Tudo ou nada já?

Vera Magalhães (*)

Num intervalo de sete dias, o presidente:

1) disse que fez um acordo com Sérgio Moro para nomeá-lo para o STF, para em seguida recuar;

2) previu um tsunami;

3) viu as investigações sobre o filho Flávio avançarem substancialmente e atingirem o resto do clã político, e reagiu a isso na base da valentia de pai;

4) minimizou os protestos contra a Educação e xingou seus participantes;

5) se enfiou numa viagem caricata a uma cidade desimportante para uma agenda irrelevante para a qual não havia sido convidado;

6) terminou a semana compartilhando corrente pelo WhatsApp com um texto que diz que sua própria pauta fracassou e que o País é ingovernável.

É preciso um talento muito específico para gastar tanta energia assim em um conjunto tão desastroso de ações.

(*) Vera Magalhães é jornalista. O texto integral foi publicado no Estadão de 19 maio 2019.

Tsunami de gelo

José Horta Manzano

Maciços montanhosos costumam abrigar lagos de altitude. Alguns são alimentados por curso d’água afluente. Outros, por derretimento de alguma geleira ou das neves invernais. Há ainda os que entram nas duas categorias – é o caso do Lago de Joux. Ele é alimentado pelas neves do inverno rigoroso e pelas águas do Orbe, rio que entra por um lado, atravessa a massa d’água e sai na outra ponta. Com 21m de profundidade, o Lago de Joux fica a uma altitude de 1000 metros. Mede 9km de comprimento por 1km de largura.

Lago de Joux no verão

Ao redor, está um rosário de cidadezinhas que, há séculos, se especializaram em fabricar relógios, escolha explicada pelo sistema de trabalho familiar. Tradicionalmente, cada família era especializada na fabricação de determinados componentes do relógio. Os longos invernos favorecem o trabalho em casa. A fábrica propriamente dita costumava ser mais montadora que fabricadora. Recolhidas as peças talhadas pelas famílias, faziam a montagem final dos relógios. Se a moderna automatização praticamente deu cabo do sistema, certo número de marcas importantes ainda produzem ao redor do lago.

Lago de Joux no inverno

Quando, no inverno rigoroso, a temperatura fica abaixo de zero durante alguns dias, uma camada de gelo se forma na superfície do Lago de Joux. Dependendo da espessura, dá pra passear em cima – calçando patins, que senão escorrega. Em algumas ocasiões, desde que determinados fatores estejam reunidos, esse gelo pode dar origem a um tsunami. Não é todo ano que acontece, mas foi o que se viu neste 2019.

Quando chega março, as travas do inverno começam a afrouxar. Na região, costumava ocorrer em abril, mas o aquecimento global tem encurtado o período frio. À medida que a temperatura se eleva, a camada de gelo vai afinando. Se, nessa altura, vier um dia de vento forte e contínuo, estarão reunidas as condições pra um tsunami gelado. A um dado momento, milhões de plaquinhas de gelo de poucos centímetros de espessura vão se desprender da superfície do lago, sair voando e encalhar na margem, formando montes de gelo.

O fenômeno dura poucos minutos. Nos tempos de antigamente, o espetáculo era reservado pra quem fosse da região. Hoje, que todo o mundo leva uma filmadora no bolso, ficou mais fácil. Faz dois dias, um passante, ao assistir ao tsunami de 2019, sacou rápido do celular e registrou essas impressionantes imagens. Não é perigoso como maremotos, mas é raro, curioso e original.

A hora da verdade

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 setembro 2018.

Pomposo, o título alude ao voto da semana que vem. Podia ser ainda mais empolado, algo do tipo momento supremo, encruzilhada de caminhos ou até nunca antes neste país. Bobagem. A hora da verdade é toda hora, é agora e sempre, é um contínuo. O hoje é produto do ontem e será semente do amanhã.

É verdade que as escolhas que os brasileiros farão nestas eleições vão determinar, em grande parte, o futuro de todos nós. Mas o leque de candidatos que nos lançam santinhos e nos assassinam com boutades toscas não surgiu do nada nem brotou de geração espontânea. Se estão lá é porque cada um deles representa uma parcela, maior ou menor, do gênio nacional. Nenhum dos postulantes entrou de penetra. A nenhum se lhe pespegará a etiqueta de usurpador.

