Pontos de atrito

José Horta Manzano

Ao redor do globo, há numerosas regiões onde as populações vivem em tensão crônica. Na raiz, pode estar antagonismo religioso, étnico, linguístico, político ou histórico. Pode ainda haver uma combinação de mais de um desses fatores.

O caso mais conhecido, mais midiatizado e de maior poder explosivo é, sem sombra de dúvida, o conflito que envolve Israel e seus vizinhos. Já centenária, a tensão começou a nascer à época em que começaram a chegar, vindo principalmente da Europa, imigrantes judeus. A situação naquela região é bem mais complicada que um duelo: a soma de interesses envolvidos tece uma tela emaranhada. A solução do problema ‒ se é que um dia será encontrada ‒ não é pra já.

As tensões na Irlanda do Norte, que deram origem a ondas de atentados e de assassinatos políticos no último quartel do século XX, tinham sido acalmadas desde que Irlanda e Reino Unido passaram a integrar a União Europeia. A convivência entre católicos e protestantes, entre separatistas e unionistas, tinha se tornado habitual e sem solavancos. Isso durou até que, por um descuido da maioria silenciosa que se omitiu de votar, os eleitores britânicos deram voto favorável ao Brexit.

Os britânicos e os demais europeus tomaram um susto. Mas não havia nada a fazer, que o povo havia votado. Desde então, as negociações pra fixar os termos do divórcio têm sido duras, complicadas. Afinal, um casamento de 45 anos não se desmancha assim, sem mais nem menos. Não basta cada um levar sua escova de dentes. Há uma infinidade de pontos a discutir.

O problema mais espinhoso, todo o mundo já sabia desde o começo das negociações, é a questão da fronteira entre as duas Irlandas, a do Norte e a independente. É outro exemplo de atrito regional insolúvel. A solução, seja ela qual for, pode até agradar a um lado mas certamente vai desagradar ao outro.

O único jeito de pacificar a região seria o povo britânico voltar atrás e renunciar ao Brexit. Mas, a depender de Theresa May, nem pensar. Portanto, as brasas estão sendo atiçadas na Irlanda do Norte. É só questão de tempo pra irromperem as labaredas.

Lula e a segunda instância

José Horta Manzano

Tem coisas que escapam ao entendimento do comum dos mortais. Desde os tempos do velho Getúlio, a população não se repartia em facções tão ostensivamente antagônicas: os que gostam do Lula e os que dele não gostam. Esse “gostar” e esse “não gostar” vão além de simples preferência. Não funciona como gostar do amarelo ou preferir o azul. Tanto o gostar quanto o detestar são potencializados.

Os que apoiam o demiurgo, que seja por simpatia ou por interesse, o fazem com paixão de devoto que abraça uma causa. Nada nem ninguém poderá demover o adepto da seita abraçada. Nenhuma revelação de malfeitos ou crimes cometidos pelo guru abalará os adeptos. São fiéis autoenredados por fé cega. Ou por interesse inamovível.

Já os que estão no campo oposto vão além da detestação do ex-presidente. Sentem arrepio à simples menção de seu nome. Irritam-se com o som de sua voz. Não suportam vê-lo nem em foto. Torcem para que desapareça de vez do cenário político da nação. “Que se vá e nos esqueça!” ‒ é expressão que resume o estado de espírito dos opositores.

O tribunal de Porto Alegre encarregado de julgar o recurso interposto pelo Lula contra a condenação a quase dez anos de cadeia não é composto por magistrados ingênuos. Lá, exatamente como aqui, todos estão cientes da tensão que esse processo tem gerado.

Volto agora ao que dizia no início: certas notícias têm o condão de deixar qualquer um embasbacado. Concretamente, pergunto: por que razão terão marcado, com três meses de antecedência, o dia em que será proclamado o julgamento do recurso? Dezenas de recursos de acusados na Lava a Jato já passaram por aquele tribunal. Que se saiba, não é costume anunciar dia e hora em que a palavra final será tornada pública. Por que fazê-lo neste caso?

Terá sido por vaidade dos juízes? Não acredito. Não me parece que a divulgação antecipada da data lhes possa inflar o ego. Se a intenção era gerar um crescendo de tensão nacional, conseguiram o intento. Se a intenção era pôr o demiurgo sob a luz dos holofotes, foram bem-sucedidos. Se a intenção era insuflar ânimo nos movimentos ditos «sociais», conseguiram também.

