Ansiedade global

Dorrit Harazim (*)

Raras vezes o sentimento de ameaça esteve tão difundido globalmente. Trata-se de uma ameaça existencial difusa, imaterial, desvinculada de perigo físico, embora também afetada pelo espetáculo dantesco da guerra em curso na Ucrânia.

Emergiu daquela terra invadida, com cidades reduzidas a esqueletos e ruínas, um espécime de líder capaz de se comunicar com os seus por meio de uma linguagem universal que pode ser letal, quando não autêntica: a empatia. Talvez por não ter tido tempo de ensaiar uma estratégia de marketing político para tempos de guerra, o presidente da Ucrânia sob assalto, Volodimir Zelenski, teve de optar por ser quem é, sem retoques.

Acabou matando de inveja e assombro a elite política mundial. Suas falas de compaixão e urgência soam autênticas, parecem confiáveis – a ponto de importar pouco, neste mundo contaminado por extremos, sua real inclinação ideológica.

(*) Dorrit Harazim é jornalista. Trecho de artigo publicado no jornal O Globo de 10 abr 2022.

Standing ovation

José Horta Manzano

Até um mês atrás, a popularidade de Volodímir Zelenski, presidente da Ucrânia, andava baixa. Ele seguia o destino reservado a todos os políticos de quem os eleitores esperam milagres. Dado que, em tempos normais, milagres não costumam ocorrer, a população que conta com eles acaba se sentindo frustrada.

Acontece que a invasão das tropas russas virou o país de ponta-cabeça, e a situação mudou drasticamente. Calcula-se que, até agora, 10 milhões de cidadãos tiveram de fugir abandonando casa e bens. Isso representa 23% da população do país. Proporcionalmente, é como se 49 milhões de brasileiros tivessem sido obrigados a fugir, sem destino certo, só para salvar a pele. Uma calamidade!

O Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados informa que, até ontem 23 de fevereiro, 3,7 milhões de ucranianos – um contingente constituído basicamente de mulheres, crianças e anciãos – foram mais longe: atravessaram a fronteira e deixaram o país natal em busca de refúgio no estrangeiro, principalmente na Polônia.

Zelenski, o presidente em quem ninguém botava muita fé até outro dia(1), tem mostrado ser excelente chefe de guerra. Encarna o herói tal como é definido nos dicionários: aquele ser carismático que, em circunstâncias adversas, se destaca como figura protetora que mostra o caminho a seguir.

Seu passado de ator tem sido precioso na adversidade. O trabalho de anos diante das câmeras deu-lhe segurança na hora de falar ao público. Por meio de internet, zoom e telão, tem sido o convidado de honra de numerosos parlamentos ao redor do globo.

Sempre ovacionado de pé por parlamentares, já discursou ao vivo, por meio de telão, no Parlamento da União Europeia, no Congresso Americano, no Bundestag (Parlamento Alemão). Já se exprimiu também nos seguintes parlamentos: Canadá, Itália, Japão, Israel, Reino Unido. Ontem foi a vez da França, onde foi ouvido por deputados e senadores reunidos em sessão extraordinária. Recebeu a habitual standing ovation.

Zelenski sabe encontrar as palavras certas para tocar o fundo da alma dos que o escutam. Nos EUA, lembrou os ataques a Pearl Harbour e às torres gêmeas; na Europa, mencionou as invasões da Segunda Guerra; na França, comparou as ruínas da cidade-mártir de Mariúpol à destruição da francesa Verdun, na Primeira Guerra.

Diferentemente de seu xará russo, que pensa muito em si e pouco no próprio povo, Volodímir Zelenski tem demonstrado pouco apego à própria vida e grande amor pelo povo que o elegeu. Sabe perfeitamente que, a todo momento, um míssil russo pode destruir o palácio do governo, que ele transformou em seu quartel-general. Transpira coragem, enquanto Putin, seu agressor, vive cercado por um batalhão de seguranças e não come nada que não tenha sido antes experimentado por um dos provadores oficiais.

A Ucrânia, a Europa e o mundo inteiro torcem para que esse pesadelo termine logo. Esta é uma guerra que só deixará perdedores. Perde a Ucrânia, um país destruído. Perde a Rússia, um país condenado a passar as próximas décadas à margem da civilização. Perde o mundo, que vê ressurgir o pavor do urso soviético, que todos imaginavam morto e enterrado.

