Saidinha

José Horta Manzano

Todos se lembram daquele sujeito que, em 2008, com a cumplicidade da namorada, atirou a filha de cinco anos pela janela de um sexto andar. A menina morreu. O indivíduo foi preso, julgado e condenado a passar 30 anos à sombra. O caso provocou comoção nacional. O trauma foi tão pesado, que ninguém se esqueceu até hoje. Estivéssemos em outros tempos, o casal teria sido linchado.

Onze anos se passaram. Preso bem comportado tem o privilégio de ser solto por algumas horas ou alguns dias, em ocasiões especiais. Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais, por exemplo. Chegou o Dia dos Pais. O condenado pelo filicídio de 2008 tem-se comportado bem. Portanto, em princípio, tem direito a uma ‘saidinha’.

Doutor Moro, ministro da Justiça, indignou-se com o fato. (Ele não é o único a se sentir revoltado.) Soltou um tuíte amargo em que fustiga a possibilidade de o assassino do próprio pai ou do próprio filho ter direito a tirar férias da prisão justo no dia dedicado ao amor entre genitor e cria. Diz o ministro que a lei tem de ser mudada.

Compreendo o raciocínio legalista de doutor Moro, mas acredito que o Brasil esteja precisando se sacudir um pouco, se desempoeirar, se livrar dessas amarras cartoriais. Anda faltando discernimento. Se a lei faculta a saída de presos em determinadas ocasiões, essa soltura não é automática. Tem de ser autorizada e avalizada pelo juiz encarregado das liberdades. Cabe a ele barrar anomalias como soltar parricidas, matricidas ou filicidas em feriados que festejam a família. Não precisa mudar lei nenhuma.

As leis são entrelaçadas e se acavalam umas sobre as outras. Tome o direito de voto, por exemplo. É concedido a todo cidadão adulto. Mas não é direito absoluto e irrestrito. Se um indivíduo tentar exercê-lo vestindo roupa inadequada – de calção de banho e sem camisa, por exemplo –, poderá ser barrado. Há situações em que uma lei ou um simples regulamento atravanca e bloqueia outra lei.

É o entendimento que deve vigorar no caso que tratamos hoje. Prisioneiro que matou membro da família não deve ser beneficiado com suspensão de pena em data que festeja a família. Não faz sentido. É um acinte ao espírito de nossa sociedade. A lei permite, mas não torna obrigatória a ‘saidinha’. A última palavra será sempre da autoridade que assina o alvará de soltura provisória.

Não há que exigir leis novas a cada tropeço da sociedade. Um pouco de bom senso, nessas horas, facilita as coisas e faz milagres.

O limite das leis

José Horta Manzano

A vida nos reserva surpresas a cada esquina. Volta e meia, esbarra-se em situação rara, inusitada e não prevista pela legislação.

Condenado por matricídio tem direito a saída da prisão no Dia das Mães?
A lei não previu o caso.

Encarcerado pode continuar exercendo cargo público?
A lei não previu o caso.

Presidente da Câmara que, na ausência do presidente da República, assumir temporariamente a presidência rompe o período de abstinência chamado “desincompatibilização”?
A lei não previu o caso.

Estes dias, apareceu mais uma pérola pra garnir a (vasta) coleção de casos não previstos pela lei. Por determinação de um juiz de primeira instância, Lula da Silva foi privado dos assessores, motoristas e seguranças a que tem direito como ex-presidente. Até o carro oficial lhe foi retirado. O condenado não gostou e mandou sua tropa de advogados espernear.

O problema é cabeludo. Todo indivíduo de bom senso há de conceder que é bizarro um presidiário ter o gozo de oito assessores mais carro oficial. Além de supérfluos, esses penduricalhos ‒ pagos por nós ‒ atentam contra a moralidade. No entanto…

No entanto, são de lei. Nem em pesadelo o legislador teria podido imaginar que um ex-presidente viesse a ser condenado. Se a lei silencia sobre cassação de regalias a ex-presidente encarcerado, não cabe a um juiz, de sua iniciativa, acrescentar-lhe um artigo.

Como ser pensante, concordo que a concessão de tais regalias a quem está atrás das grades é ilógica, bizarra e imoral. Mas discordo da iniciativa do juiz. Se for permitido a cada um dos milhares de magistrados do país acrescentar artigos a leis, estará aberta a temporada da ilegalidade legalizada.

