As artes do general

José Horta Manzano

Tem certas coisas que, não fosse estarem preto no branco, a gente não acreditava. Um tuíte soltado pelo general Villas-Boas, faz alguns dias, entra nessa categoria. Percebido pela mídia como desimportante, mereceu pouca divulgação.

Eduardo Dias da Costa Villas-Boas é general estrelado. Já ocupou por 4 anos o posto de comandante do Exército Brasileiro, que não é coisa pouca. Um cargo dessa magnitude não está ao alcance de qualquer um. O escolhido há de ter qualidades essenciais: sólida formação, visão estratégica, profundos conhecimentos de geopolítica, aptidão para o comando, ascendência natural sobre os comandados.

Só que… ninguém é perfeito. Nosso general, hoje septuagenário, continua chegado a uma polemicazinha. Por ocasião da campanha de Bolsonaro, em 2018, soltou um tuíte que foi entendido como tentativa de pressão sobre a Justiça que estava para decidir sobre a possibilidade de o Lula se candidatar à Presidência. Como por acaso, a mensagem, redigida em termos sibilinos, foi publicada na véspera do julgamento.

Faz uns dez dias, ele reincidiu. Com a invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin tomando o noticiário, o tuíte do general passou despercebido. Melhor assim. Tivesse sido postado por um adolescente, ninguém se encresparia. Vindo da pluma de general estrelado, denotou o lado moleque e infantil do autor.

A mensagem veio com o seguinte título: “O que espera Macron na Amazônia”. Em seguida, um vídeo dramático com imagens de militares brasileiros em treinamento na selva. Como pano de fundo, uma paródia de Bella Ciao, canção identificada com os partigiani italianos – tropas não-regulares formadas por patriotas civis que combatiam o inimigo nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial.

Meus leitores hão de se lembrar que, no começo do mandato, Bolsonaro acreditava que um presidente da República pode tudo. Foi quando se indispôs com meio mundo. Mostrou desleixo no combate às queimadas na floresta brasileira. O G7 se alarmou. Em reação, Macron lançou vaga ameaça ao dizer que a “internacionalização” da Amazônia (seja lá o que isso possa significar) estava em debate.

À época, o general Villas-Boas há de ter sentido cheiro de guerra no ar. Agora, que o ogro argentino está domado, um inimigo externo estava sendo procurado. De bandeja, Macron lhe ofereceu o temor que andava fazendo falta a nosso imaginário militar.

Com a finura que o caracteriza, Bolsonaro chegou à baixeza de insultar o presidente da França, ressaltando a feiúra da primeira-dama daquele país. Coisa de cortiço. Mas o general anotou no caderninho e guardou para uso futuro.

Sentindo que a proximidade das eleições presidenciais francesas oferecia um momento ideal para dar uma estocada em Emmanuel Macron, o general soltou o tuíte que descrevi acima. Deu furo n’água.

Primeiro
Por mais general que seja, sua voz é inaudível. Se seu tuíte praticamente passou em branco dentro das fronteiras, lá fora, então, foi olimpicamente ignorado. Publicar esse tipo de artimanha numa época em que o mundo está eletrizado pela invasão da Ucrânia? Francamente… Alguns anos atrás, podia ser que a voz de Villas-Boas ecoasse lá fora; porém, desde que se instalou a era Bolsonaro, nossas picuinhas internas perderam a pouca importância que possam ter tido um dia.

Segundo
A “internacionalização” da Amazônia é inexequível. O general precisa se dar conta de que o Brasil só detém 60% da floresta amazônica. Os 40% restantes se espalham por 7 países estrangeiros. Entre eles, a própria França! A Guiana Francesa, parte integrante do território da República Francesa, tem 90% de seu território recoberto pela selva amazônica. Acha possível um governo decidir “internacionalizar” parte do território nacional? E ainda ter de convencer 8 países amazônicos a seguir o mesmo caminho? E se acertar com os 27 sócios da União Europeia? Convenhamos, general…

Terceiro
Em vez de atirar no pianista, melhor faria o general se se debruçasse sobre a raiz do problema. O planeta está alarmado com a sobrevivência da humanidade. Fontes de energia renováveis e conservação do patrimônio florestal fazem parte da solução. Em vez de fazer ameaças ridículas de combater uma potência nuclear com estilingue, seria mais útil estudar o problema e tentar entender que o maior valor da Amazônia brasileira é seu patrimônio florestal e sua biodiversidade. Nióbio, grafeno, ouro e cloroquina não fazem parte do butim cobiçado por um consórcio de grandes potências.

