A força do Congresso

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 dezembro 2019.

A névoa de destempero que envolve nosso bizarro presidente e seus áulicos é tão fora dos padrões que embaralha as cartas do jogo político. Notícias de velhos e obstinados ‘malfeitos’ atribuídos a membros do clã se embolam com a belicosa verbosidade presidencial para tecer o enredo do angustiante drama que continua em cartaz no Planalto. Faz um ano que analistas de alto estofo tentam – sem sucesso – decifrar o indecifrável. Nada de significativo ressalta das atividades presidenciais senão vingança, mesquinhez, paranoia. O prato feito que nos é servido todos os dias é sempre o mesmo. Fica a impressão de que, se alguma coisa ainda caminha no país, é por inércia ou por obra samaritana de funcionários dedicados.

A permanência, no mando, de mentes perturbadas monopoliza a atenção da nação. O espalhafato da cúpula manda pra escanteio tudo o mais. É pena porque dá recado distorcido. Embora não pareça, o clã do Planalto não segura sozinho as rédeas do país. Para o que der e vier, está aí o Congresso, sustentado por naco robusto do voto dos brasileiros.

No entanto, recente pesquisa do Instituto Datafolha atesta que só 14% dos que votaram nas últimas eleições avaliam positivamente o Congresso atual. E pensar que a legislatura deu partida há um ano justinho, com eleitos que sequer cumpriram o primeiro quarto do mandato. O motor ainda nem esquentou e Suas Excelências já rolaram para o vale dos enjeitados. Apenas 1 em cada 7 brasileiros vê Senado e Câmara com bons olhos. Como é possível? Os cidadãos nem bem elegeram seus representantes, e já se declaram arrependidos. É difícil de entender. Abstenção maciça ou número expressivo de votos nulos e brancos seria uma explicação. Mas os eleitores brasileiros votaram em massa. Exprimiram-se. Um ano depois, já foi tudo por água abaixo? Sozinha, a monopolização da cena política pelas estrepolias do Planalto não explica o desamor.

A mesma pesquisa informa que, às vésperas da inauguração da atual legislatura, 56% dos eleitores botavam fé nos parlamentares. A queda brutal, em um ano, de 56% para 14% só tem uma explicação plausível: os eleitores votaram às cegas, sem saber direito quem estavam elegendo. Sabe-se que, no geral, o eleitor brasileiro não se lembra do nome dos candidatos em que votou; mesmo que se lembrasse, não poderia ter certeza de que seu voto beneficiou realmente o candidato escolhido ou se foi sequestrado e desviado para a sacola de um desconhecido.

Voto distrital: representação artística

Nosso sistema eleitoral é viciado. O voto proporcional foi pensado para um cenário de partidos fortes. Não é nosso caso. O panorama partidário está esfarelado em uma torrente de agremiações, algumas minúsculas. Ideologia e propósitos tendem a ser pouco claros. Num quadro fragmentado a esse ponto, ‘dono’ de partido nanico sonha em conseguir a afiliação de um figurão de renome – futebolista, artista, pouco importa, desde que seja conhecido. Será o puxador de voto. A montanha de sufrágios que receber elegerá figuras desconhecidas, que perigam engrossar o baixo clero. E o eleitor, sem se dar conta, terá sido defraudado.

Fora do voto distrital puro, não há solução. Com ele, as vantagens serão múltiplas: proximidade entre eleitor e eleito, forte tendência ao desaparecimento de siglas de aluguel, enxugamento da fragmentação partidária. Cada um saberá sempre quem é SEU deputado, aquele que representa seu distrito de residência, o que facilita a cobrança. Outra consequência benéfica será o barateamento das campanhas, pois cada candidato se limitará a vender seu peixe dentro do próprio distrito. E mais: a falta de um deputado provocará eleição parcial somente naquele distrito, eliminando a figura esquisita do suplente.

Em períodos turbulentos como este que atravessamos, em que a Presidência derrama decretos desvairados a três por dois, sobressai a importância de um legislativo esclarecido e competente. Juntos, os parlamentares têm mais força que o presidente. Podem fazer a lei, desfazê-la e até derrubar vetos presidenciais. Oxalá a introdução do voto distrital puro intervenha rapidamente. É aprimoramento republicano bem-vindo. Feliz ano-novo a todos!

