Não pode mesmo

José Horta Manzano

A pergunta que eu fazia em minha postagem Ameaça ou bravata?, de 5 jan° 2014, ganhou resposta: era bravata mesmo.

Avião 9Quem confirma é a própria Folha de São Paulo deste 7 jan° pela pluma de Mariana Barbosa. A ameaça proferida pela doutora chefe da Casa Civil não poderá ser executada. É inviável.

Em épocas normais, episódios caóticos acontecem no transporte aéreo brasileiro com afligente frequência. Para o período da Copa do Mundo de Futebol, anuncia-se um pandemônio, termo a ser entendido no sentido etimológico originário: todos os demônios estarão soltos. Preços escorchantes, superlotação, desrespeito a horários, desencaminhamento de bagagem, menosprezo aos viajantes.

Para remediar o sufoco que já aponta no horizonte, a ministra ameaçou pedir ajuda temporária a companhias aéreas estrangeiras. Na falta de lei que legitime essa surpreendente decisão, a doutora aventou a hipótese de se costurar uma medida provisória ad hoc.

Em outras palavras, seria (mais) uma solução improvisada às carreiras para consertar o que foi negligenciado pelas eminências que planificaram o evento.

O artigo da Folha confirma que uma abertura, ainda que temporária, do mercado interno nacional a empresas de fora contraria tratados e convênios, abrindo um «precedente perigoso». Seria uma leviandade passível de pesadas consequências. Além disso, ainda que o governo impusesse na valentona o desrespeito ao uso internacional, não haveria tempo hábil para pôr em prática a solução meia-sola.

Avião 8Era, portanto, pura bravata da ministra. Ou, pior, ignorância. Ameaças fazem parte do arsenal de todo governo. São expedientes legítimos. Mas precisa saber fazer uso delas. Faltou sutileza a sua excelência. Ela foi direta demais, específica demais ― e acabou perdendo a face.

Quem ajoelhou tem de rezar. Não saindo nem uma ave-maria, a sanção deveria ir até à destituição da dignitária. É o que aconteceria em países mais civilizados, onde um papelão dessa magnitude não passaria em branco.

Mas, sabe como é que é, na nossa terra tem disso não. Ministros são colaboradores de confiança ― de confiança! ― do presidente da República. Cabe a ele nomeá-los e demiti-los. Se a mandatária-mor está satisfeita, vamos deixar como está. E vamos pra frente, que atrás vem gente.

PS: Se alguém se interessar pelo artigo da Folha ― bem fundamentado e com infográfico ― que clique aqui.

Grande jogada

José Horta Manzano

A partir do século XVII, os habitantes de grandes países começaram a se dar conta de que não era normal que uma pessoa ou um pequeno grupo desse as cartas e governasse sozinho. Foi assim na Grã-Bretanha de Cromwell, na França da Revolução, nas colônias da Nova Inglaterra. Aqueles povos se consideravam já maduros para dar um basta à oligarquia. Regimes absolutistas ― com rei sol ou sem ele ― já não combinavam mais com os novos tempos.

Boca de urna 1No Brasil, demorou um pouco. Durante o período imperial, o monarca detinha o Poder Moderador, que, na prática, lhe conferia atributos dignos de um soberano absolutista. Foi preciso esperar até 1889, quando um golpe de Estado derrubou o regime e instaurou a República. A partir de então, nosso país disse adeus, pelo menos em teoria, a governantes discricionários.

Tivemos recaídas. Com golpes em 1930 e em 1937, Getúlio Vargas fez retroceder o Brasil a um regime fechado, no qual uma pequena casta voltava a deter o poder. A liberalização de 1945 durou pouco. Menos de vinte anos depois, as rédeas do País eram entregues a um grupo de militares de alta patente. Novo retrocesso. Finalmente, a democracia voltou em 1985, abrindo para todos os cidadãos a possibilidade teórica de ter acesso a postos de mando.

Por um erro ― proposital? ―, a Constituição de 1988 dava ao chefe do Executivo o poder de editar medidas provisórias. A intenção do legislador há de ter sido nobre: visava a evitar a paralisia do governo. A medida provisória deveria ser reservada para casos de extrema urgência, quando não se pudesse aguardar um voto do parlamento. Deveria servir para prevenir casos como a queda de braço a que estamos assistindo estes dias entre o presidente dos EUA e seu Congresso.

Boca de urna 3Mas, sabemos todos, a carne é fraca. Com uma arma tão poderosa na ponta da caneta, nenhum presidente se privou de lançar mão de MPs intempestivas e mesmo de abusar delas. Fizeram isso, com frequência, em casos não justificados por urgência. Estes últimos tempos, o abuso de MPs tem crescido a ponto de se tornar flagrante, escancarado, indecente. Vê-se que o Executivo continua governando um povo anestesiado. Um novo golpe sem armas está sendo assestado contra a democracia.

Um editorial do Estadão de 15 de outubro nos informa que a MP 615, editada por dona Dilma em maio passado, foi aprovada pelo Senado. A nova lei é verdadeira colcha de retalhos. Subvenciona produtores de cana, autoriza agentes penitenciários a portar arma em horário de folga, alarga prazo de renegociação de dívidas fiscais, regulariza terras ocupadas por templos no DF.