Um cidadão que se apresenta como Só Na Bença disputa uma poltrona na Assembleia de Rondônia. Um outro, registrado como Alceu Dispor 24hs (sic), pretende ser eleito em Goiás. Uma senhora, dona Olga Um Beijo E Um Queijo, pede votos em São Paulo. Estivéssemos na Alemanha, país em que candidatos costumam usar nome próprio e deixar alcunha pra outros ambientes, esse quadro seria inconcebível. Nossa cultura, contudo, vê com naturalidade candidatos embrulhados pra presente com papel furta-cor a mascarar-lhes a identidade. Eles são produto de nossa verdade quotidiana. Farão sucesso e terão votos.

Faz poucos dias, conceituada revista britânica estampou, logo na capa, foto de um dos candidatos à presidência de nossa República. Assustadora, a legenda apresentava o homem como a “ameaça da hora”. Não só para o Brasil, como para toda a vizinhança. A meu ver, estão carregando nas tintas ao atribuir ao personagem poderes que ele não tem. A candidatura de doutor Bolsonaro planta raiz nos treze anos de lulopetismo, período desastroso que deixou marcas profundas. A toda ação corresponde uma reação oposta e de igual intensidade, reza o axioma newtoniano. Não tivéssemos sido castigados com os descalabros do andar de cima durante década e meia, a candidatura Bolsonaro não prosperaria. Aos olhos de grande parte do eleitorado, esse candidato parece encarnar o mais perfeito antídoto contra a volta do PT ‒ daí sua ascensão irrefreável.

Sir Isaac Newton

A clivagem engendrada pelo discurso excludente do lulopetismo foi tão profunda que o resultado não podia ter sido outro. Não se sabe se a predicação que separava a população entre nós e eles era mero instrumento retórico ou se mirava a abrir brechas. Fato é que acabou se materializando. O país está hoje dividido entre os que, por motivos que lhes são próprios, gostariam de ver o lulopetismo de volta, e os demais, que sentem arrepio à simples evocação dessa ideia.

A eleição terá ares de plebiscito. Seu vencedor representará, goste-se ou não, o desejo da maioria do eleitorado. Muitos temem seja eleito um político com tendências radicais. A crer nas pesquisas, que já delineiam os dois favoritos, esse temor se realizará. Que fazer? Será chegada a hora de fazer novena pra Santo Expedito na esperança de evitar desastre?

Que ninguém se amofine. Nenhum candidato, ainda que mostre perfil agressivo, resiste à unção presidencial. Uma vez eleito e devidamente empossado, seu comportamento muda. O chefe do Executivo pode muito mas não pode tudo. O Estado dispõe de travas e ferrolhos a cercear dirigentes impetuosos. O Congresso é contrapeso ao poder presidencial. Apesar de duramente criticado ultimamente, o Judiciário marca presença como terceira força, a equilibrar os outros Poderes. Dirigentes arrebatados e voluntariosos, já tivemos. Não esquentaram cadeira por muito tempo. Doutor Jânio Quadros foi um deles. Num dia de piripaque, o homem escreveu um bilhete de adeus e, antes que o despejassem, abandonou o trono. Doutor Collor e doutora Dilma, por sua vez, tentaram resistir, mas acabaram destituídos.

Seja qual for o eleito, não há o que temer, gente fina! Golpe é coisa do passado. Revolução só fazem os que estão na miséria. Num Brasil escaldado pelos recentes escândalos, se os eleitos para o próximo quadriênio roubarem menos, já estará de bom tamanho. Que se assosseguem todos os súditos! O tsunami não passará de marolinha.

Terremoto

José Horta Manzano

Um terremoto sacudiu o centro e o sul do México ontem, pouco depois das 17h30, em plena hora de pico. Ainda que estejam acostumados a sofrer frequentes tremores de terra, os mexicanos se assustaram. O sismo de setembro passado, que deixou muitas vítimas, ainda está vivo na lembrança de todos.

