Parece mentira

José Horta Manzano

Nem bem acabei de escrever o post anterior, sobre o confinamento na França, abri o Estadão online. Logo na primeira página, dou de cara com estas duas chamadas, ironicamente colocadas lado a lado:

Chamada Estadão, 19 março 2021

Doria sobretaxa esporte e cultura
Num país de iletrados, onde 1/3 da população se mostra ignorante a ponto de achar que Bolsonaro está fazendo bom governo, sobretaxar a cultura é crime maior. Governador que faz isso merece ser impichado ao término de processo expeditivo.

Bolsonaro combate toque de recolher
Num país onde a pandemia corre solta e ceifa a vida de jovens e velhos, combater medidas de contenção da hecatombe é crime maior. Presidente que faz isso merece ser impichado em processo relâmpago.

Confinamento na França

França: coletiva de imprensa do primeiro-ministro

José Horta Manzano

Como todo governo responsável, também o francês está atento à curva de progressão da pandemia, que continua dando sinais inquietantes apesar do avanço da vacinação.

O primeiro-ministro fez ontem pronunciamento solene. Lembrou que o país se aproxima da terrível marca de 100 mil mortos. Tendo em vista a chegada do que parece ser uma terceira onda de contaminações por covid, novo confinamento será aplicado à população de extensas regiões do país a partir desta sexta-feira, por quatro semanas. O território confinado inclui a capital e engloba um total de 21 milhões de habitantes, o que equivale a 1/3 da população do país.

Confinamento
As escolas permanecerão abertas. O comércio terá de baixar as portas, com exceção dos que vendem remédios e gêneros alimentícios. Lojas de música e de livros estão liberadas. Será permitido sair à rua e se deslocar até uma distância de 10km da residência, desde que cada um leve consigo um autoatestado com data e assinatura.

Toque de recolher
O horário do toque de recolher que já vigora atualmente no país inteiro será alterado. Com a chegada da hora de verão, que entrará em vigor dia 28 de março, os cidadãos terão uma horinha a mais de liberdade. Em vez de 18h, todo o mundo terá que estar bonitinho em casa a partir das 19h. O toque de recolher tem se mostrado radical para evitar aglomerações.

Em sua fala, o primeiro-ministro incentivou o teletrabalho. Exortou todas as empresas a aplicar, sempre que possível, esse sistema. Para terminar, tranquilizou a população ao informar que as autoridades sanitárias liberaram a vacina Astra-Zeneca, por considerar que não há prova científica de que os efeitos secundários assinalados possam ser imputados a ela.

Enquanto isso…
Quando vejo que, um ano depois das primeiras mortes, a pandemia ainda continua se expandindo até em países que se conscientizaram desde o início, fico ainda mais preocupado com o Brasil. O que acontece hoje na França, na Itália, em Portugal e em tantos outros países periga se repetir, com mais força ainda, num Brasil em que o governo central foi incapaz de dar diretivas e tomar as rédeas do combate ao vírus.

Nada é eterno, doutor!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 abril 2019.

Para quem se apresentava como o único candidato capaz de acabar com política contaminada por ideologia, doutor Bolsonaro está saindo melhor que a encomenda. Por detrás de cada ato, de cada nomeação, de cada pronunciamento, cochila um laivo doutrinário. As viagens presidenciais ao exterior, por exemplo, têm vindo embaladas pra presente, descritas como importantes para reforçar laços comerciais. Rasgado o invólucro vistoso, aparece o papel pardo de armazém chinfrim a denunciar que a motivação era, na realidade, ideológica.

Uma regra não escrita determina que a primeira viagem de todo presidente nosso seja a Buenos Aires. A razão é simples: ainda que não seja o maior cliente de nossas exportações, a Argentina é nosso mais importante vizinho de parede. Ainda que acontecimentos extraordinários deixem o mundo de ponta-cabeça, nossos hermanos estarão sempre ali, colados, do outro lado da fronteira. Pra viver em harmonia, convém tratar bem a vizinhança. Doutor Bolsonaro preferiu passar por cima dessa lógica trivial. Reservou a primeira saída internacional para uma visita ao Chile. Na volta, a geografia não havia mudado: a Argentina continuava vizinha. Vizinha e de nariz torcido.

Faz uns vinte anos, formou-se nos EUA o Congresso Mundial das Famílias, movimento ultraconservador dirigido contra os homossexuais, contra o divórcio, contra direitos LGBTs, contra o aborto, contra tudo que escape aos rígidos limites do que entendem ser a família tradicional. Desconfio um pouco desses movimentos que são contra. É mais produtivo ser a favor. As armas para lutar em prol de alguma coisa são sempre menos agressivas do que as que se utilizam pra lutar contra. Ser contra tanta coisa ao mesmo tempo só pode ser fonte de mau humor. Nas reuniões desse movimento, sorriso há de ser artigo raro. Vade-retro!