Entre esses variegados balangandãs, um sobressai. A atribuição de licença para motoristas de táxi deixa de ser concessão sujeita a licitação e passa a ser hereditária (sic). Como as Capitanias, lembram-se das aulas de História? Como os cartórios. A partir de agora, filho de taxista, taxistinha será. Por direito adquirido. Não é a prova cabal de que o Brasil está enfim se tornando um país civilizado? O Estadão explica o absurdo da situação tim-tim por tim-tim. Não vale a pena repetir o arrazoado aqui.

Em meu artigo A bolsa eleição, publicado pelo Correio Braziliense de 7 de setembro, denunciei a intenção que se oculta por detrás da importação maciça de médicos cubanos. Vejo em cada um daqueles profissionais um cabo eleitoral pronto a influenciar os mais ingênuos de seus pacientes a apoiar, com seu voto, a oligarquia reinante no Planalto.

Boca de urna 2Se analisarmos sob esse aspecto a concessão de licença hereditária a todos os taxistas, entenderemos que o raciocínio é o mesmo. Motoristas de táxi estão em contacto com dezenas de pessoas a cada dia. Muitas vezes, uma conversa amistosa se estabelece entre o profissional e seu passageiro. Se todos os taxistas do País ― que devem ser muitos milhares ― agirem como cabos eleitorais e derem uma forcinha ao governo, a aristocracia que nos governa estará mais próxima do sonho de se perpetuar no comando.

Um taxista que recebeu, de mão beijada, um patrimônio transmissível a seus herdeiros há de estar muito satisfeito com o inesperado presente. Não precisa nem doutriná-lo para elogiar o governo ― ele fará isso espontaneamente.

Grande jogada, não?

Nada é perfeito

José Horta Manzano

Estamos comemorando a passagem de um quarto de século do dia em que a atual Constituição entrou em vigor. Não sou especialista em Direito Constitucional, mas tenho prestado atenção ao que dizem peritos e também ao que opinam abelhudos. Não há consenso, as opiniões são por demais divergentes. Há quem aplauda de pé a carta de 1988 e há também quem a considere execrável.

A atual Constituição da República é acusada de ter saído imperfeita por ter sido elaborada na sequência de uma mudança de regime político, num momento especial e conturbado. Quem assim pensa se esquece de que praticamente todas as constituições são votadas em momentos críticos da vida de um país. Salvo casos excepcionais, todas costumam assinalar mudança de regime.

A lei maior dos EUA foi fabricada justamente quando os colonos europeus da Nova Inglaterra decidiram que era hora de fundar um novo país, independente da metrópole britânica. Foi uma senhora quebra de regime!

A carta magna da Espanha marcou o enterro da ditadura franquista e o advento da democracia. A italiana data de 1946, quando o fascismo foi banido e deu lugar à atual república parlamentar. Na França, a atual lei maior data de 1958 e indica a transição de um regime parlamentarista para o atual presidencialismo.

Portanto, eventuais imperfeições da Constituição brasileira de 1988 não devem ser atribuídas à agitação daquele momento.

A constituição francesa se escreve com cerca de 2300 palavras. A americana tem pouco mais de 8 mil. Os italianos e os espanhóis ― povos de natureza mais prolixa ― utilizam respectivamente 15 mil e 18 mil palavras para consignar no papel suas diretivas legais básicas. Já a atual Constituição da República do Brasil ultrapassa… 49 mil palavras(!). Um despropósito. Já dizia minha avó que quem fala demais dá bom-dia a cavalo.

Constituição federal do Brasil

Constituição federal do Brasil

O amazonense Bernardo Cabral, veterano homem político que chegou até a «estar» ministro da Justiça por alguns meses em 1990, atuou como relator da Constituição de 1988. Esta semana, em entrevista à Folha de São Paulo, confessa que guarda algumas frustrações da época da confecção da nova carta.

Seu maior desapontamento vem de não ter conseguido convencer seus pares a adotarem um regime parlamentarista, que lhe parecia o mais apropriado para o Brasil. Nessa mesma linha, Cabral lamenta que a lei maior autorize o presidente da República a editar medidas provisórias, as famigeradas MPs. Segundo ele, esse instituto confere ao chefe do Executivo poderes dignos de um ditador. As medidas provisórias ― de que todos os presidentes costumam lançar mão com maior ou menor frequência ― permitem que o titular do Planalto passe por cima do Congresso. Como nos tempos de Getúlio Vargas.

A Assembleia Constituinte de 1988 foi convocada justamente para atirar ao lixo todo resquício de autoritarismo herdado da ditadura militar. Que aqueles deputados tenham deixado passar um instrumento que hoje dá poderes ditatoriais ao presidente da República é estonteante. Os ilustres constituintes fizeram vista grossa ― ou simplesmente não enxergaram ― essa enorme distorção. Vê-se que, em sua maioria, não estavam à altura da empreitada para a qual tinham sido eleitos. Uma oportunidade esbanjada.

Tem nada, não. Da próxima vez, faremos melhor. Ou não.