Quarto
Se alguma(s) potência(s) decidisse(m) se apoderar da Amazônia brasileira, é inútil imaginar embates corpo a corpo na umidade equatorial. Há meios mais modernos e mais eficazes de fazer dobrar um país. O general deveria saber. Falando nisso, a quantas anda nossa proteção contra piratagem informática que poderia, por exemplo, interferir em nossas hidroelétricas e bloquear o país? Ou parasitar os sistemas de comunicação militar?

Para terminar, quero deixar claro que respeito a carreira do insigne militar. Se chegou aonde chegou, méritos há de ter. Nossas diferenças se limitam a uma questão de princípios. Quanto a mim, coloco a dignidade do profissional e do cargo acima da arena em que se debatem espíritos adolescentes e imaturos.

Seu tuíte veio fora de hora e fora de esquadro, general.

FIGHT

José Horta Manzano

Acabo de ler relato que revela que Donald Trump, para incitar sua milícia a marchar sobre o Capitólio de Washington, tuitou a palavra FIGHT (=luta). O artigo diz que o presidente escreveu em letras capitulares. Não é bem assim.

Em tipografia – atividade em via de extinção –, faz-se a diferença entre letras capitulares e letras maiúsculas.

Letras capitulares (ou letras capitais)
Fora de moda há séculos, a letra capitular, como seu nome indica, era a primeira letra de cada capítulo de um livro. Estava de moda na Idade Média, ao tempo em que livros eram copiados à mão, letra por letra, capítulo por capítulo.

A letra capitular, de tamanho bem maior que as demais, era bordada a bico de pena de ganso segundo o estilo de iluminura medieval, com arabescos, douraduras e tudo o mais que a fantasia do escriba criasse.

Letras maiúsculas (ou caixa alta)
Letra maiúscula é artigo bem mais prosaico. Para grafá-la, não precisa ser versado nas artes da iluminura – basta ter seguido com atenção as aulas de dona Dorinha, professora do primeiro ano. Todos conhecem a diferença entre letras maiúsculas e minúsculas – que os tipógrafos chamam de caixa alta e caixa baixa.

Resumindo, Trump não grafou sua LUTA(*) em letras capitulares. Como é que havia de fazer isso numa telinha de celular, com um dedo e sem pena de ganso? O que ele fez foi apenas escrever em letras maiúsculas.

(*) Ao falar de Trump e de Minha Luta, associei imediatamente a Mein Kampf (Meu Combate), livro escrito por Adolf Hitler em 1925, que continha a linha mestra de seu pensamento. Pensamento este que foi posto em prática anos mais tarde e que deu no que deu. Te esconjuro!

GPS ideológico

José Horta Manzano

No Brasil de Bolsonaro, será que alguém ainda sabe o que é direita e o que é esquerda? Tenho cá minhas dúvidas. Numa sociedade onde ‘direita’ é saudosismo inconfessável,  ‘centrão’ virou insulto e ‘esquerda’ é sinônimo de comunismo, a coisa ficou complicada. De todo modo, entre nós, a posição exata da sensibilidade de cada um no espectro político nunca esteve na ordem do dia.

Na política tradicional brasileira, esse posicionamento sempre foi irrelevante. A personalidade do político costuma contar mais do que sua posição no tabuleiro. Juscelino era de direita ou de esquerda? E Jânio? E Adhemar? E Getúlio? Ninguém se preocupava com isso, nem apoiadores, nem detratores.

Foi nestas últimas décadas, desde que o PT tomou fermento e cresceu até o cargo mais alto, que o grosso da população se inteirou de que aqueles barbudinhos eram de esquerda. (Diferentemente de hoje, deixar crescer a barba não estava na moda, daí a pilosidade dos barbudos chamar a atenção.) No início, eram bem-intencionados, mas o poder é veneno que corrói. Todos sabem no que deu. Como resultado, na cabeça do eleitor médio, cristalizou-se a equação: esquerda = corrupção.