Folha de São Paulo, 20 out° 1977

Zelenski não discursou para os parlamentares brasileiros. Desconheço a razão. Talvez, ocupados com escândalos paroquiais, tenham esquecido de convidá-lo. Ou talvez nosso Congresso não disponha de telão – deve ser isso.

Em outubro de 1977, em pleno regime militar – só os muito antigos se lembrarão – nosso Congresso recebeu a visita da lindíssima atriz holandesa Sylvia Kristel. Ela tinha sido a estrela do filme Emmanuelle. A exibição do filme tinha sido proibida no Brasil, por ele ter sido considerado ousado demais. A censura só viria a liberá-lo 3 anos mais tarde.

Jornais da época relatam a tietagem de que a moça foi objeto por parte de assanhados parlamentares. (A palavra tietagem ainda não existia; dizia-se paparicação.) Sylvia Kristel conversou com deputados e senadores, todos encantados e admirativos. Foi recebida até pelos presidentes do Senado e da Câmara, respectivamente Petronio Portella e Marco Maciel(2).

Não se deve tirar nenhuma conclusão apressada. Seria injusto afirmar que nossos parlamentares se encantam mais com a visita de uma beldade estrangeira do que com um drama que sacode a Europa e que trará, é certeza, repercussões (negativas) para a economia nacional e para o dia a dia de nossa população.

Vai ver que só não convidaram Zelenski para discursar por videoconferência por não disporem do número de telefone dele.

(1) Muitos não botavam fé em Zelenski, é verdade. Mas eu não soube de nenhum chefe de Estado que tenha cometido a imprudência de zombar dele, logo nos primeiros dias da invasão, como fez nosso capitão Bolsonaro, quando fez pouco e tentou rebaixar o colega ucraniano chamando-o de “comediante”. Com direito a muxoxo.

(2) Marco Maciel, que foi vice-presidente do Brasil ao longo dos dois mandatos de FHC, faleceu no ano passado. Ele e um certo Olavo de Carvalho foram as únicas personalidades falecidas durante o governo Bolsonaro que tiveram direito a um decreto de luto oficial. (Coincidentemente, ambos faleceram de covid, doença que o capitão diz que não existiu.) Diga-se, em desagravo à memória de Maciel, que ele dificilmente terá cruzado algum dia com o outro homenageado. Não frequentavam a mesma paróquia.

O humorista e o imbecil

Manchete do jornal russo Ria Novosti
28 fev° 2022

José Horta Manzano

Francamente, Bolsonaro não perde uma oportunidade para escancarar sua estupidez. Sua estreiteza mental é tão impressionante, que às vezes a gente acha que ele está brincando. Parece que sua visão de mundo, bitolada por natureza, se afunila a cada dia que passa.

Num momento em que o mundo civilizado se movimenta para mostrar a Putin que ele errou ao invadir a Ucrânia, lá vai nosso capitão defender o ditador. E aproveita o ensejo para desmerecer, gratuitamente, o presidente da Ucrânia, eleito democraticamente por seu povo.

A mídia russa, enfeudada a Putin, não tem liberdade para publicar nada que possa desagradar ao capo. A manchete de ontem do Ria Novosti, que reproduzo acima, narra uma frase de Bolsonaro:


«Bolsonaro declara que os ucranianos “confiam em um humorista para determinar o destino da nação”»


Na arte de fazer inimigos, o capitão é imbatível. Imprudente, não se dá conta de que, ao pronunciar com desdém a palavra “comediante”, ele está ofendendo por tabela todos os humoristas, cômicos e comediantes do planeta. O néscio não sabe que o “comediante” que ele despreza tem-se revelado ser providencial chefe de guerra, um homem corajoso e combativo, um esteio, uma referência para um povo martirizado pela covarde invasão de Putin. Não se pode afirmar que Bolsonaro agiria com tanta dignidade se estivesse no lugar do “comediante”.

A mente estreita do capitão não lhe permite enxergar que, ao fixar seu empenho na importação de fertilizantes, está se posicionando na contracorrente do mundo civilizado. Todos os países que estão condenando a Rússia e impondo sanções econômicas ao país também comerciam com o país dirigido por Putin. Todos vão sofrer em maior ou menor escala. Há países, na Europa principalmente, cuja dependência da Rússia é bem maior que a do Brasil. No entanto, todos entenderam que a hora é grave e que o equilíbrio mundial está ameaçado. Eis por que aderiram ao embargo.