Quem faz as leis é o Poder Legislativo. Somente a ele cabe fazê-las, modificá-las e revogá-las. Juiz limita-se a aplicar a lei.

Nosso problema é mais amplo. Vivemos tempos estanhos, como já diagnosticou, aliás, doutor Gilmar Mendes. Comportamentos estranhos estão roçando o limite das leis. A corda anda esticada. Corda esticada demais, como se sabe, acaba arrebentando.

Do lar

Francisco de Paula Horta Manzano (*)

O despertador toca, e logo dona Margarida sai da cama. Não pode demorar-se, tem que se arrumar, ir até à padaria, voltar rápido e preparar a mesa de café para o marido e também para as crianças. Só depois de tudo pronto deverá acordar a família.

Todos tomam o desjejum, e a louça sobra para a mãezona lavar. Depois da louça, ela dá uma ajeitada na casa, tirando o pó daqui e dali. Depois sobe para os quartos e arruma-os todos, inclusive as camas, que todos deixaram como estavam antes de saírem para seus afazeres com o trabalho e com a escola. A dona da casa finge não se incomodar com isso.

Antes de preparar o almoço, dona Margarida ainda dá um pulinho na feira livre para comprar verduras, legumes e frutas. Volta correndo para casa e usa sua criatividade no preparo dos alimentos para satisfazer a cada um. Para o marido, o bife tem que ser bem passado, com bordas de gordura (contrariando as ordens médicas). Para o filho, a carne tem de estar mal passada e para a menina, nada de carne. A moça é vegetariana. Para dona Margarida, o bife que passar do ponto, com ou sem gordura, tanto faz, é o que lhe servirá de alimento. Ela fingirá não se importar com isso.

Terminado o almoço, todos sairão para a segunda etapa do dia. Dona Margarida também prosseguirá. Agora lavando roupas e preparando o que será servido no jantar. Novas acrobacias culinárias para agradar ao paladar de cada um, todos eles já velhos conhecidos da ‘rainha do lar’. Ela faz de conta que não está tendo trabalho nenhum.

Fim de tarde, todos já de banho tomado, a ‘heroína do lar’ sai pela casa catando as toalhas úmidas e as roupas sujas deixadas nos mais variados lugares. Ela não deixa transparecer nenhuma contrariedade.

O jantar do maridão é servido numa bandeja especial, que se ajusta perfeitamente aos braços da conhecida ‘cadeira do papai’, enquanto a dedicada esposa janta equilibrando, meio desajeitada, o prato no colo. Ela faz companhia ao esposo. Ele assiste ao noticiário da televisão enquanto comem. Ela aparenta estar feliz em companhia do marido.

Terminado o jantar, dona Margarida vai passar as roupas lavadas à tarde, agora já secas. Ela finge assistir à novela que passa na televisão, aquela mesma que o marido acompanha assiduamente. Dona Margarida mal disfarça sua indiferença com a trama.

Já tarde da noite, todas as roupas passadas, a incansável esposa acorda o marido, que a esta altura já ronca na confortável poltrona de uso exclusivo dele. É curioso que a conhecida ‘cadeira do papai’ não exista em versão feminina. De fato, nunca se ouviu falar numa ‘poltrona da mamãe’

A noite será curta. Depois de umas poucas horas de sono, o relógio despertará dona Margarida bem cedinho para novamente se arrumar, ir até a padaria e recomeçar tudo. Moto-perpétuo.

Quando se pergunta ao marido se a esposa trabalha, a resposta é sempre: “‒ Não, ela só fica em casa mesmo”.

E ainda há quem me chame de machista.

(*) Francisco de Paula Horta Manzano (1951-2006), escritor, cronista e articulista.

Lembrete deste blogueiro aos distraídos:
Amanhã, segundo domingo de maio, é o Dia das Mães.

Dias certos para sentir

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Sei que vou chocar muita gente com o que tenho a dizer, mas vou dizê-lo mesmo assim. Não sei explicar esse meu gosto mórbido em ser do contra, procurar o avesso de toda intenção, manifestar desconformidade com o clima geral de celebração.