Na última eleição, as portas estavam abertas para a alternância. Em princípio, era vez da direita. Numa sociedade mais organizada que a nossa, é o que ocorreria. Mas nossa falta de traquejo em matéria de posicionamento político falou mais alto. Da equação esquerda = corrupção, o que sobressaiu não foi a esquerda, mas a corrupção. Assim, quem ganhou a eleição de 2018 foi o candidato que encarnou a luta contra a corrupção.

Hoje sabemos que não pode ser arauto da anticorrupção um personagem envolto por uma nuvem de obscuras transações. Para complicar o problema, o homem se diz ‘de direita’. Todo brasileiro pensante há de estar embasbacado. Então, direita é isso? O nó nos miolos é garantido. Estamos chegando a um ponto em que, de tão usadas, certas palavras vão perdendo a força. Direita e esquerda estão entre elas.

Folha de São Paulo: GPS ideológico

Num esforço notável, que deve ter custado um bocado de trabalho, a Folha de São Paulo publicou um estudo sobre a dose de esquerdismo e de direitismo que habita cada um dos 1.800 influenciadores no Twitter em 2020. O trabalho baseou-se num emaranhado de interações tuiteiras do tipo quem segue quem e quem retuíta quem. Como resultado, ficamos sabendo que Moro está à direita, quase colado a doutor Bolsonaro. Verificamos também que Lula está à esquerda mas nem tanto. E outras coisas do gênero.

Fico um pouco desconcertado. Vamos admitir que um jornal importante não perderia tempo caprichando numa matéria se soubesse que seus leitores não estão interessados. Vai daí, me espanta o fato de o brasileiro que lê jornal precisar de um estudo pra ficar sabendo qual é o posicionamento ideológico do tuiteiro que o influencia. Será?

Quer dizer que o eleitor acompanha o pensamento deste ou daquele sem se dar conta de que é um perigoso esquerdista? Ou vai levar um susto quando descobrir que é um execrável direitista? E o que dizer então se o guru escolhido for um centrista – céus, do Centrão?

O distinto leitor não acha esquisito seguir alguém sem saber quem é?

Tweet censurado

José Horta Manzano

Assim que foi anunciada a doença de Donald Trump, a empresa Twitter previu que alguns aproveitariam a ocasião para exprimir desejo de ver o presidente num caixão. Antes que acontecesse, foram logo avisando que bloqueariam a conta de quem tuitasse sua esperança de ver Trump morto pela covid.

Poucas horas mais tarde, ao se darem conta de que teriam de bloquear a conta de pelo menos metade dos usuários, explicaram que não era bem assim. Os tuítes macabros seriam apagados, mas a suspensão da conta só se faria “em alguns casos”.

Nos tempos de antigamente, isso não acontecia. Quando a comunicação ia por carta, telex ou fax, a gente escrevia o que bem entendia. Tirando algum caso (raro) de criminosa invasão de privacidade, ninguém lia as mensagens. A gente podia dizer o que quisesse sem receio de censura.

Ah, esse progresso! Como se vê, progredir é irmão gêmeo de regredir. Quando um aparece, o outro nunca está muito longe.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Etimologia
Em latim, o verbo gradi significa andar, caminhar. Em português, temos alguns descendentes em linha direta: grau, degrau, graduar, gradual. Com adição de prefixos, formaram-se numerosos filhotes:

Progredir
Andar para a frente

Regredir
Andar para trás

Transgredir
Caminhar para além de um determinado ponto. Transpor determinada meta.

Agredir
Na origem, tinha o inocente significado de andar em direção a um ponto ou a alguém. Com o tempo, passou a significar atacar, investir.

Há outros cognatos: degradar, retrogradar, egresso, progresso, regresso, ingresso.

Interessante será notar que o Congresso, sempre pronto a dar um passinho à frente e outro pra trás, é membro legítimo da família.

Se fosse bananinha

José Horta Manzano

Um dos bolsonarinhos – aquele que é deputado e americanófilo – voltou a fazer estrepolias. Irresponsável, seguiu os passos de Donald Trump e soltou um tuíte envenenado acusando «a ditadura chinesa» de ter contaminado o mundo com o coronavírus. Não precisa dizer (mas não custa repetir) que a China é o maior parceiro comercial do Brasil. O bolsonarinho não sabe, mas os chineses são muito ciosos de sua reputação; um nadinha os deixa eriçados; mexer com os brios deles é dar paulada em vespeiro.