Ato falho e representatividade

José Horta Manzano

Doutor Temer, atual presidente da República, esteve ontem de passagem por Caraguatatuba (SP) participando de cerimônia de entrega de escritura definitiva de imóveis regularizados por recente lei fundiária. A solenidade anódina não levantou manchetes na mídia. Tirando aqueles que leem jornal do cabeçalho ao rodapé ‒ anúncios incluídos ‒, a notícia passou despercebida.

No tempo em que a informação só chegava por jornal impresso, eu costumava ler tudo, até anúncios. Hoje não é mais possível. Ninguém mais tem tempo nem disposição pra ler tudo o que se publica. Com a multiplicação de fontes surgidas nestes tempos modernos, só robôs conseguem absorver essa sopa de letras.

Na solenidade em Caraguá, doutor Temer pronunciou discurso de ocasião, daqueles que, com pequenos ajustes, servem pra qualquer circunstância. Disse ele: «Para mim é motivo de alegria estar aqui nesta região, que visitei várias vezes quando disputei e me elegi, por seis mandatos, ao cargo de deputado federal pelo estado de São Paulo».

Poucos hão de se ter dado conta da confissão que se esconde por detrás dessas palavras. Pra começar, o político aproveita para vangloriar-se de ter sido eleito por seis mandatos de deputado. Repisa o fato de não ser novato na política, de ter larga experiência e, por conseguinte, de estar amplamente capacitado pra exercer o cargo atual. Releve-se a imodéstia, que a vaidade é atributo de todos nós.

O que mais me marcou vem logo a seguir. O presidente diz que visitou a região ‘várias vezes’ quando estava em campanha. Infere-se que, uma vez eleito, as visitas rarearam ou cessaram. Reparem que ele não mencionou ter visitado a região quando era deputado, mas apenas quando disputava eleições. É ato falho que denuncia o déficit de representatividade de que padecem nossos cidadãos.

Nosso sistema proporcional, que funciona para escolha de deputados e vereadores, é tóxico. Não aproxima o povo de seus eleitos e, por isso mesmo, desobriga os representantes de prestar contas dos próprios atos. O cidadão vota num candidato e, sem saber, pode acabar elegendo outro do qual nunca ouviu falar. O eleito não sabe de onde vieram os votos que lhe deram mandato. É divórcio anunciado e consentido.

Para pôr termo a essa aberração, só existe um caminho: o voto distrital puro, com dois turnos de votação. Não custa repetir os princípios gerais. Começa-se por dividir o país em 513(1) distritos de população equivalente. Cada distrito elegerá um único deputado. Cada partido tem o direito de apresentar um só candidato em cada distrito. Ao final do primeiro turno, os candidatos que tiverem obtido mais de 50% dos votos terão sido eleitos. Nos distritos onde ninguém tiver atingido maioria absoluta, organiza-se um segundo turno com os dois candidatos mais votados. Quem vencer será o representante do distrito.

Se assim fizermos, alcançaremos diversas vantagens:

  • Campanhas serão muito mais baratas.
  • Cada eleitor saberá quem é o seu representante.
  • Cada representante saberá onde estão os seus eleitores.
  • Cada deputado se esforçará para beneficiar o próprio distrito.
  • Grotões esquecidos ou abandonados tenderão a desaparecer.
  • A proximidade entre eleitores e eleitos jogará luz sobre pequenos problemas específicos de cada região aos quais, no sistema atual, não se costuma prestar atenção.

No dia em que assim votarmos, nenhum eleito, ao discursar no próprio distrito, dirá «visitei várias vezes esta região». Quem ganhará com isso será o povo brasileiro.

(1)  A Câmara Federal é composta por 513 deputados. Portanto, o país será dividido em igual número de distritos. Cada um elegerá o seu deputado.

