Quem te viu, quem te vê

José Horta Manzano

«Je vous parle d‘un temps que les moins de vingt ans ne peuvent pas connaître». Essa é a primeira estrofe da belíssima canção ‘La Bohème’, obra de Charles Aznavour, um dos maiores letristas da língua francesa. Eu lhes falo de um tempo que os que têm menos de vinte anos não conheceram.

Também eu quero falar-lhes hoje de uma outra era, um tempo que a gente tem dificuldade em acreditar que tenha existido.

O Brasil é o gigante demográfico, industrial e econômico da América do Sul. Apesar de seus males ― que são muitos, sejamos honestos ― é o número um, sem concorrência nesta parte do mundo. No entanto, nem sempre foi assim.Para ti

Até meados do século XX, a nação preeminente do subcontinente não era nosso País, era a Argentina. Eram melhores que nós em quase tudo: poderio econômico, instrução pública, parque industrial, renda per capita, nível cultural, abertura para o mundo. Cem anos atrás, quando uma parte da população europeia, empurrada pela pobreza ou pelo espírito de aventura, tomou a decisão de emigrar, para cada um que escolhia o Brasil, dois se decidiam pela Argentina.

Em 1913, Buenos Aires já inaugurava sua primeira linha de metrô, feito que o Brasil só conseguiu igualar 60 anos mais tarde. Linhas marítimas que ligavam a Europa à capital portenha chegavam a anunciar acintosamente: «sem escala no Rio de Janeiro». As febres tropicais que se podiam contrair na capital de nossa República afastavam muita gente.

Nos anos 50, o Brasil ainda não podia se dar ao luxo de editar uma revista semanal dedicada exclusivamente ao público feminino. A Argentina já tinha a sua fazia muito tempo. Foi tentando soletrar os escritos do Para Ti, que uma velha tia-avó comprava sempre que lhe sobravam uns cobrinhos(*), que tive meu primeiro contacto com a língua de nossos vizinhos.

Nossos hermanos tinham tudo para continuar um caminho de sucesso. Era o que todos imaginavam. No entanto, não foi assim.

Que terá acontecido? Fica a impressão de que, em algum momento, alguma coisa se partiu, se interrompeu. O processo deu uma guinada. Quando e por quê? Economistas, sociólogos e cientistas políticos têm proposto explicações para essa deterioração. Não sendo especialista, não me cai bem especular. Não me resta senão constatar.

Fiquei surpreendido e, por que não dizê-lo, entristecido com uma reportagem transmitida pelo jornal da tevê suíça do dia 22 de janeiro. Conta a terrível história de uma mulher jovem, imigrante argentina vivendo atualmente em Genebra, na clandestinidade. A pobre gostaria de voltar para seu país, mas não tem dinheiro para comprar o bilhete.

A fim de obter a quantia necessária, a infeliz criatura propôs vender um de seus rins ou, eventualmente, uma parte de seu fígado. Uma história desatinada, inacreditável, de deixar boquiaberto.

Embora nunca tendo tido de enfrentar essa situação, creio saber que nossas representações diplomáticas têm obrigação de conceder uma passagem de volta a brasileiros que se encontrem em apuros no estrangeiro, como parece ser o caso dessa desventurada senhora.

Evidentemente, o bilhete de passagem posto à disposição do cidadão em dificuldade pelas autoridades consulares brasileiras nunca será dado de mão beijada. O repatriado não se safará com um simples «muito obrigado». Parece que nem mesmo um “Deus lhe pague” basta. O indivíduo terá de reembolsar o erário. Se não o fizer, dificilmente obterá novo passaporte.

Antes de mais nada, seria útil investigar a fundo a história dessa doadora singular. A ser verdadeira, é preocupante. Desconheço a regulamentação argentina no que tange à assistência que prestam a seus nacionais em caso de dificuldades no exterior. Tudo parece indicar que as leis de lá são diferentes das nossas. Como é que pode?Rico e pobre

Que o país vizinho esteja em situação econômica mais que complicada, disso sabemos todos. Mas que abandonem seus cidadãos ao deus-dará, obrigados a roçar atos desesperados como a ablação consentida de um órgão(!), aí já estamos passando dos limites. Entramos no cenário do salve-se quem puder.

De qualquer maneira, a lei suíça não permite a comercialização de órgãos. Doação, sim; venda, nunca. Portanto, não é por esse meio que a infortunada moça obterá sua passagem. Na Suíça, seus órgãos estarão salvaguardados.

Já disse alguém que uma nação só é grande quando consegue proteger seus cidadãos mais frágeis. Se, no Brasil, ainda temos um bom caminho a percorrer, parece que nossos hermanos estão metidos numa verdadeira camisa de onze varas.

Quem quiser assistir ao bloco de 2½ minutos do jornal suíço (em francês), clique aqui.

(*) O nome da pequena quantia de dinheiro que se leva no bolso varia com o tempo. O que hoje dizemos “uns trocados” já se chamou “manolitas” e, antes disso, “uns cobrinhos”. Fazia referência às moedas de menor valor, então feitas de cobre.

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