Minutos depois de emitido, o tuíte chegou aos ouvidos dos dirigentes de Pequim. Furiosos, determinaram que o embaixador da China em Brasília protestasse imediatamente e em tom duro. Isso feito, a mídia nacional repercutiu o bate-boca. A mídia chinesa também. Nessa altura, o bolsonarinho começou a se dar conta do estrago que havia provocado. Parece que o pai, doutor Bolsonaro, ficou uma vara (será que alguém ainda entende essa expressão?).

Horas mais tarde, doutor Mourão, nosso vice-presidente, ensinou que «se o sobrenome dele fosse Bananinha, não era problema nenhum». Embora não fosse essa a intenção de Mourão, Bananinha fez lembrar as bananas que nosso fino presidente andou atirando a seus admiradores outro dia. Excetuando a infeliz escolha de sobrenome, o general pôs o dedo na ferida.

Só que o problema não está no sobrenome, está no comportamento clânico dos Bolsonaros. Se essa peculiaridade já havia sido detectada antes da eleição, ficou patente depois que doutor Bolsonaro foi eleito. Já no dia da tomada de posse, o mundo foi brindado com estranho espetáculo de um dos bolsonarinhos aboletado no carro oficial, como se pré-adolescente mimado fosse.

De lá pra cá, entre a derrubada de ministros por capricho de um dos filhos, a quase nomeação de outro deles para capitanear nossa embaixada em Washington e o funcionamento de um ‘gabinete do ódio’ gerido por bolsonarinhos, ficou claro que, no topo do Executivo, as decisões seguem as conveniências do clã. Trocando em miúdos: somos, sim, (mal) governados por uma famiglia. Para nossa sorte, agem desengonçadamente, o que atenua o impacto das maldades.

Espertos, os chineses já se deram conta disso há muito tempo. Tivesse sido um outro deputado a ofender-lhes os brios, não teriam se abalado pra retrucar. Se se alevantaram indignados, foi justamente porque o deputado ofensor era integrante do clã – logo, vice-presidente informal do Brasil.

O general Mourão pôs o dedo na ferida, mas não afundou nem torceu (o dedo). Sua frase merece reparo. Se o rapaz se chamasse Bananinha, os chineses teriam ficado enfurecidos do mesmo jeito. O problema não é o sobrenome, mas o pertencimento ao clã que se instalou no Planalto.

A gente pensava que esses casos de Poder acaparado por famílias era coisa de pequeno país latino-americano ou de ditadura hereditária do tipo cubano ou norte-coreano. Pra nosso pasmo, assistimos a esse inquietante espetáculo em nossa terra. O rapaz pode até não se chamar Bananinha, mas isto aqui está começando a parecer uma republiqueta de bananas.

Chirac – o funeral

José Horta Manzano

Quinta-feira passada morreu Jacques Chirac, que foi presidente da França por doze anos, na virada do século (1995 – 2007). Como todo político, teve um lado bom e outro mais escuro. Foi sem dúvida o presidente mais popular destes últimos 50 anos, desde que De Gaulle deixou o poder.

Assim que a notícia chegou, chefes de Estado do mundo todo emitiram nota expessando pesar e deixando algumas palavras de elogio. Quando alguém acaba de falecer, convém lembrar do lado bom. Só se pode começar a falar dos podres depois de alguns dias.

Nesta segunda-feira, teve lugar o funeral, com as honras devidas a todo ex-chefe de Estado. Os franceses são bons nisso. São capazes de organizar cerimônias que, de tão solenes, dão arrepio. Tambores rufando, militares em uniforme de gala, sino de Notre Dame badalando, o Requiem de Gabriel Fauré como fundo musical, a Marselhesa na hora certa – tudo milimetricamente organizado.

Dirigentes de praticamente todos os países se manifestaram. Ou mandaram mensagem, ou compareceram. Na cerimônia, estavam todos os ex-presidentes da França, além de Vladimir Putin, Bill Clinton, o presidente da Itália, o príncipe de Mônaco, chefes de Estado europeus e mais uma centena de personalidades estangeiras. O Lula, sentadinho na palha úmida da masmorra onde vive, não pôde estar presente em Paris; mas reagiu com um tuíte simpático.