Parlamentarismo à francesa

José Horta Manzano

Em teoria, a França vive sob regime parlamentarista. Entretanto, a Constituição em vigor, promulgada em 1958 sob medida para o general de Gaulle, dá poderes não habituais ao presidente da República. A costura acabou inventando um regime híbrido, a meio caminho entre parlamentarismo e presidencialismo. Diferentemente do que costuma ocorrer em outros países, o chefe do Estado francês (o presidente) tem projeção muito maior do que o chefe do governo (o primeiro-ministro). Quer uma prova?

Vamos ver. Quem é que conhece o nome do atual primeiro-ministro francês? Todos sabem que sua colega alemã é Frau Merkel. Quem governa o Reino Unido é Mrs. May. Señor Rajoy é quem dirige o governo espanhol. Mas… e na França, quem será? Pois o primeiro-ministro ‒ e chefe do governo ‒ é Monsieur Édouard Philippe. Isso mesmo: Philippe é o sobrenome.

Assembleia nacional francesa

A Constituição do país garante ao chefe do Estado poderes que, em outros países europeus, são atribuídos ao primeiro-ministro. É eleito pelo voto popular. Pode dissolver a Assembleia e convocar eleições. Pode propor plebiscitos, nomear e demitir ministros, assinar decretos, nomear embaixadores, conceder graça a condenados, negociar e assinar tratados. É ele quem preside a reunião governamental, realizada todas as quartas-feiras, com a presença de todos os ministros. Em cúpulas internacionais como o G7 e o G20, é o presidente quem representa o país.

A cada cinco anos, um mês depois da eleição presidencial, os franceses vão às urnas para renovar a Assembleia. O voto é distrital puro. O país é dividido em 577 distritos de população equivalente. Cada um elege um deputado que o representará na Assembleia Nacional. Em cada distrito, será eleito o candidato que tiver obtido maioria absoluta, ou seja, 50% mais um dos votos válidos. É raro que isso aconteça já no primeiro turno, daí a necessidade de um segundo. Qualificam-se para a segunda rodada os candidatos que obtiverem voto de pelo menos 12.5% do eleitorado (não somente dos que tiverem efetivamente votado).

No domingo 11 de junho, ocorreu o primeiro turno de votação. Somente quatro deputados conseguiram eleger-se diretamente, com mais de 50% dos votos do distrito. Os eleitores das demais 573 circunscrições voltarão às urnas uma semana depois, em 18 de junho, para escolher entre os dois primeiros colocados. Este ano, há um único caso dito «triangular», em que três candidatos se qualificaram para o segundo turno.

Assembleia Nacional francesa

O sistema de voto distrital puro tem vantagens e desvantagens. Do lado bom, cada cidadão sabe perfeitamente qual é o deputado que o representa em Paris. A campanha tem custo muitíssimo menor do que no Brasil, por exemplo. O candidato, que percorre um território relativamente pequeno, fica mais próximo do eleitor, distribui santinhos pessoalmente, multiplica apertos de mão, beija crianças, tira «selfies» com apoiadores, visita feiras-livres, exposições, pequenos comércios.

Além disso, os franceses residentes no exterior também são representados. O planeta foi dividido em onze distritos eleitorais, conforme a concentração de expatriados em cada um. Portanto, dos 577 deputados, 566 representam os franceses residentes no território nacional e onze trazem a voz dos que vivem fora. Os três milhões de brasileiros que moram fora do Brasil não gozam de direito equivalente.

Do lado menos positivo, a tendência ao bipartidarismo é forte. A composição da Assembleia não reflete necessariamente a proporção de votos obtidos por cada partido. Ao final das atuais eleições francesas, a Frente Nacional, partido de extrema-direita antieuropeu e anti-imigração, não conseguirá eleger mais que uma dezena de deputados. O número de eleitos não bate com o número de eleitores do partido. No caso específico de partidos extremistas (de esquerda ou de direita, pouco importa), a distorção não incomoda os cidadãos de orientação moderada, que formam, ao fim das contas, a maioria da população.

Se um dia tal sistema for instituído no Brasil, a consequência mais imediata será o desaparecimento de siglas de aluguel, chaga nacional. Ganharemos todos.