Este terremoto foi de magnitude 7,2 na escala Richter e durou cerca de um minuto. Foi seguido por um mínimo de 150 réplicas. A frequência desses fenômenos fez que o México já tenha implantado um sistema de alerta. Setenta e dois segundos antes de o sismo ser sentido, a população ameaçada foi avisada por SMS, rádio, tevê e alto-falantes. Um minuto parece pouco, mas é tempo que permite correr para o ar livre ou procurar abrigo seguro.

O tremor foi ressentido até a capital, mas o epicentro situou-se em Santiago Pinoteca, cidade de 30 mil habitantes, a 400 km em linha reta. No Brasil, locutores de rádio e tevê disseram que «o epicentro foi em Pinoteca a 24km de profundidade». Escorregaram.

Terremoto: epicentro e hipocentro (foco)

Epicentro, palavra erudita formada com o prefixo grego epi (= em cima, acima, sobre), indica o ponto da superfície situado exatamente na vertical do foco do acidente sísmico. O ponto exato em que o atrito das rochas provocou o terremoto leva o nome técnico de hipocentro ‒ no presente caso, situado a 24km de profundidade. As ondas de choque se propagam em todas as direções, mas o epicentro ‒ o ponto da superfície situado mais próximo do sismo ‒ é o mais afetado.

Ouvi também que não tinha havido «alerta de tchissunâmi». O problema aí não é de inadequação vocabular, mas de pronúncia. O mundo adotou o termo tsunami para designar a enorme onda marítima que certos terremotos provocam. A palavra vem direto do Japão, país cuja língua não conhece acentuação tônica. Embora seja inabitual para nós, assim é: todas as sílabas são pronunciadas com a mesma intensidade, sem destaque para nenhuma delas. Pra facilitar, basta pronunciar tsunami como oxítona, com acento no mi. Fica mais próximo do original.

Ah, só pra terminar. O tsu de tsunami forma uma sílaba só. Não é tchissu. Lembre-se de pizza, que todos pronunciamos «pítsa» e não «pítchissa».

Este artigo, como tantas coisas em nosso país, também termina em pizza. Que fazer?

Recordar é viver ― 7

As dúvidas do Lula

José Horta Manzano

23 set° 2010
Questionado sobre os ataques feitos anteriormente à imprensa, Lula disse duvidar «que exista um país na face da terra com mais liberdade de comunicação do que neste País, da parte do governo».

20 out° 2013
Sobre denúncias de corrupção, Lula disse duvidar «que exista no mundo um país com a quantidade de fiscalizações que o Brasil tem».

Blabla 228 ago 2014
Cutucando o PSDB, Lula disse duvidar que o partido do ex-presidente FHC «tenha feito 10% do que fiz para investigar». E usou uma analogia doméstica para explicar a diferença entre os partidos. «Eles tinham um tapete desse tamanho para jogar a sujeira debaixo. Nós tiramos esse tapete da sala», afirmou. «Só tem um jeito: é ser honesto e ter decência. Se fizer sacanagem com o dinheiro público tem que pagar».

19 out° 2006
«Se houve crime eleitoral, terei que pagar», diz Lula. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que estará sujeito à punição da Justiça Eleitoral caso seja comprovado que o dinheiro apreendido pela Polícia Federal que supostamente seria usado para compra do dossiê contra tucanos saiu da sua campanha de reeleição.

24 set° 2007
Deu no NYT: Lula duvida de provas contra Dirceu
Além de exaltar a economia brasileira e evitar falar do colega venezuelano, o presidente Lula disse em entrevista ao jornal New York Times que não há provas do envolvimento do ex-ministro da Casa Civil e deputado cassado José Dirceu (PT) com o mensalão.

Blabla 725 ago 2012
«Lula duvida que Aécio concorra à presidência. Acha até que ele trabalhará para costurar o apoio dos tucanos a Eduardo Campos.»

1 fev° 2012
«Lá nos EUA, a crise é um tsunami. Aqui, se chegar, vai chegar uma marolinha que não dá nem para esquiar.»

20 jan° 2016
«Não tem uma “viv’alma” mais honesta do que eu neste país», diz Lula.

Os problemas que não temos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 jan° 2015

Farofa 1Entrada de ano é hora de balanço. Todos nós, coração amolentado, olhamos pra trás, analisamos nossos próprios feitos e juramos de pés juntos fazer mais caprichado no ano que entra. Junto com o peru, a farofa e a troca de presentes, o exame de contrição faz parte do ritual da passagem de ano.