Tudo que sei é que não gosto de sentimentos impostos com data marcada. Acordar num dia que, só por estar marcado em vermelho na folhinha, exige de mim todo um preparo emocional para oferecer risos, abraços e gestos de ternura. Manifestar, mesmo sem sentir o impulso vindo de dentro, alegria ou gratidão ou solidariedade ou generosidade.

Dia das maes 3Se é Natal, é preciso entrar no clima de confraternização em família. Se é Páscoa, é necessário lembrar que todo ciclo chega ao fim e acreditar na eterna possibilidade de recomeçar. Se é o Yom Kipur, é imprescindível destravar o peito, reafirmar que somos todos falíveis e perdoar quem não correspondeu às expectativas. Se, ao contrário, o dia é de tristeza compulsória, como o Dia de Finados, é praticamente impossível resistir à obrigação de fazer cara séria, deixar que uma lágrima furtiva escape ou rememorar as qualidades e os momentos felizes vividos junto à pessoa que sentimos como ausente.

Ontem foi o Dia das Mães. As redes sociais lotaram de postagens festivas dos que ainda têm a mãe por perto para abraçar e de declarações chorosas de quem já não tem mais essa oportunidade. Qual o problema? Em princípio, nenhum. Cada um é livre para expressar seus sentimentos pelo ângulo e da forma que desejar. O que me incomoda não é o desejo de homenagear, mesmo que comercialmente, uma pessoa que, bem ou mal, representa a âncora mais firme de que dispomos para nos lançarmos nas águas revoltas da vida.

Dia das maes 2O que me perturba desde sempre nessas ocasiões é a sensação de estar sendo forçada a aderir a um movimento de massa, que nem sequer se dá ao trabalho de auscultar a própria verdade interior. Não poder dissentir, não poder moderar, não poder temperar o caldo afetivo com sabores exóticos, não poder pintar o cenário com outras cores mais pessoais.

Falar das experiências dissonantes vividas nas relações familiares, amorosas, religiosas ou políticas tem o peso de um dedo rigidamente apontado contra todas as pessoas que se renderam ao clima de festa. Não se integrar de corpo e alma à paisagem emocional à sua volta é aceitar o risco de transmitir uma mensagem ambígua ou oposta: não acredito no Deus redivivo, não compartilho da crença de que o recomeço é possível, não consigo sufocar minhas mágoas, não amo minha mãe, não valorizo a vida eterna.

Dia das maes 4Lembro que um dia, durante uma sessão de psicodrama, o terapeuta me chamou ao palco e pediu que eu representasse o papel de uma histérica para contracenar com um homem que enfrentava conflitos com a esposa. Estranhamente, senti de imediato que meu corpo todo havia se paralisado. Não podia gritar, não podia chorar, não podia gesticular, por mais que minha cabeça assim o ordenasse. O terapeuta, então, aproximou-se devagar pelas minhas costas e prendeu com força meus braços para trás. A reação veio com fúria e de chofre: passei a me debater descontroladamente, a me descabelar, chorar e gritar a plenos pulmões. Só um pensamento ocupava minha mente: libertar-me de qualquer maneira daquela contenção indesejada. A crise só terminou quando, vencida pelo cansaço, me deixei desabar no chão, escapando do confronto pelo meio das pernas do terapeuta.

Dia das maes 6Talvez seja isso, afinal, o que se esconde por trás de todos os meus descompassos emocionais. É o que eu sinto por dentro que me move, não o que se espera de mim por fora. Sinto como agressão o desrespeito à espontaneidade do meu estado de humor. Minha paralisia denuncia então, mesmo a contragosto, o meu não-pertencimento, a vontade que não sinto como minha.

Compreendo, é claro, que minha verdade psicológica não é necessariamente a mesma da de outras pessoas, nem acontece forçosamente em sincronia com qualquer outra. Sei que é possível experimentar conforto mesmo quando a gente se deixa levar por uma onda de afeto programado.

Dia das maes 1O que me constrange é não ser capaz de expressar sem agressividade meu apreço pela liberdade interior que todo ser vivente tem – ou deveria ter – de manifestar suas emoções quando, onde e do jeito que quiser. Pela licença autoconcedida de sentir-se triste quando todos estão felizes. De se perdoar por não ser capaz de se enternecer.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Dia das Mães

Mae 1José Horta Manzano

Você sabia?

