Bom sujeito não é?

José Horta Manzano

Acaba de ser nomeado o novo ministro da Educação, o quarto nome em ano e meio de governo Bolsonaro. Em vez de discorrer sobre sua experiência como educador, a mídia ressalta que o nomeado é prelado numa organização religiosa de tipo evangélico. O que isso tem a ver com a Instrução Pública, ninguém explicou.

Não se deve condenar sem julgar, mas o ministro já dá a partida com uma penalidade: quem foi escolhido por doutor Bolsonaro – e aceitou! – atrelou sua imagem a uma engrenagem de risco.

by Suélen Becker, desenhista carioca

Só fica no posto se se mantiver calado, inativo, apagado, sem fazer sombra ao chefe – uma mancha no currículo. Será demitido ao menor sinal de pensamento independente ou de popularidade superior à do chefe – se assim for, levará pra casa vergonha dupla: ter sido ministro de Bolsonaro e ter sido despedido.

Não há escapatória.

Vou de táxi

José Horta Manzano

Na Suíça, assim que a quarentena começou a afrouxar, o tráfego de automóveis teve aumento brutal. Sumiu o canto dos pássaros e voltou a poluição por partículas finas. A volta à vida pré-pandemia foi recaída brutal.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, as atividades econômicas deste país não estão geograficamente concentradas. Para trabalhar, não são todos obrigados a convergir em direção a alguma metrópole. Os focos de atividade econômica – indústrias ou serviços – estão disseminados pelo país. No entanto, dado que nem todos residem ao lado do trabalho, grandes contingentes se deslocam diariamente em todas as direções. Boa parte desses “pendulares” viaja de trem.

Acontece que, mesmo as autoridades tendo informado que o risco de infecção é diminuto, o povo anda ressabiado; afinal, ninguém é besta. Muitos hesitam em botar de novo os pés num trem. Os citadinos, que tinham o hábito de ir ao trabalho em transporte público, também estão com medo de apanhar covid-19 no ônibus. O resultado é que muitos habitués da estrada de ferro e do trasporte público urbano renunciaram ao costume, desempoeiraram o automóvel, encheram os pneus, completaram o tanque e agora trafegam sobre quatro rodas.

Dá pra imaginar o congestionamento provocado pelo repentino afluxo de veículos. Logo nos primeiros dias de desconfinamento, pra evitar que a pandemia fosse substituída por um pandemônio, as autoridades das principais cidades do país decidiram delimitar, às pressas, novas faixas de rolamento de bicicletas, as conhecidas ciclovias.

Dois corpos não costumam ocupar o mesmo lugar no espaço – é lei da Física, cláusula pétrea da natureza. Pra criar faixa de bicicleta, tem de diminuir a largura da faixa de automóvel. Em ruas estreitas do centro de cidades antigas, não tem perdão: ou passa automóvel, ou passa bicicleta; se vierem os dois juntos, vai dar problema.

Ciclofaixa do futuro

A grita anda feia. Automobilistas reclamam por ter perdido parte da rota habitual; ciclistas reclamam porque a nova faixa ciclável é às vezes exígua. Em resumo: muita gente descontente. Mas não há jeito. É ilusão imaginar que, daqui a 50 anos, cada um vai continuar a sair por aí no seu carrinho particular. No futuro, congestionamento de tráfego será lembrança de um passado de selvageria. Já que é assim, por que não começar desde já?

Satans taktik

José Horta Manzano

Ah, com a moderna tecnologia, a informação corre o mundo rapidinho. Boas ou más, as notícias alcançam os leitores, estejam eles onde estiverem. Chegou à longínqua Suécia a declaração do dono de uma igreja de cunho neopentecostal. Disse o homem: «O coronavírus é tática de Satanás para espalhar o medo». São palavras que desafiam o bom senso e deixam qualquer cidadão perplexo.

Pior que isso, dizem as más línguas que, ao minimizar o perigo de contágio em ajuntamentos de milhares de fiéis, o ‘bispo’ está mais é valorizando a continuidade do fluxo de caixa de seu negócio em detrimento da saúde dos adeptos. Não é análise a ser descartada.