A decisão do colegiado ‒ sejamos realistas ‒ já há de estar tomada há tempos. Segundo a imprensa, um dos desembargadores até já emitiu seu voto, embora não o tenha tornado público. Inverídico, portanto, será dizer que o recurso será “julgado” dia 24 de janeiro. Julgado ele já foi. No dia aprazado, o resultado será publicado, nada mais.

Por que então ‒ pergunto de novo ‒ marcar dia? O momento político pede mais é serenidade. Atos que não fazem senão exacerbar os ânimos deveriam ser banidos.

Lição de Psicanálise

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Assistindo ontem ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em que se debatia o projeto anticorrupção aprovado recentemente na Câmara dos Deputados, vi-me forçada a relembrar muitos dos sábios ensinamentos do pai da Psicanálise.

Quando você se depara com um comportamento bizarro, aparentemente sem sentido e cuja motivação lhe escapa, não se deixe abater. Controle por alguns segundos a sensação de que sua mente é obtusa e lembre-se: Freud explica. Tudo. Sempre. Se não parece explicável sob nenhum ângulo, é porque você ainda não absorveu inteiramente o arcabouço teórico do genial mestre.

Com um pouco de paciência para estudar a obra freudiana, você descobrirá que, dentre os mecanismos de defesa do ego propostos por ele, há um particularmente curioso chamado de “formação reativa”. O conceito é complexo, denso, cheio de meandros teóricos, mas pode ser fácil e rapidamente compreendido quando se dá um exemplo.

falar-em-publicoImagine que você tem pavor de falar em público. Só a simples ideia de que terá de se levantar, dirigir-se ao centro da sala, encarar as pessoas sentadas à sua frente e apresentar suas ideias de forma concatenada já é suficiente para detonar uma série de reações orgânicas de desconforto. Suas pernas bambeiam, suas mãos ficam trêmulas e úmidas, sua boca seca, sua voz falha e sai como um sussurro, assumindo por vezes um tom esganiçado.

Você sente que, para não ter de passar pela situação, seria capaz de fazer qualquer coisa. Ao mesmo tempo, sabe que não há escapatória. Todos serão chamados a falar, é só uma questão de tempo para que seu nome seja anunciado. Sua ansiedade extravasa e bloqueia sua mente. Não conseguindo suportá-la por mais tempo, você se voluntaria para ser o primeiro da fila.

Estranho, não é mesmo? Por que alguém aceitaria fazer o exato oposto do que está sendo pedido em seu íntimo? A explicação, no entanto, é simples: literalmente qualquer coisa é melhor para a preservação de sua saúde psíquica do que suportar a ansiedade. Sendo o primeiro, você se livra rapidamente da tensão e pode se preparar emocionalmente para responder a eventuais dúvidas ou contestações.

O exemplo mais emblemático de formação reativa no cenário político brasileiro recente é o que acometeu o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Para quem não lembra, o ex-deputado optou por depor espontaneamente numa CPI, ocasião em que declarou enfaticamente não possuir contas no exterior. Deu no que deu.

roda-viva-1Voltando ao debate no Roda Viva, estava presente o deputado maranhense responsável pela apresentação da emenda sobre o abuso de autoridade de magistrados e membros do Ministério Público. Acuado por comentários irados dos demais debatedores, ele deu início a suas explicações de peito estufado e voz firme, tecendo comentários vagos a respeito da coragem que teve para se opor ao clã Sarney em seu estado natal e relembrando um pacto assinado em 2009 entre o Executivo e o Legislativo para reformular a lei de abuso de autoridade, que data do período de ditadura militar. Foi recebido com um silêncio sepulcral.

Na sequência, um respeitado jurista fez questão de ler cada uma das 10 medidas contra a corrupção descartadas no substitutivo aprovado e concluiu enfático: “Isso é um estelionato legislativo, um verdadeiro projeto de facilitação e institucionalização da corrupção”.

Várias mensagens de apoio à fala do jurista começaram a chegar através das redes sociais. O deputado maranhense tentava se defender das acusações, mas não conseguia deixar de gaguejar e tremer. Foi então que um advogado se mostrou solidário à emenda do deputado. Elencou vários dos erros cometidos pela Operação Lava Jato e exigiu respeito à Constituição, argumentando que “ninguém está acima da lei”. Mais uma vez, a tela foi inundada por comentários de apoio dos telespectadores.