Canais de tevê, jornais, revistas e portais fazem questão de propor retrospectivas do ano que se foi. Pouca atenção se dá a acontecimentos positivos. Em compensação, é impressionante o que se vê de desastre e de desgraça. Compreende-se: coisa ruim vende melhor.

É verdade que, no Brasil, 2014 foi um ano e tanto. Eleições, seca saariana, vexame na Copa, violência endêmica, corrupção aos borbotões assustaram. Os problemas que temos são pesados. Às vezes nos fica a impressão de estarmos vivendo no pior país do planeta. Será mesmo?

Nestes dias flutuantes que separam passado e futuro, proponho darmos uma espiada no quintal do vizinho. Vamos, por um momento, esquecer nossas mazelas e imaginar a aflição de outros povos.

Manif 11Os Estados Unidos, símbolo de desenvolvimento e sucesso, estão sacudidos por distúrbios raciais. Ressurgem os espantalhos que imaginávamos falecidos com o último dos hippies.

Serra Leoa e outros territórios da África Ocidental choram seus mortos. Estão sendo dizimados por severa epidemia, mal terrível contra o qual pouco ou nada se pode fazer.

Desvario na condução da economia mergulhou nossa vizinha Venezuela no desabastecimento e na hiperinflação. O país resvala para a anomia.

Todos os Estados da orla do Pacífico vivem na permanente angústia de terremoto ou tsunami, catástrofes que podem irromper sem dizer água vai.

Imigração 4Empurradas pela miséria, populações inteiras arriscam a pele na temerária travessia do Mediterrâneo a bordo de embarcações precárias em busca de vida melhor na Europa. Esse fluxo continuado de infelizes aporta na Itália, onde acaba gerando fortes tensões que esgarçam o tecido social.

Os países produtores de petróleo do Oriente Médio, aqueles cuja única riqueza repousa na extração do ouro negro, sabem que a qualquer hora a fonte vai secar. Imagina-se a apreensão criada por essa perspectiva.

As duas Coreias vivem situação paradoxal. A do norte passa fome. A do sul vive há 60 anos na apreensão de um ataque do irmão desorientado.

Os iranianos pelejam contra o olhar reprovador do resto do mundo. Além de serem vistos com desconfiança, sofrem sanções que lhes sufocam a economia.

Já faz meio século que nossos vizinhos colombianos vêm tentando varrer do país o estigma da narcoguerrilha. Sem sucesso até agora.

Guerrilha 1Na França, imigração maciça oriunda das antigas colônias africanas tem semeado crescente discórdia entre franceses «de raiz» e recém-chegados. Essa cizânia é alimento para correntes políticas populistas e neonazistas, que ganham adeptos a cada dia.

Os países da África subsaariana, já castigados pela pobreza endêmica e pela natureza hostil, ganharam mais um inimigo. Grupos terroristas elegeram domicílio na região, que se tornou, de facto, território sem lei.

A queda vertiginosa do preço do petróleo, aliada às sanções aplicadas por países ocidentais, reduziu dramaticamente as rendas do Estado russo. Refletindo a desesperança, a moeda nacional perdeu boa parte de seu valor. Como de hábito, quem sente o baque é o povo.

Espanha, Turquia, Ucrânia, China são dilaceradas por crônicos movimentos separatistas – explícitos ou latentes. O estado insurreccional pode até, por momentos, se aquietar. Mas é calmaria que não ilude: por baixo da brasa, o fogo cochila. Um sopro basta para reavivá-lo e incendiar o país.

E o Brasil, bonito por natureza, como é que fica? Temos nossos problemas, sim. Seria hipocrisia negá-lo. No entanto, sopesando os males que corroem outros países, impõe-se o óbvio: nossos problemas têm solução.

Tsunami 1De fato, não dependemos da benevolência de governos estrangeiros, nem da descoberta de vacina milagrosa, nem da clemência da natureza. Não temos guerrilhas a combater, nem separatistas a derrotar, nem inimigos a temer. A faca, o queijo, a responsabilidade e a chave do futuro estão unicamente em nossas mãos – bênção de que outros povos não dispõem!