Períodos de calamidade pública como este que nos assola agem como reveladores. Propiciam a afloração do que há de melhor e, infelizmente, do que há de pior no ser humano.

“O coronavírus é tática de Satã para espalhar o medo”
Dagens Nyheter, jornal sueco.

Do lado positivo, tenho visto, na Europa, grupos de jovens se oferecendo espontaneamente para auxiliar idosos que vivem sozinhos. Dado que estes últimos correm risco maior ao sair pra comprar alimentos ou medicamentos, os jovens propõem fazer as compras e entregar em casa aos velhinhos. Sem cobrar pelo serviço, naturalmente.

Do lado negativo, tenho visto gente roubando máscaras cirúrgicas aos milhares e gente vendendo o sumido álcool gel por 20 vezes o preço original. A declaração do dono da igreja entra nesta categoria de atos execráveis. Quem expõe os próprios seguidores ao perigo de contaminação, esse sim, está agindo como Satanás. Pobres dos que se deixam enganar.

Trânsito em julgado

José Horta Manzano

Quando sancionou a lei dita “da ficha limpa”, o Lula, então presidente da República, não imaginava que o feitiço um dia se viraria contra o feiticeiro. Ah, se arrependimento matasse…

O mesmo se pode dizer do STF, quando determinou que condenados por tribunal colegiado de segunda instância podem ser despachados à prisão. Não imaginavam que a decisão pudesse alcançar tanto político ladrão.

Seja como for, vale o escrito. Assinou, assinado está. O jamegão sapecado pelo demiurgo e a decisão do STF confortaram os brasileiros de bem. Ambos os dispositivos têm-se mostrado preciosos para abolir a sensação de impunidade que costumava vigorar entre criminosos de colarinho branco.

Boa parte dos atuais inquilinos da carceragem de Curitiba e da Papuda só estão lá em virtude da decisão do tribunal maior. Não fosse isso, muita gente fina ‒ Eduardo Cunha, Sergio Cabral & outros de jaez equivalente ‒ ainda estaria por aí, soltinha, a vampirizar a seiva do país e o fruto do trabalho dos conterrâneos honestos.

Faz tempo que, acossado pela interpretação do STF, o esperto ex-presidente gasta fortunas para escapar do cárcere. Até um antigo membro do STF, um doutor de nome Sepúlveda, foi ressuscitado para encorpar seu batalhão de defensores. (Aliás, perguntar não ofende: de onde virá a dinheirama pra pagar esse mundaréu de advogados?)

O nó da questão está na interpretação que se dá ao Inciso n° 57 do Artigo n° 5 da Constituição. Está lá escrito que «ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória». O texto é cristalino. É proibido dizer que um réu é culpado até que se esgotem todos os recursos e apelações. Somente quando não houver mais para quem apelar é que o indivíduo será definitivamente considerado culpado.

Contra lei clara, não há argumento que se mantenha em pé. Portanto, nosso guia, assim como cúmplices e companheiros de aventura, ainda goza da presunção de inocência. Só se podem considerar culpados os que já tiverem esgotado o estoque de chicanas.

Acontece que tem um porém. A Constituição não reserva a prisão unicamente para culpados confirmados. Nenhum artigo da carta magna proíbe que presumidos culpados sejam encarcerados. Se assim não fosse, não haveria o instituto da prisão temporária, muito menos o da prisão preventiva.

Cadeias estão cheias de gente que ainda não passou nem por julgamento de primeira instância. Um punhado de motivos pode levar um indivíduo a ser preso antes da condenação definitiva. Um deles ‒ talvez o mais importante ‒ é justamente o risco à ordem pública que o cidadão possa representar.

Esse argumento cai como luva no caso de nosso pranteado ex-presidente. Todo réu,  mesmo condenado em duas instâncias, ainda goza da presunção de inocência. Por seu lado, o corolário é válido: esse mesmo réu padece também da presunção de culpabilidade.

Nosso guia, que se encontra exatamente nessa situação, insiste na tentativa de agitar as massas ao atacar magistrados, enxovalhar a Justiça, acusar juízes de o perseguirem, açular brigadas amestradas (e remuneradas) de baderneiros, provocar comoção nacional. O que mais precisa pra caracterizar risco de perturbação da ordem pública?