Só faltou… quem poderia ser? Faltou Donald Trump! Malcriado e mal-assessorado, o tuiteiro-mor não se dignou de soltar duas linhas em homenagem a um francês que, por sinal, era muito próximo dos EUA, país onde chegou morar durante um ano, na juventude.

E quem é que acompanhou o presidente americano no desdém? Qual é o importante personagem nacional que passa o tempo tuitando e não julgou importante escrever três palavras em nome do Brasil? Quem adivinhar ganha uma passagem de ida simples pra Caracas – de ônibus. Resposta no próximo parágrafo.

Claro! Foi doutor Bolsonaro. Como dizia o Barão de Itararé, «de onde menos se espera, daí é que não sai nada».

Saidinha

José Horta Manzano

Todos se lembram daquele sujeito que, em 2008, com a cumplicidade da namorada, atirou a filha de cinco anos pela janela de um sexto andar. A menina morreu. O indivíduo foi preso, julgado e condenado a passar 30 anos à sombra. O caso provocou comoção nacional. O trauma foi tão pesado, que ninguém se esqueceu até hoje. Estivéssemos em outros tempos, o casal teria sido linchado.

Onze anos se passaram. Preso bem comportado tem o privilégio de ser solto por algumas horas ou alguns dias, em ocasiões especiais. Natal, Dia das Mães, Dia dos Pais, por exemplo. Chegou o Dia dos Pais. O condenado pelo filicídio de 2008 tem-se comportado bem. Portanto, em princípio, tem direito a uma ‘saidinha’.

Doutor Moro, ministro da Justiça, indignou-se com o fato. (Ele não é o único a se sentir revoltado.) Soltou um tuíte amargo em que fustiga a possibilidade de o assassino do próprio pai ou do próprio filho ter direito a tirar férias da prisão justo no dia dedicado ao amor entre genitor e cria. Diz o ministro que a lei tem de ser mudada.

Compreendo o raciocínio legalista de doutor Moro, mas acredito que o Brasil esteja precisando se sacudir um pouco, se desempoeirar, se livrar dessas amarras cartoriais. Anda faltando discernimento. Se a lei faculta a saída de presos em determinadas ocasiões, essa soltura não é automática. Tem de ser autorizada e avalizada pelo juiz encarregado das liberdades. Cabe a ele barrar anomalias como soltar parricidas, matricidas ou filicidas em feriados que festejam a família. Não precisa mudar lei nenhuma.

As leis são entrelaçadas e se acavalam umas sobre as outras. Tome o direito de voto, por exemplo. É concedido a todo cidadão adulto. Mas não é direito absoluto e irrestrito. Se um indivíduo tentar exercê-lo vestindo roupa inadequada – de calção de banho e sem camisa, por exemplo –, poderá ser barrado. Há situações em que uma lei ou um simples regulamento atravanca e bloqueia outra lei.

É o entendimento que deve vigorar no caso que tratamos hoje. Prisioneiro que matou membro da família não deve ser beneficiado com suspensão de pena em data que festeja a família. Não faz sentido. É um acinte ao espírito de nossa sociedade. A lei permite, mas não torna obrigatória a ‘saidinha’. A última palavra será sempre da autoridade que assina o alvará de soltura provisória.

Não há que exigir leis novas a cada tropeço da sociedade. Um pouco de bom senso, nessas horas, facilita as coisas e faz milagres.

Bolsonaro carnavalizado

Álvaro Costa e Silva (*)

O presidente teria feito melhor se, como no samba clássico “Camisa Amarela”, de Ary Barroso, tivesse bebido um copo d’água com bicarbonato. Ou mesmo desaparecido no turbilhão da galeria.

Carnaval e poder não dão rima. Meu amigo Luiz Antonio Simas, o historiador das “coisas miudinhas”, costuma lembrar dois episódios. Em 1892 o marechal Floriano decretou a transferência da folia para junho, argumentando que o verão era propício a epidemias; naquele ano, brincou-se duas vezes. Em 1912 o marechal Hermes da Fonseca mandou adiar a festa para que não coincidisse com o luto pela morte do barão do Rio Branco; foi pomposamente ignorado.

