, como pode também convidar o chefe do bando para uma conversa particular no Planalto. Pode até receber o conviva com honras de chefe de Estado, com passagem e hospedagem pagas pelo contribuinte brasileiro. Um malfeito a menos, um malfeito a mais, ninguém vai se escandalizar.

Afinal, quem tem Garcia dispensa acrobacia.

Fui cassado

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 outubro 2012

Nos últimos 120 anos, o Brasil conheceu diversas ameaças à ordem política vigente. Algumas vingaram, outras não. Talvez a que mais nos tenha marcado, pelo menos é o que registra a historiografia oficial, foi a que despediu o regime imperial, embarcou a família reinante num vapor e instituiu novo regime. Falo, naturalmente, do que aconteceu em 1889, um golpe descrito inicialmente como ‘provisório’, mas que, salvo alguns parênteses, perdura até nossos dias.

Algumas ameaças à ordem foram chamadas revoluções, como a de 1924, a de 1930, a de 1932. Houve contendas de fundo messiânico, como a que rebentou no sertão baiano em fins do século XIX, aquela que, de tão impactante, passou à história com o vultoso título de Guerra de Canudos. Outras revoltas houve, como a Guerrilha do Araguaia, nos tempos de Juscelino. Golpes de palácio se passaram em relativa surdina, como o de 1945, que depôs Getúlio, e o de 1955, urdido para garantir a posse do novo presidente.

Houve ainda movimentos diversos e outros sustos como em 1922, quando se rebelaram oficiais do Forte de Copacabana. Uma dessas tentativas teve direito a nome sui generis: a Intentona de 1935. O século XX conheceu ainda uma reviravolta na ordem política em 1964, aquela que começou como alegre revolução e acabou se transformando em golpe duradouro e bem menos divertido que quando começou.

Poucas dessas cambalhotas ousaram alterar o nome do País. Por coerência, o golpe que passou à posteridade como Proclamação da República não teve outra opção: não ficava bem, instaurado o novo regime, continuar chamando o País de império. Ainda por cima, os teóricos republicanos tinham mergulhado de cabeça no positivismo de Auguste Comte. O nome da nação passou a ser Estados Unidos do Brasil. A lógica não deixava alternativa. Essa adaptação nos deixava em sintonia com vários outros Estados do continente.

Pelo fim dos anos 60, sabe-se lá por que recôndita razão, veio nova alteração. De Estados Unidos, passamos a República Federativa. Eu me senti cassado. Aliás, sinto-me até hoje. Minha cédula de identidade ― a original, que guardo com muito carinho e orgulho ― estampa, em letras brancas sobre fundo verde, Estados Unidos do Brasil. Não tendo sido consultado sobre a mudança, senti-me frustrado. Mas não há que reclamar: eram tempos de exceção e os que mandavam não costumavam consultar. Concertavam-se e impunham. Manifestações públicas de desacordo não eram particularmente bem-vindas.

E o barco seguiu. Um dia, uma louvável iniciativa instituiu o Mercosul. Apesar do nome insólito, a ideia de instaurar uma zona de livre comércio ― união aduaneira, como dizem pomposamente ― parecia boa, uma promessa de dias melhores. O bloco, como é chamado, procurava enfiar seus pés nas pegadas deixadas pela Comunidade Europeia. O caminho tinha tudo para dar certo.

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

Hoje, passados mais de 20 anos, políticos são obrigados a reconhecer, à boca pequena, o que economistas bradam há tempos: não está dando certo. Não como tinha sido previsto, pelo menos. Populismo, vaidades pessoais, personalidades sulfurosas têm desvirtuado os objetivos e entravado o andamento. É possível que um dia, num futuro ainda distante, a coligação encontre seu caminho. Encontrará, com toda certeza, mas tudo indica que não é para amanhã.

Outro dia tive de renovar meu passaporte. O atendimento, em consulado fora do País, foi impressionante: hora marcada, funcionários gentis, balinhas de brinde, um por favor aqui, um desculpe ali. Fabuloso. A surpresa e o susto vieram depois. A surpresa foi por causa da nova cor. Desde o tempo em que ‘côr’ ainda levava acento, nosso passaporte sempre teve capa verde. Pois agora é azul. Por que não?, pensei. Afinal, é uma das cores de nossa bandeira. O susto veio em seguida.

Encimando a capa do precioso documento, estava lá, com todas as letras: MERCOSUL. O nome do Brasil só aparecia mais abaixo, como se de secundária importância fosse. Senti-me de novo cassado. E, desta vez, não foi em consequência de nenhum golpe, de nenhuma revolução, nem mesmo de uma guerra. Foi por mera decisão burocrática.

De forma brutal, dei-me conta de que somos todos agora cidadãos não mais de um país, mas de uma União Aduaneira. Os luminares que tomaram essa extravagante decisão não se preocuparam em consultar seus concidadãos. O roubo de dinheiro público, tão em moda atualmente, é picuinha se comparado ao roubo da nacionalidade de 200 milhões de brasileiros.

Mercossulino? Jamais! Quero meu País de volta!