Lapsus linguæ ‒ 2

José Horta Manzano

O jogo de dados fascina o homem desde tempos pré-históricos. Antes que a evolução técnica permitisse o fabrico de roletas e cartas de baralho, ossinhos de boi ou de carneiro serviam de dado primitivo. O osso mais utilizado era o tálus, situado no pé, entre a tíbia e o calcâneo. É dotado de seis faces irregulares.

Apesar de reprimido pela lei, o jogo de dados era popular em Roma. Ao ser lançado, o dado naturalmente caía. A esse movimento, deu-se o nome de «cadentia» ‒ a queda. Com o passar dos séculos, o termo evoluiu até assumir a forma «chance» em francês. Além de evoluir foneticamente, especializou-se em indicar um bom lance, aquele que trazia sorte. A palavra chance, que se espalhou tal e qual pelas línguas europeias, tem sempre sentido positivo.

Tálus (astrágalos) de animal, usados como dados primitivos

Os linguistas não estão de acordo quanto à origem da palavra que indica má sorte. Boa parte deles acredita que «risco» e «arriscar» sejam descendentes do verbo latino resecare (cortar). Esse verbo tem filhotes em nossa língua. Temos a palavra segar (=ceifar), raramente usada. Mais comuns são segmento e segregar, ambos com implícito sentido de cortar parte de um todo. Seja como for, a palavra «risco» carrega sentido negativo.

O brasileiro, otimista por natureza, nem sempre respeita essa oposição entre chance e risco. Dá nítida preferência à primeira palavra, ainda que a perspectiva seja tenebrosa. Não é incomum ouvir frases do tipo «Fulano tem nove chances em dez de ficar paraplégico» ou «Aumentam as chances de crise econômica no ano que vem». Fica esquisito, não? O uso de «risco» seria mais adequado.

O tribunal colegiado encarregado de julgar o recurso interposto pelo Lula contra a condenação a quase dez anos de cadeia anunciou que publicará o veredicto dia 24 de janeiro. Ao dar a notícia, a imprensa informou quase unanimemente que «tendo em vista o aumento das chances de condenação do Lula, o PT estuda um plano B para as eleições presidenciais».

Quero crer que os jornalistas estivessem de boa-fé. Ou não, quem sabe? Fato é que a confirmação da condenação do demiurgo ‒ fato que o tornaria inelegível ‒ pode ser um azar danado para o indigitado, mas é uma chance fabulosa para o país. Vale até assoprar os dados antes de os lançar.

Nota
Lapsus linguæ é erro cometido involuntariamente ao falar, especialmente ao usar uma palavra por outra.

Abrigo antinuclear

José Horta Manzano

Você sabia?

Quando coincide de o regime paranoico da Coreia do Norte ser dirigido por um descerebrado ao mesmo tempo em que a mais forte potência bélica do planeta está sendo capitaneada por um presidente insensato e impulsivo, o mundo corre perigo. Luzes vermelhas de advertência piscam nervosas.

O meninote mimado, esquisito e alienado que conduz a monarquia absolutista da Coreia do Norte promete bombardear território americano ainda neste agosto. Dado que o rapaz passou a vida dentro de uma bolha, vive isolado do mundo real. Sua ameaça não deve ser tomada como bravata. O reizinho pode muito bem tentar fazer o que promete.

Suíça: porta blindada de abrigo antinuclear subterrâneo

Por incrível que possa parecer, nem o Japão nem a Coreia do Sul, países situados na linha de frente do perigo nuclear norte-coreano, implementaram medidas de proteção à população contra esse tipo de ataque. À exclusão da equipe dirigente, que certamente conta com bunkers ultraprotegidos, o grosso dos habitantes não dispõe de refúgio. Nem no Japão nem na Coreia do Sul, há abrigos antiatômicos suficientes. Os que existem não comportam nem metade da população.

Nesse particular, um país sobressai. Não são os EUA, não é a Rússia, não é a China, não é a Alemanha. É a pequenina Suíça. Em 1963, no auge da Guerra Fria, quando o risco de um ataque atômico era elevado, foi votada uma lei obrigando todas as novas construções a se dotarem de um abrigo antinuclear segundo normas rigorosas e precisas.