Bolsonaro levou uma lavada nas ruas. O bonecão com suas feições, mil vezes alvejado por latas de cerveja e pedras de gelo, teve de contratar segurança para descer as ladeiras de Olinda. Nos blocos, nunca antes na história deste país se viu tanta gente fantasiada de laranja. Ou bebendo água em mamadeiras com formato de pênis (fiquei sabendo que um acadêmico já está preparando a tese “A Carnavalização das Fake News”). Registre-se ainda o coro “Ei, Bolsonaro, VTNC”, cantado de norte a sul.

Com enredo de crítica social e em homenagem à vereadora Marielle Franco, a Mangueira mostrou que o samba não se rebaixa. Uma alegoria, em especial, desagradou o presidente: o livro aberto com a frase “Ditadura assassina” escrita em caixa alta.

Bastou para que a Terça Gorda, para Bolsonaro, se transformasse num dia de fúria. Esqueceu que agora é o presidente, voltou aos tempos em que se contentava em atuar como deputado do baixo clero e correu destrambelhado para as redes sociais. Para atacar o Carnaval, cometeu o tuíte pornô, desviando de novo a discussão para a pauta de costumes. Milhões de brasileiros ainda caem nessa. Resta saber até quando.

Uma tuitada pode derrubar um governo? Aguarde as próximas lambanças.

(*) Álvaro Costa e Silva (1962-) é jornalista e escritor.

Ponto eletrônico

José Horta Manzano

Acompanhei a longa entrevista que doutor Bebianno (Bibbiano?) concedeu, dia 19 de fevereiro, a uma emissora de rádio. O (então já ex-) ministro deu sua versão dos contactos que manteve, nos últimos dias, com doutor Bolsonaro e primeiro-filho. Essa parte não é de despertar paixões. Para mim, tanto faz saber quem disse ou quem não disse, quem mentiu ou quem deixou de mentir, quem devia ou não devia ter dito o que disse ou deixou de dizer. O que me inquieta é o quadro inquietante revelado por esse quiproquó.

Cada governo tem sua personalidade, sua marca de fábrica, seu jeito próprio de ser e de agir. Por razões que escapam a todo controle, a instalação da atual presidência não pôde se fazer nos dias seguintes à tomada de posse, como é costume. A preparação da cirurgia do presidente e o período de hospitalização criaram um vácuo que somente agora começa a ser preenchido. Finalmente, o piloto volta à cabine. O avião, desgovernado, vai entrar no prumo e no rumo.

No prumo e no rumo? Nada é tão incerto. Vamos primeiro esquecer essas futricas de adolescente que, embora não cheguem a derrubar governo, tampouco constroem governança. Vamos agora espremer a entrevista de doutor Bebianno (Bibbiano?) pra ver o que sai. O suco não é nada apetitoso. Ao fim e ao cabo, as conversas entre esses membros do alto escalão revelam que nosso presidente dá preocupantes sinais de fraqueza.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Desde que sofreu o atentado, doutor Bolsonaro praticamente só se comunicou através de redes sociais, com tuitadas curtas, frases lacônicas, slogans mambembes. Quando dá declaração oficial ‒ ocasião em que é obrigado a fazê-lo de pé, diante de um microfone, ao vivo ‒ usa e abusa do ponto eletrônico. Fica sempre a impressão de que ele está apenas servindo de canal para a voz de algum escritor fantasma que ninguém sabe direito quem é.

O presidente nunca escondeu sua admiração por Donald Trump. Dado que os dotes oratórios de nosso chefe de Estado são precários, compreende-se que ele dê preferência a comunicar-se pelas redes. Por um lado, imita o presidente americano; por outro, elude sua carência oratória. Doutor Bolsonaro se esquece de que quem imita tem de ir até o fim. Mr. Trump leva a brutalidade até o fim. Tuíta com violência, discursa com veemência e, no final, age com estrondo. Doutor Bolsonaro, por seu lado, limita-se a tuitar, esquivando-se na hora de agir, vergado ao peso das múltiplas influências de que é vítima, incapaz de decidir por si.