Cruzada medieval

Os congressos mundiais do grupo têm lugar anualmente. Dos três últimos, realizados na Geórgia, na Hungria e na Moldávia, pouco se falou. Este ano, dado que a honra de acolher a edição coube à Itália, o evento cresceu em importância. Quando alguém declara não ter «nada contra homossexuais, cada um que viva a vida que escolheu», fique de pé atrás, distinto leitor. É quase certo que se trata de alguém digno de ostentar carteirinha de sócio do Congresso das Famílias. Usando declaração desse teor como guarda-chuva, Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro da Itália, avalizou o evento com sua presença. Impossibilitado de comparecer, doutor Bolsonaro fez-se representar pela secretária nacional da Família – que prestigiou o congresso com um discurso. Para um presidente que prometia acabar com ideologias, está de bom tamanho.

Faz dez dias, na preparação de nova estrepolia, doutor Bolsonaro mandou um dos filhos em viagem exploratória a países da Europa, selecionados a dedo, que pretende visitar ainda este ano. São a Polônia e a Hungria, destinos que, somados, respondem por 0,4% de nossas exportações. Já se vê que a motivação comercial é pouca pra abalar presidente. À boca pequena, corre explicação mais convincente. O objetivo é inscrever nosso país no bloco ultraconservador cujos contornos já se desenham em forma de «cinturão bíblico» a proteger a Europa contra hipotéticas hordas de incréus. E lá vamos nós comprar mais uma guerra que não é nossa.

Mas a história é cíclica e o destino inexorável de todo bloco é o desmanche. Os de direita e os de esquerda se desfazem. Tanto o temível eixo Berlim/Roma quanto a poderosa URSS desmoronaram bonito. A vertigem do poder costuma cegar e impedir os ungidos de enxergar essa evidência. No entanto, se os filhos ainda não têm maturidade para entender, doutor Bolsonaro já tem idade e experiência pra se convencer de que o importante é melhorar as condições de vida do povo brasileiro, objetivo maior de seu mandato. Blocos, fugazes por natureza, fazem-se e desfazem-se ao sabor da alternância de dirigentes. O que vale hoje pode já não valer amanhã. Penduradas as chuteiras, melhor será ser lembrado por ter construído um Brasil melhor do que por ter sido membro de um grupo que virou pó.

Os aviõezinhos

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Sigismeno se interessa por assuntos de aviação, veja você! Quando pode, ele gosta de dar uma vista-d’olhos em notícias de avião e de aeronáutica.

Passeando pelo portal Flightglobal, referência em matéria de artefatos voadores, deu com um artigo sobre os caças encomendados por nossas Forças Aéreas à firma sueca Gripen.

A informação é pra lá de surpreendente. Todos tínhamos ficado sabendo que a encomenda brasileira era de 36 aparelhos. Pois parece que a quantidade já não é mais aquela. Um misterioso «representante» das Forças Armadas, cuja entidade não foi revelada, informa que a compra será triplicada. Em vez de 36 aviões, a Aeronáutica quer adquirir 108 aparelhos. Cento e oito! Dá exatamente três vezes a quantidade inicial.

Caça Gripen - foto Saab

Caça Gripen – foto Saab

Quando uma novidade dessa magnitude é espalhada à boca pequena, meio envergonhada, é bom desconfiar. A grande mídia brasileira não noticiou. É muitíssimo suspeito que decisão de gasto de 17.4 bilhões de dólares (quase 45 bilhões de reais!) seja tomada assim, nos bastidores, sem que ninguém dê um pio.

Sigismeno, que é meio bobão mas não chega a ser idiota total, ficou com a pulga atrás da orelha. Achou que era muito dinheiro e, pior que isso, percebeu que a notícia chegava em hora imprópria. Com esses desfalques à Petrobrás pipocando a cada dia, a informação de que quase 50 bilhões de reais vão ser gastos com aviões de combate cai particularmente mal.

Avião 10Esquisitice por esquisitice, Sigismeno constatou que essa história dos caças já começou torta. O Lula, presidente na época, anunciou que ia comprar Rafales franceses. Depois, deixou o dito pelo não dito, enfiou o rabo no meio das pernas, voltou aos palanques e esqueceu o assunto. Sobrou para a sucessora.

Depois de quase quatro anos de vai não vai, a pupila decidiu finalmente bater o martelo. Contrariando o que o padrinho havia garantido, firmou compromisso com a sueca Gripen. Seriam 36 aviões. Como é possível que, em momento tão delicado, os 36 se possam ter transformado em 108?

Avião 6Sigismeno tem sua ideia. Ele soube das recentes passeatas em que parte da população, sentindo-se frustrada com o que acontece no andar de cima, começa a clamar pela volta dos militares ao comando da nação. Interpretou esse aumento nas despesas militares como um afago, uma “bondade” para com os quartéis. Entendeu que o governo, desnorteado e atazanado, trata de acalmar as casernas.

É como se o Planalto dissesse: «Fiquem por aí, amigos uniformizados. Guardem seus tanques e não saiam às ruas. Não fica bem humilhá-los oferecendo malas de dinheiro, mas tomem estes aviõezinhos e façam deles bom uso. Se quiserem, podemos até comprar mais alguns, que dinheiro é o que não falta. Mas, por favor, deixem-nos em paz.»

Na falta de explicação mais convincente, estou inclinado a acreditar que meu amigo pode até ter razão. Esse Sigismeno tem cada uma…