Trânsito em julgado

José Horta Manzano

Quando sancionou a lei dita “da ficha limpa”, o Lula, então presidente da República, não imaginava que o feitiço um dia se viraria contra o feiticeiro. Ah, se arrependimento matasse…

O mesmo se pode dizer do STF, quando determinou que condenados por tribunal colegiado de segunda instância podem ser despachados à prisão. Não imaginavam que a decisão pudesse alcançar tanto político ladrão.

Seja como for, vale o escrito. Assinou, assinado está. O jamegão sapecado pelo demiurgo e a decisão do STF confortaram os brasileiros de bem. Ambos os dispositivos têm-se mostrado preciosos para abolir a sensação de impunidade que costumava vigorar entre criminosos de colarinho branco.

Boa parte dos atuais inquilinos da carceragem de Curitiba e da Papuda só estão lá em virtude da decisão do tribunal maior. Não fosse isso, muita gente fina ‒ Eduardo Cunha, Sergio Cabral & outros de jaez equivalente ‒ ainda estaria por aí, soltinha, a vampirizar a seiva do país e o fruto do trabalho dos conterrâneos honestos.

Faz tempo que, acossado pela interpretação do STF, o esperto ex-presidente gasta fortunas para escapar do cárcere. Até um antigo membro do STF, um doutor de nome Sepúlveda, foi ressuscitado para encorpar seu batalhão de defensores. (Aliás, perguntar não ofende: de onde virá a dinheirama pra pagar esse mundaréu de advogados?)

O nó da questão está na interpretação que se dá ao Inciso n° 57 do Artigo n° 5 da Constituição. Está lá escrito que «ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória». O texto é cristalino. É proibido dizer que um réu é culpado até que se esgotem todos os recursos e apelações. Somente quando não houver mais para quem apelar é que o indivíduo será definitivamente considerado culpado.

Contra lei clara, não há argumento que se mantenha em pé. Portanto, nosso guia, assim como cúmplices e companheiros de aventura, ainda goza da presunção de inocência. Só se podem considerar culpados os que já tiverem esgotado o estoque de chicanas.

Acontece que tem um porém. A Constituição não reserva a prisão unicamente para culpados confirmados. Nenhum artigo da carta magna proíbe que presumidos culpados sejam encarcerados. Se assim não fosse, não haveria o instituto da prisão temporária, muito menos o da prisão preventiva.

Cadeias estão cheias de gente que ainda não passou nem por julgamento de primeira instância. Um punhado de motivos pode levar um indivíduo a ser preso antes da condenação definitiva. Um deles ‒ talvez o mais importante ‒ é justamente o risco à ordem pública que o cidadão possa representar.

Esse argumento cai como luva no caso de nosso pranteado ex-presidente. Todo réu,  mesmo condenado em duas instâncias, ainda goza da presunção de inocência. Por seu lado, o corolário é válido: esse mesmo réu padece também da presunção de culpabilidade.

Nosso guia, que se encontra exatamente nessa situação, insiste na tentativa de agitar as massas ao atacar magistrados, enxovalhar a Justiça, acusar juízes de o perseguirem, açular brigadas amestradas (e remuneradas) de baderneiros, provocar comoção nacional. O que mais precisa pra caracterizar risco de perturbação da ordem pública?