Fica a desconfortável impressão de um dirigente bem-intencionado mas fraco, por demais permeável a influências. Posso estar enganado. Aliás, torço pra isso, mas algo me diz que meu diagnóstico não está tão longe da realidade. Assim sendo, resta esperar que doutor Bolsonaro escolha dar ouvidos às influências mais benéficas para o país. O futuro dirá. Por enquanto, é bom ir preparando novena pra São Benedito.

Antes que seja tarde

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 julho 2018.

A história é antiguinha, mas vale a pena recordar. É possível até que os mais jovens nunca tenham ouvido. Corria o ano de 1987. Jânio Quadros, então prefeito de São Paulo, concedia entrevista coletiva. A certa altura, uma jovem repórter dirige-se, atabalhoada, ao prefeito e faz-lhe uma pergunta. Mas comete o imperdoável: trata o septuagenário por você. Com tarimba de raposa política, Jânio lança, fulminante: «Intimidade gera aborrecimentos e filhos. Com a senhora, não quero ter aborrecimentos e muito menos filhos. Portanto, exijo que me respeite.» Eram tempos em que toda palavra tinha peso e valor. Em política, não se arremessava verbo pela janela.

Menos susceptíveis que o velho Jânio, governantes, parlamentares e magistrados falam hoje pelos cotovelos. Sem se preocupar com o peso das próprias palavras, proferem barbaridades. Dão entrevistas ad nauseam. Quem fala muito, sabe-se, dá bom-dia a cavalo. No cenário político brasileiro, é o que se vê dia sim, outro também. Em setembro de 2010, no auge da campanha eleitoral, Lula da Silva e Dilma Rousseff martelavam o nós x eles. Estavam inquietos com as sondagens. A roubalheira comia solta na Petrobrás, embora o escândalo ainda não tivesse estourado. O mensalão, por seu lado, já estava na praça e lançava uma sombra sobre a continuidade do projeto de poder. Era preciso a todo custo garantir a perenidade do esquema lulopetista.

Em Campinas, na tarde de 18 de setembro, Lula da Silva subiu ao palanque da pupila, então candidata. Deitaram ambos falatório violento. Com palavras agressivas, criticaram a imprensa, a oposição, os jornalistas. Vociferaram, ameaçaram, ridicularizaram os opositores, desclassificaram os que não pensavam como eles. Pouco ‒ quase nada ‒ foi dito sobre propostas de governo. O propósito maior era demolir tudo e todos que estivessem do outro lado da imaginária linha do nós x eles. Lá pelas tantas, Lula da Silva ousou: «Nós não precisamos de formadores de opinião. Nós somos a opinião pública!». Um atrevimento! Era a confirmação explícita do totalitarismo embutido na ideologia lulopetista, ancorada na verdade revelada e única. Deu no que deu. A República quase foi pro espaço. Felizmente, socorridos pela absoluta incapacidade da presidente, conseguimos estancar a obstinada rapina e a bolivarização do Estado brasileiro.

Oito anos se passaram desde a irada agitação de Campinas. Comícios como os do tempo de Jânio Quadros, com palanque, faixa, banda de música e alto-falante, estão rareando. Plugado e antenado, o mundo de hoje não se anima a permanecer horas de pé na praça a ouvir falatório seja de quem for. É muito mais cômodo ficar no sofá da sala. A informação chega do mesmo jeito e ainda pode ser sopesada, comentada e compartilhada. Como os demais candidatos às presidenciais deste ano, Jair Bolsonaro aderiu à modernidade: manifesta-se por tuítes. Na busca por alianças, tem encontrado certa resistência. São poucas as legendas dispostas a apoiá-lo, o que periga reduzir-lhe o tempo de exposição na tevê. Agastado com a reticência partidária, doutor Bolsonaro atreveu-se outro dia num tuíte: «Nosso partido é o povo!» Frisson garantido.

Ao repreender a jornalista atrevida, Jânio Quadros mostrou-se autoritário. Mas o pito se restringia a preservar sua esfera privada contra irrupções, nada mais. Já a amostra de autoritarismo revelada tanto pela arenga de Lula da Silva quanto pelo tuíte de Bolsonaro dá arrepio. Os dois pronunciamentos são irmãos gêmeos. O vão que separa o «nós somos a opinião pública» do «nosso partido é o povo» é tão apertado que não deixa passar nem uma folha de papel de seda. Ambas as falas testemunham pura e perigosa prepotência, que transborda da esfera privada para derramar-se sobre o entorno. Desvario será confiar as chaves da República a personagem imbuído de visão absolutista.