A lei valia para toda construção de oito cômodos ou mais, o que deixou de fora somente casas pequenas. Todos os novos prédios de apartamentos passaram a contar com abrigo. A lei previa portas e paredes de concreto com impressionante espessura. Tudo foi regulamentado: sistema de ventilação, filtros, fiação, emissor e transmissor de rádio, contador Geiger, medicamentos, estoque de água, de víveres e de artigos de higiene suficientes para pelo menos duas semanas. Estatísticas oficiais atuais informam que a quantidade de vagas nos abrigos do país excedem o número de habitantes.

A queda do Muro de Berlim e o esfacelamento da União Soviética reduziram o risco de ataque nuclear. No começo deste século, a lei foi afrouxada. Construções de menos de 38 cômodos não são mais obrigadas a instalar refúgio. Mas, atenção! Esse abrandamento não significa abandono da antiga prática. As regras determinam agora que:

    1. Quem já tinha refúgio antinuclear continua obrigado a assegurar a manutenção do local. Anualmente, as instalações têm de ser inspecionadas, incluindo fiação, tubos de ventilação, estoque de alimentos. Tudo tem de estar pronto pra funcionar.
    2. Quem construiu mais recentemente e não conta com abrigo tem de pagar uma taxa anual. O dinheiro assim recolhido serve para financiar a manutenção de grandes abrigos públicos.

As medidas, que poderiam parecer risíveis até alguns anos atrás, passaram a fazer sentido depois da catástrofe de Fukushima. É de espantar que Coreia do Sul e Japão tenham descuidado da proteção dos cidadãos. O perigo está batendo à porta.

Que azar!

José Horta Manzano

É interessante observar como as línguas evoluem de modo imprevisível. Há casos em que, da mesma raiz, brotam galhos diferentes. De fato, descendentes do mesmo tronco podem, em casos extremos, ter significado contrastante em diferentes idiomas.

Um caso curioso é o da voz árabe as-sahr (ou az-zahr), presente no falar popular e no árabe ibérico, mas ausente do árabe clássico. Na nossa língua, acabou desembocando em azar, palavra usada geralmente com significado negativo para indicar má sorte, infelicidade, revés, contratempo. Os dicionários também abonam o uso de azar em circunstâncias positivas, embora essa acepção não se encontre no falar popular.

Flor de laranjeira

Segundo a maioria dos etimólogos, os dados (de jogar) introduzidos pelos mouros ‒ que permaneceram por sete séculos na Península Ibérica ‒ tinham uma flor pintada em uma das faces. Em árabe hispânico, flor se dizia az-zahr, nome que se estendeu ao dado e, em seguida, ao próprio jogo. Falando em flor, em espanhol moderno, azahar é o nome da flor de laranjeira.

Na língua de Cervantes, o termo azar não costuma ser usado com o mesmo significado que em português. Utiliza-se geralmente com o sentido de acaso. Para dizer ‘má sorte’, o espanhol, mais dramático, prefere falar em desgracia.

A palavra entrou no francês na Idade Média. Naquela época, a grafia ainda não estava estabilizada, o que resultou em formas um tanto fantasistas sobretudo para palavras importadas. O azar espanhol foi grafado hazard, com agá inicial e dê final. Na atualidade, o zê foi substituído por um esse, mas o agá inicial e o dê final ficaram. Hasard não tem sentido positivo nem negativo. Designa apenas o acaso, o imprevisível. Par hasard, expressão pra lá de comum, significa por acaso.

Já em italiano, a mesma voz escorregou para um sentido de risco, de perigo, de ato temerário. Entrou na língua através do francês, o que explica a preservação do dê: azzardo.

O inglês também importou o termo do francês medieval, daí ter guardado a grafia da época: hazard. Diferentemente do que aconteceu em francês, o sentido da palavra não se modificou. Até hoje indica risco ou perigo. Hazardous se diz do que é perigoso, que comporta grande risco.

Temos aí curioso caso de uma palavra que tanto pode espargir perfume de flor de laranjeira quanto evocar grande perigo. Não há comprovação de que isto tenha que ver com aquilo.