Quem quer mudar, muda. Quem não quer, reclama. Que tal incluir, nas intenções de fim de ano, a mudança de atitude? Que tal arregaçar as mangas e meter mãos à obra? A recuperação do País requer empenho de todos. Temos de salvar o que ainda pode ser salvo. E é bom acharmos logo solução contra a dissolução de nossa sociedade. Feliz ano-novo!

Símbolos horizontais

José Horta Manzano

SOSDesde antes de inventar a escrita, o homem procurou deixar marca de sua passagem. Escreveu na pedra, na madeira, na argila, na areia, no papel, no bronze, na natureza.

Deixar marcas no chão, que só poderiam ser vistas do alto, fazia pouco sentido antes do advento de balões, aviões & conexos. Hoje a coisa mudou.

Estes dias, voando atrás de sequestradores, a Polícia Civil de Santa Catarina surpreendeu – e fotografou – uma piscina residencial cujo revestimento reproduz o desenho de uma inquietante suástica, de triste memória.

Foto divulgada pela Polícia Civil de Santa Catarina

Foto divulgada pela Polícia Civil de Santa Catarina

Desconheço a legislação, mas acredito que, no Brasil, o fato de ostentar uma cruz gamada no exterior de sua residência não constitua crime. Na Alemanha, levaria o responsável ao calabouço. Rapidinho.

Ocorreram-me dois outros casos de mensagem desenhada no solo, casos que fizeram história.

O primeiro deles aconteceu faz meio milênio. Foi quando José de Anchieta, religioso espanhol de origem judia aportado à Capitania de São Vicente nos idos de 1553, escreveu seu Poema à Virgem. Riscou-o nas areias de Iperoig (atual Ubatuba, Estado de São Paulo). O padre poeta tinha sido tomado como refém por uma tribo autóctone e encontrava-se em cativeiro. Diríamos hoje que estava no regime semiaberto.

Padre Anchieta escrevendo seu Poema à Virgem by Benedito Calixto (1853-1927)

Padre Anchieta escrevendo seu Poema à Virgem
by Benedito Calixto (1853-1927)

O primeiro registro da composição teve exata duração de uma maré. As águas atlânticas se encarregaram de apagar a obra. Seus 4712 versos só chegaram até nós por façanha da extraordinária memória de Anchieta. Uma vez liberto, ele reescreveu a poesia.

O caso catarinense lembrou-me também – que remédio? – outro episódio bem mais recente e bem menos glamoroso. O distinto leitor há de se lembrar da estrela vermelha que a esposa do então presidente mandou plantar nos jardins do Palácio da Alvorada. Mostrando, já naquela época, o sinal distintivo do partido do marido – o «nós contra eles» –, não hesitou em marcar a sede do Executivo de todos os brasileiros com o símbolo do «nós».

Estrela Alvorada«Nós», que chegamos lá. «Nós», que ganhamos. «Nós», que mandamos. Pareceu natural a todos eles. Não foi senão na sequência de clamor popular – e bem a contragosto – que desmancharam o «enfeite» plantado no jardim da sede do Poder brasileiro. Poder que emana do povo, lembre-se.

Foto de 2011

Foto de 2011

Anos mais tarde, repetiu-se a dose. Só que, desta vez, nos jardins da Granja do Torto, outra residência oficial do chefe do Executivo. O nome da granja, por falar, combina com seus atuais ocupantes. Pau que nasce torto não tem jeito: morre torto.

Interligne 18bEm tempo
O poema de Anchieta ainda está aí, à disposição do leitor. Ainda que não possa ser incluído entre as obras-primas da poesia de todos os tempos, continua comovente pela pureza e pela singeleza de suas estrofes. Já o «nós contra eles», visivelmente na contramão da História, tem prazo de validade efêmero. Mais dia, menos dia, será varrido pela maré. Ou por um tsunami.

Tsunami urbano

José Horta Manzano

Tsunami é uma imensa vaga oceânica provocada por um tremor de terra, geralmente submarino. Chega a atingir altura de 30m ou 40m. Nada lhe pode resistir, nem central atômica.