Logo depois, foi a vez de uma procuradora do Ministério Público falar. Fazendo menção às quase 2 milhões e 400 mil assinaturas coletadas, ela lembrou que várias das 10 medidas propostas haviam sido “importadas” de outros países democráticos e, algumas, recomendadas pela ONU. Ao final, sugeriu sem sutileza alguma que a intenção do “nobre deputado” só podia ser a de intimidar juízes e promotores, numa tentativa de autodefesa de parlamentares investigados por corrupção. Milhares de comentários indignados com a safadeza de membros do parlamento foram recebidos.

peticao-1Minha sensação de pasmo ao ouvir as teses apresentadas podia ser resumida pelo ditado popular que afirma que “em casa em que falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”. Não me escapava a impressão de que todos os lados da polêmica haviam recorrido inconscientemente a mecanismos de defesa. Tudo pairava no plano da “nobreza” das intenções declaradas para os próprios projetos em contraste com a suspeição quanto às “intenções ocultas” dos projetos alheios.

Freud deve ter se revirado na tumba várias vezes e se arrependido de ter formulado o conceito de motivações psíquicas inconscientes. Provavelmente, pensei eu já em meio à minha própria formação reativa, estaríamos pisando em terreno mais seguro caso fosse convocada uma Assembleia Constituinte fora do congresso e implantadas novas regras para a escolha de nossos representantes. É, concluí, Sartre estava mesmo certo: o inferno, decididamente, são os outros…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Esplanada das religiões

José Horta Manzano

A cidadezinha francesa de Bussy St-Georges, de 25 mil habitantes, está situada na região parisiense, a 30km da capital e apenas a 7km do parque de diversões Disneyland.

Em 1980, com menos de quinhentos habitantes, não passava de sonolento vilarejo da zona rural. Em quarenta anos, a população multiplicou-se por mais de quarenta. É fato notável que, sem enquadramento atento, pode fazer desandar o quotidiano dos cidadãos.

Fotomontagem de ritos religiosos

Fotomontagem de ritos religiosos

Gente de muitos horizontes veio acrescentar-se aos camponeses originais. Franceses de raiz, fugindo os aluguéis inabordáveis da capital, fixaram residência no pequeno burgo. Imigrantes muçulmanos das antigas colônias francesas do norte da África também estão presentes. Por seu lado, imigrantes chineses, vietnamitas e cambodgianos constituem 35% da população do burgo.

Nestes tempos de enfrentamento entre fiéis de diferentes religiões, a presença de pessoas oriundas de diferentes universos periga transformar-se em foco de tensões. Em vez de esperar de braços cruzados que o pior acontecesse, as autoridades municipais optaram por tomar a iniciativa.

Grande área foi reservada para a construção de uma Esplanada das Religiões. Mal comparando, respeita-se o mesmo princípio de uma praça de alimentação de shopping center onde pizzas, sushis, paellas, brigadeiros e pastéis podem ser degustados a alguns centímetros de distância uns dos outros, sem que ninguém se sinta incomodado.

Armonitace

Armonitace

A esplanada compõe-se de dois templos budistas, uma mesquita (para os muçulmanos), uma sinagoga (para os judeus), uma igreja protestante. Um centro cultural para católicos armênios completa a coleção. A comunidade católica tradicional não está representada no novo espaço porque a cidadezinha já conta com duas igrejas, uma das quais fica bem próximo. Foi considerado supérfluo erigir mais um templo.

A construção do empreendimento ainda não chegou ao final, mas as obras continuam aceleradas. É que, para não favorecer nenhuma religião, a municipalidade cedeu o terreno mas se absteve de bancar as obras. Aliás, a lei francesa proíbe o uso de dinheiro público para fins religiosos. Cada comunidade teve de encontrar seu próprio financiamento.

O homem costuma temer aquilo que não conhece, é natural. A coabitação incentiva o mútuo conhecimento e favorece o mútuo respeito. Dificilmente Bussy St-Georges será, um dia, palco de combate interreligioso. Os que tiveram a ideia merecem parabéns.

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PS: Armonitace ‒ que aparece na ilustração ‒ é criação artística encomendada para simbolizar a Esplanada. O conjunto entrelaça o símbolo estilizado de cada uma das religiões.