Nas Arábias

Rafale, caça francês

José Horta Manzano

Emmanuel Macron, presidente da França, foi de visita aos Emirados Árabes Unidos. Não pra fazer turismo nem pra inaugurar embaixadas, que isso é trabalho secundário, que não requer presença de presidente da República. Foi fazer negócios. E fez.

Em Dubai, assinou nesta sexta-feira o contrato de venda de 80 (oitenta) aviões Rafale, o suprassumo da tecnologia militar francesa, aquele aparelho que o Lula se comprometeu a comprar de Sarkozy, mas depois acabou esquecendo.

O valor da transação é de 16 bilhões de euros (mais de 100 bilhões de reais). Além dos aviões de combate, o príncipe herdeiro comprou ainda 12 helicópteros Caracal de transporte militar. O total da fatura ultrapassa 17 bilhões de euros (108 bilhões de reais).

Faz 15 dias, nosso capitão passeou pelas areias da mesma região, pisou os valiosos tapetes dos mesmos palácios, admirou (será?) os mesmos mármores e os mesmos ouros, contou lorota aos mesmos emires. E o que é que trouxe de volta?

Doutor Guedes explicou que os árabes têm interesse em comprar dois times de futebol. Que estupendo! Isso é o que se chama, na linguagem do capitão “vender o Brasil”. Taí uma viagem presidencial que realmente valeu a pena.

A floresta intocada

Bolsonaro mergulhado nos ouros e nos mármores do Oriente Médio.

José Horta Manzano

Bolsonaro, o indesejado das gentes, não é bem-vindo em nenhum país civilizado. Não recebe convite para visitar nenhum deles. Sem ter o que fazer, perambula pela periferia do mundo. E leva junto os bolsonarinhos, que também parecem não ter nada mais importante pra fazer na vida.

Estes dias, está fazendo turismo nos palácios de ouro e mármore que ditaduras hereditárias levantaram, com o dinheiro do petróleo, sobre as areias do desértico Oriente Médio.

Nenhum jornalista ousou fazer-lhe a pergunta fatal: “Então, presidente, aquela promessa de campanha de transferir a embaixada do Brasil de Tel Aviv para Jerusalém, como é que fica?”. Não convém reavivar memória de ofensas passadas, justamente quando se está de visita à casa dos ofendidos.

Em discurso pronunciado neste 15 de novembro, Bolsonaro garantiu, alto e bom som, que a Amazônia continua virgem e intocada, exatamente como a encontraram os primeiros exploradores portugueses chegados em 1500.

Distorcida pelo linguajar peculiar do capitão, a frase saiu picadinha. Mas o fundo de seu pensamento era esse. Garantiu, sem corar, que as queimadas são um mito. Em seu raciocínio, a floresta, sendo úmida, não pode arder. (Me fez lembrar aquele impagável discurso em que o Lula ensinava que só havia poluição no Brasil porque a Terra gira; não girasse, não haveria poluição.)

Por coincidência, no mesmo 15 de novembro, o Instituto de Pesquisas Espaciais anunciou a triste verdade: diferentemente do que anuncia o capitão, a floresta amazônica continua encolhendo. Só no mês passado (outubro), 876,5 km2 viraram pó.

No Brasil, país acostumado a cifras gigantescas – de população, superfície, assaltos e mortes por covid –, esse número não impressiona. Em outras partes do mundo, não é bem assim.

A Suíça, por exemplo, abriga 8 milhões de habitantes espalhados por 26 cantões. Pois saiba o distinto leitor que a superfície de floresta amazônica brasileira destruída no mês de outubro é exatamente a mediana da área dos cantões suíços. Isso quer dizer que metade dos cantões tem superfície menor que 876,5 km2, enquanto a outra metade tem superfície maior que a zona desmatada. “Ah, mas a Suíça é país pequeno!” – dirá um desmancha-prazeres. Ah, é? Então leia o que vem a seguir.

A superfície que foi desmatada só no mês de outubro pode não impressionar no Brasil, mas deixa de queixo caído em outras partes do mundo. É mais que 8 vezes a superfície do município de Paris, número que impressiona qualquer francês. É mais que 7 vezes a área do município de Milão, vastidão de deixar abobado qualquer italiano. Para todos eles, é aterrorizante imaginar que o Brasil destrói, a cada 3 dias, a cobertura vegetal de uma área do tamanho de uma grande metrópole.