Rua Frederico Steidel - fev° 2013Crédito: Danilo Verpa/Folhapress

Rua Frederico Steidel – fev° 2013
Crédito: Danilo Verpa/Folhapress

Queda de meteorito é outro fenômeno natural contra o qual pouco ou nada se pode fazer. O rochedo vaga pelo universo até que resolve cair em algum lugar. O risco de despencar em terra habitada é pouco, embora às vezes aconteça, como na Rússia, semana passada.

Diferentemente de fenômenos dos quais não podemos escapar, há aqueles que, se não podem ser banidos, podem, sim, ser controlados ou contornados. Enchentes e alagamentos fazem parte dessa categoria.

O clima do Sudeste do Brasil é subtropical chuvoso. Do sul da Bahia a Santa Catarina, chove. E cai muita água, geralmente concentrada em certos períodos do ano. Esse regime não começou na semana passada, já vigora faz alguns milhões de anos.

A natureza é sábia. Para muita chuva, muitos drenos. À diferença de outras partes do planeta, onde o clima é mais árido, nosso território é densamente provido de drenos naturais. São fios d’água, tanques, ribeirões, riachos, rios.

Os primeiros habitantes destas terras, aqueles que, por um engano histórico-geográfico, chamamos até hoje de «índios», bobos não eram. Jamais se estabeleceriam em zonas periodicamente inundáveis.

Região da Frederico Steidel - 1895

Região da Frederico Steidel – 1895

Região da Frederico Steidel - 2013

Região da Frederico Steidel – 2013

Durante os primeiros quatro séculos de ocupação das novas terras, o homem branco respeitou a sabedoria dos indígenas. Na cidade de São Paulo, até fins do século XIX, não viria à cabeça de ninguém urbanizar charcos ou zonas alagadiças. Sabiam que, se o fizessem, estariam garantindo problemas para o futuro.

De repente, sabe-se lá se terá sido por ignorância ou por cupidez ― provavelmente pela conjunção dos dois fatores ―, o homem decidiu que era chegada a hora de domar a natureza. Ingenua mas arrogantemente, sentiu-se capacitado para a empreitada.

Alagadiços foram drenados, cursos d’água foram escondidos debaixo de ruas novas, riachos tiveram seus cursos alterados, tanques naturais foram desativados. Mas esqueceram de combinar com as chuvas. Estas, como de hábito, continuaram a cair, impassíveis e abundantes. Deu no que deu.

A maior metrópole do País, vitrina e orgulho do povo, traz na alma a intrepidez dos bandeirantes, mas… tem medo de chuva. Uma pancada mais forte, e o caos se instala.

Neste 19 de fevereiro foi a vez da Rua Frederico Steidel, no centro da cidade, a um passo do Minhocão, a dois do Largo do Arouche, a três da Praça da República. E olhe que não foi aguinha de molhar a sola do sapato, não. Enchente de submergir motor de automóvel!

De onde vem esse problema recorrente? Pouco mais de um século atrás, como registra a planta da cidade publicada por Hugo Bonvicini em 1895, o arruamento da região ainda não estava terminado. Um riacho natural de escoamento das águas da Praça da República e de Higienópolis estava no meio do caminho. Estorvava. A municipalidade autorizou que se enterrasse o fio d’água. Por cima, abriu-se a Rua Frederico Steidel. A comparação da planta de 1895 com as imagens de 2013 mostra que a rua inundada ainda não existia 120 anos atrás.

Nos primeiros anos, o tubo dentro do qual o riacho foi aprisionado deu conta do recado. O crescimento selvagem da cidade, no entanto, provocou crescente impermeabilização do solo. As chuvas continuam caindo. Sem ter por onde se infiltrar, as águas respeitam a lei da gravidade: escorrem sempre pelos mesmos caminhos, estejam eles arruados ou não.

Buraco do Adhemar - 1967

Buraco do Adhemar – 1967

Pode-se encontrar paliativo para a situação. Se o problema das enchentes do Vale do Anhangabaú foi resolvido, não há por que deixar outras regiões ao deus-dará. É verdade que dá menos visibilidade política, mas melhorar a qualidade de vida de seus governados faz parte da tarefa de prefeitos e de governadores. Moradores das regiões descuradas também são eleitores.

Ninguém faz milagres, nem São Pedro.