Nesse particular, esquerda e direita se confundem. Guinada autoritária, venha ela de que bordo político vier, está fadada a terminar em desastre. O Brasil e o mundo já assistiram a esse filme. Não convém dizer que Lula da Silva e Jair Bolsonaro sejam farinha do mesmo saco. No entanto, ainda que sejam farinhas diferentes, desaguam no mesmo pão. Populismo autoritário nunca dá certo. E costuma acabar mal.

Kiss of death

José Horta Manzano

Dicionario 2O Cambridge Dictionary ensina que a expressão “kiss of death” (=beijo da morte) é usada quando se tem certeza de que um fato vai impedir outro de se realizar. E dá como exemplo: “Chuva é o ‘kiss of death’ de um churrasco”.

Em pleno esperneio contra a cassação de seu mandato, dona Dilma acaba de receber importante apoio moral. Vem de Diego Armando Maradona, antigo profissional do futebol argentino. Embora seja figura idolatrada em seu país, o jogador nunca arrebatou multidões no Brasil.

De fato, o gol de mão com que Maradona definiu um jogo contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986 ficou na história do futebol. Não foi o gesto mais elegante que já se viu. É de crer que o esportista preferisse ser lembrado por outras façanhas, mas assim são as coisas. Passando por cima da perfídia do ato, nossos hermanos sempre louvaram o goleador pela esperteza.

Chamada do jornal O Tempo, 14 dez° 2015

Chamada do jornal O Tempo, 14 dez° 2015

Pensando bem, o socorro anunciado por Maradona faz sentido. Seu gol de mão foi exemplo típico do tenebroso adágio “os fins justificam todos os meios”. Na mesma linha, falsos dossiês, rapinagem, cooptação e pedaladas – métodos empregados com regularidade por dona Dilma e sua turma – seguem a mesma filosofia. A coincidência de visão de mundo é perfeita. O chato é que… nem todos os brasileiros enxergamos pelos mesmos óculos. Convenhamos que é um tanto embaraçoso.

Quer saber de uma coisa? Esqueça a ‘mano de Diós’. No que diz respeito a nossa presidente, o tuíte do ‘esperto’ jogador está mais pra ‘kiss of death’.

De bom tamanho

José Horta Manzano

Señor Leopoldo López, cidadão venezuelano que não compactua com os rumos «bolivarianos» que estão sendo impostos a seu povo, estava na cadeia havia ano e meio à espera de julgamento.

Manif 2Seu crime? Opor-se ao descalabro que tomou conta de seu país, outrora pacífico e promissor. Organizou passeatas, liderou manifestações, difundiu centenas de tuítes. Os guias da «revolução» não apreciaram nadinha. Disseram que o rapaz fazia apologia da violência, que suas palavras configuravam incitação à selvageria.

Depois de deixar que ele mofasse numa masmorra por quase dois anos, submeteram-no a um daqueles processos que fazem lembrar os expurgos stalinistas dos anos 30. A acusação pediu 14 anos de prisão e 14 anos obteve. Um jogo de cartas marcadas.

Justiça 3Catorze anos por delito de opinião, distinto leitor. Nosso vizinho (e sócio no Mercosul!) anda cada dia mais parecido com a China, o Irã, a Arábia Saudita, a Rússia, a Coreia do Norte, países onde nenhuma dissensão é tolerada.

Se a sentença que desabou sobre o infeliz cidadão não tiver sido decisão política, que terá sido?

Interligne 18b

Ocorre-me um episódio que fez barulho, no Brasil, alguns meses atrás, mas que já anda meio esquecido. No meio de tanta turbulência, é natural que detalhes desçam pelo ralo. Vale a pena repescar este aqui.

Lula e Fidel 2Quando começou a se dar conta de que a vaca ia indo direto pro brejo, nosso guia ficou furioso. Um belo dia, olhos dardejantes, num discurso inflamado, convocou um tal de Stédile par pôr em ação seu «exército». Todos os jornais deram a notícia.

Concluindo: se os tuítes de señor López foram incitação à selvageria, a ameaça de nosso guia também foi. Que pena merece o autor? Será que catorze anos estariam de bom tamanho?