Ao fim e ao cabo, a mentira presidencial tem perna curta. Doutor Jair Messias não é o único canal de informação da plateia que acompanhou seu palavrório nas Arábias. Como pessoas bem formadas e bem informadas que são, todos eles, a estas alturas, já devem estar a par dos números do Inpe. Já conhecem a verdade. Eles, sim, dispõem de canais que lhes dão informações eficazes.

Não faço ideia de quem prepara os discursos do capitão. Há de ser gente que nunca sai da bolha. Eles parecem acreditar que o mundo é composto de devotos que bebem unicamente as “verdades” espalhadas pelos canais bolsonaristas.

Enganam-se, fazem o presidente dar vexame. De tabela, envergonham a todos nós.

Novo aeroporto

José Horta Manzano

Como é bom ser grande empresário num país de gente apática! Nossa falta de noção de pertencimento a uma comunidade faz que cada um de nós reaja com um simples dar de ombros a qualquer notícia, seja ela boa ou má.

O máximo que se vê é algum protestozinho mole aqui ou ali ― alguma manifestação que acaba se desmanchando em vandalismo. De estudar, que é bom, não gostamos. De aprender, que é bom, não gostamos. De nos esforçar, que é bom, não gostamos. De dar o melhor de nós mesmos, que é bom, não gostamos. Passamos a vida à espera de que alguém faça alguma coisa. Costumamos ter a nítida impressão de que o problema não é conosco.

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

Alguns poucos se apercebem dessa generalizada tendência ao descaso, ao «tô-nem-aí». Para desgraça nossa, nem sempre são os mais bem-intencionados. Vai daí, nossas portas estão abertas a aventureiros, predadores, espertalhões, inescrupolosos, aproveitadores. A conjunção deletéria do descaso da população com o oportunismo de uma meia dúzia trava o país. E perpetua o insuportável contraste entre a riqueza indecente de uns contra a miséria negra de outros.

Em seu blogue alojado no Estadão, Marina Gazzoni nos contava, semana passada, que está prevista a construção de novo aeroporto (mais um!) para servir a cidade de São Paulo. O projeto foi apresentado por um consórcio de grandes empreiteiras. A certeza de que seja aprovado sem reticências é tão grande, que as construtoras já compraram até o terreno. Afinal, convencer autoridades públicas é especialidade de grandes empresários…

Reinventando o avião by Glen Baxter, desenhista inglês

Reinventando o avião
by Glen Baxter, desenhista inglês

O adjetivo absurdo, de tão usado, já gastou. Dizer que a ideia é absurda soa banal. Contraditória? Incoerente? Insensata? Disparatada? Que cada qual escolha o termo que melhor lhe convier. Estamos diante de uma estupidez sem nome.

O aeroporto de Guarulhos, que há 30 anos serve a capital do Estado, viu passar 32 milhões de passageiros em 2012. No mesmo ano, o movimento de viajantes registrado nos dez aeroportos mais movimentados do planeta foi o seguinte:

    Dubai       = 58 milhões
    Djacarta    = 58 milhões
    Dallas      = 59 milhões
    Paris       = 62 milhões
    Los Angeles = 64 milhões
    Chicago     = 67 milhões
    Tóquio      = 68 milhões
    Londres     = 70 milhões
    Pequim      = 82 milhões
    Atlanta     = 95 milhões (!)

Guarulhos não aparece nem entre os 30 aeroportos mais movimentados do mundo. Como qualquer um pode deduzir, se outros conseguem acolher o triplo dos viajantes atendidos em Cumbica, por que, raios, não seríamos nós capazes de fazer o mesmo? Há maneiras mais práticas, mais baratas, mais eficazes e mais lógicas de melhorar o desempenho da estrutura existente.

Foi um erro ter construído o aeroporto onde se encontra? Muitos dizem que sim. Mas não tem mais jeito: feito está, feito ficará. O que não convém é repetir a asneira.