Dias e festas especiais, como o Dia das Mães, têm origem mais antiga do que geralmente se imagina. Muitos acham que nada existia antes de comerciantes americanos começarem a incentivar cidadãos a comprar presente para a mãe. Não é bem assim.

Pouco mais de um século atrás, é verdade, o Dia das Mães se institucionalizou nos Estados Unidos. Diga-se de passagem que o nome oficial da festa é Mother’s Day. O «‘s» final indica que se festeja uma mãe só. A intenção é de que cada família festeje a sua. É o «Dia da Mãe», sutileza quase filosófica.

Na Grécia e na Roma de dois mil anos atrás, homenagens às mães coincidiam com a chegada da primavera. Louvava-se Cibeles, deusa da fertilidade, personagem associada à condição feminina e à perenidade da vida. Já durante a Idade Média, banido o panteísmo, a Virgem assumiu o lugar de antigas deusas. Uma ou outra relíquia desses usos subsistem. No Panamá, por exemplo, mães são festejadas em 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição. (Conceição = concepção = geração.)

Mae 4A maioria dos países adota dia fixo para celebrar as mães, independentemente do dia da semana em que caia. É o caso do México, da Guatemala e de El Salvador (10 de maio). Já o Paraguai uniu o útil ao agradável: aproveitou o dia 15 de maio, dia em que tradicionalmente se comemora Juana de Lara, heroína nacional, para festejar as mães ‒ dois coelhos de uma cajadada só.

Mae 3Na pequena Eslovênia, o dia certo é 25 de março. Na Armênia, o 7 de abril. A Polônia prefere o 26 de maio. Mostrando espírito prático, os sul-coreanos fixaram o dia 8 de maio para a Festa dos Genitores ‒ com isso, comemoram pai e mãe ao mesmo tempo. E vira-se a página.

A França e meia dúzia de antigas colônias africanas determinaram que as mães sejam homenageadas no último domingo de maio. Só que tem um problema. Nos anos em que esse domingo coincide com Pentecostes, as mães têm de esperar uma semana: só serão celebradas no primeiro domingo de junho. E o que é que tem uma coisa a ver com a outra?

Explico. Em vários países europeus, França incluída, a segunda-feira que segue o domingo de Pentecostes é dia feriado. Portanto, o fim de semana prolongado incita muitos a viajar. Turistas nem sempre se lembram de comprar presente para a mãe. A saída encontrada pelos comerciantes foi adiar a «Fête des Mères».

Mae 2O Dia das Mães de nossos hermanos argentinos guarda lembrança de tradição religiosa. Até os anos 1960, o Dia da Maternidade da Virgem era comemorado em 11 de outubro. Por analogia, a homenagem foi-se estendendo a todas as mães. A força do comércio acabou por vencer a tradição. Hoje, a festa das mães está definitivamente fixada no terceiro domingo de outubro, embora a Maternidade da Virgem tenha sido transferida para 1° de janeiro.

Bom número de países dedica o segundo domingo de maio às mães. São mais de 60 a homenageá-las nesse dia. Além do Brasil, a Suíça, os EUA, o Uruguai, a Itália, a Alemanha, a Colômbia, a Dinamarca, o Japão, a Grécia, o Peru, a Austrália e até a China escolheram esse dia.

Um pensamento afetuoso a todas as mães. Às que aqui ainda estão e às que já se foram.

Lição de casa

Dad Squarisi (*)

Geladeira 1O Dia das Mães chegava. Por que não aproveitar a data? A professora pediu uma redação aos alunos. Todos os textos deveriam terminar com esta frase: “Mãe só tem uma”.

A meninada pôs mãos à obra. Alguns contaram episódios da infância. Outros, cuidados em caso de doença. Não faltou quem falasse em ajuda nos deveres de casa ou em sufocos devidos a confusões inesperadas.

Um deles deu asas à imaginação e contou história com enredo diferente. Visita havia chegado à casa da família. Alvoroço geral. A mãe, solícita, pediu ao filho que pegasse duas Cocas na geladeira. Depois de poucos minutos, o garoto voltou:

– Mãe, só tem uma.

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(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.