Visita curta ― saguão de aeroporto desnecessário by Ross Thomson, desenhista inglês

Visita curta ― saguão de aeroporto desnecessário
by Ross Thomson, desenhista inglês

Caieiras, o município «escolhido» pelos empreiteiros, é localidade encarapitada na Serra da Mantiqueira, a quase 800m de altitude, num dos raros pulmões verdes que ainda sobram à roda de São Paulo. Para coroar o desatino, aquela serra é considerada zona de mananciais. Uma parte do abastecimento de água da megalópole depende da preservação e dos bons cuidados que se dediquem à região. E tem mais: como localidade serrana, Caieiras é tão sujeita a nevoeiros como Guarulhos.

Antes de pensar em novo aeroporto, ainda há muito que fazer no velho. Ligação ferroviária rápida, aumento da capacidade dos estacionamentos, construção de novos terminais, desapropriação de terrenos circunvizinhos, melhora na logística de movimento de carga, aprimoramento da formação de pessoal, reforço da segurança. Tudo isso é mais lógico e sai mais barato do que construir mais uma estação aérea.

Não tem cabimento termos estádios padrão Fifa e continuarmos com aeroportos padrão Uagadugu.

As flutuações da lei

José Horta Manzano

Faz quase quatro mil anos que o Código de Hamurábi foi inscrito num monolito, em escrita cuneiforme. Aquele pedaço de rocha contém a coletânea de leis e procedimentos mais completa e mais antiga de que temos notícia. A criação ― e a aplicação ― de um arcabouço legal é uma das marcas que distinguem uma sociedade civilizada de um bando de selvagens.

Quando a Roma antiga firmou suas regras legais, justamente aquelas que deram origem ao nosso Direito, já fazia um milênio e meio que os pioneiros babilônios tinham dado os primeiros passos nessa senda.

Em nosso País, não faltam leis. Temos uma das constituições mais prolixas do mundo e um emaranhado impressionante de leis, decretos, medidas provisórias, provimentos, regulamentos. Não é a falta delas que atrapalha. Nem, como pensam muitos, o excesso. O que desorienta o cidadão é a instabilidade das normas legais. O que vale hoje à noite pode não mais valer amanhã de manhã.

Sonia Racy, em seu blogue alojado no Estadão, nos faz saber, neste 14 de novembro, que o emir de Dubai renuncia a participar de leilões de privatização de aeroportos brasileiros. O motivo da recusa foi atirado simples, franca e diretamente aos ouvidos do vice-presidente de nossa República: a insegurança jurídica. É gravíssimo o que disse o endinheirado potentado.

Este não é espaço onde se pretenda discutir a validade ou não de privatizações ou partilhas. O abandono total ou parcial de soberania, por parte do Estado, sobre aeroportos é um outro capítulo. O que me desassossega aqui é o fato de nossa instabilidade jurídica estar afugentando capitais.

Aeroporto de Dubai

Aeroporto de Dubai

Dubai, como os outros emirados do Golfo Pérsico, não produz nada. Quis a natureza que aquela região desértica se assentasse sobre um mar de petróleo. Vivem há anos da exploração dessa riqueza fóssil. E vivem muito bem! Melhor que isso: são governados por clãs que têm visão. Sabem todos que, mais dia, menos dia, o petróleo vai acabar. E aí, como fica?

Dado que o solo e o clima não permitem nenhuma agricultura, estão investindo na cultura do povo e diversificando as aplicações em outros países. A Sorbonne, tradicional universidade parisiense, foi convidada a instalar uma filial em Abu Dabi. Está funcionando já faz alguns anos.

As estatísticas mostram que o intenso investimento no setor de transporte aéreo já ergueu o aeroporto de Dubai a um patamar impressionantemente elevado. Em 2012, aquele terminal aéreo apareceu em 10° lugar na classificação mundial por número de passageiros. Desbancou Amsterdam, JFK (Nova York), Hong Kong, Madrid e até Frankfurt!

Enfim, não estão esbanjando o dinheiro fácil em palácios com maçanetas de ouro maciço. Estão transformando aquela desolada região em importante escala aérea, destino turístico, centro de educação de primeira grandeza, polo de pesquisa e desenvolvimento de alto nível.

Não são amadores. Se julgam que o Brasil não merece receber seus investimentos, dado o temor que nossa insegurança jurídica lhes infunde, é chegado o momento de nossas autoridades pensarem muito bem de onde viemos, onde estamos, e para onde queremos ir.

Sermos considerados república de bananas não só machuca nosso amor-próprio como também ― e principalmente ― nos afasta do circuito de circulação das riquezas. E isso, a longo prazo, é ruim para todos.