O espaço aéreo europeu está fechado para aviões russos. Os haveres dos bilionários oligarcas próximos de Putin estão congelados, indisponíveis. As reservas do Banco Central russo também estão bloqueadas. A própria Fifa excluiu a Rússia de toda competição de futebol – coisa nunca vista! A onda de solidariedade que se levanta em todos os países europeus é impressionante. Doações se amontoam nos centros de coleta; para acolher refugiados, cada um oferece o que pode: uma casa de campo, um quarto, uma cama.

O ministro da Economia da França declarou nesta terça-feira que as sanções impostas pela parte civilizada do mundo vão estrangular e derrubar a economia russa. É exatamente esse o objetivo. Se der certo – e certamente vai dar –, Bolsonaro terá apostado mais uma vez no cavalo errado. Esta nova (e irresponsável) aposta vai entrar para uma longa lista que inclui candidatos derrotados no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Chile. E até o mais vistoso de todos: o folclórico Donald Trump.

É nas horas difíceis que se conhecem os verdadeiros líderes. Na sua terrível desgraça, os ucranianos têm hoje um consolo. Sabem que elegeram um presidente à altura do cargo. O “humorista” tem a coragem e a dignidade que sua posição exige, e que nosso capitão não tem.

Não é à toa que Volodímir Zelenski se tornou o alvo número um de Putin. Ninguém sabe como as coisas vão evoluir e como vai terminar essa infame agressão. Mas uma coisa é certa: que saia dessa vivo ou morto, o “comediante” tem lugar para sempre reservado na memória nacional ucraniana. As gerações futuras ainda vão ver estátuas do herói e estudar suas façanhas nos livros de história.

Já quanto a nosso capitão, ai, ai, ai…

A sala de visitas de Putin

José Horta Manzano

Em diversos países da Europa, o uso comercial da expressão “saldos” é protegida. Isso quer dizer que toda venda de saldos é regulamentada. A palavra não pode ser usada por qualquer comerciante, pra vender qualquer tipo de mercadoria, a qualquer preço, em qualquer época do ano. Só pode ser usada durante a época fixada pelas autoridades que regulam o comércio. Nem antes, nem depois. Isso lhe agrega valor. A época dos saldos é aguardada ansiosamente.

O período dos saldos é especialmente apreciado por comerciantes de roupas. E por seus clientes, naturalmente. É que o comércio de peças de vestuário, além de sazonal, é sujeito às variações da moda. Os saldos são autorizados durante algumas semanas em janeiro (para liquidar o estoque encalhado de roupas de inverno) e, de novo, em julho (para o vestuário de verão).

Conforme o país, as vendas especiais duram de 3 a 4 semanas, às vezes até mais. Os primeiros dias têm o efeito de uma sexta-feira negra (em português: black Friday). Antes da abertura das lojas, já tem gente encostada à porta. Comerciantes que não trabalham com vestuário também aproveitam o embalo pra fazer caixa, vendendo alguns de seus artigos a preço de pechincha.

Quinta-feira passada, Señor Alberto Fernández, presidente da Argentina, esteve de visita a Vladímir Putin, em Moscou. Na foto, entre os dois dirigentes, aparece uma mesinha dessas que se usam pra pousar uma xícara de chá e, se der, pra ajeitar um pratinho (pequeno) para o bolo. Na mesinha que separava os dois, de tão minúscula, acho que nem bolo ia caber.

Terminada a visita, chegou o fim de semana. Vladímir Putin, que não tem o hábito de ir à feira comer frango com farofa, deve ter inventado outro programa. A agenda do dirigente russo não confirma, mas é possível que ele tenha aproveitado a folga pra dar uma espiada nos saldos de alguma loja de móveis. Não conheço os costumes locais, mas pode ser que os saldos de Moscou se estendam até fevereiro.

O fato é que, na segunda-feira 7, Monsieur Emmanuel Macron veio visitá-lo. A exígua mesinha de chá tinha desaparecido. Não se sabe onde foi comprada nem quanto custou a mesa ao redor da qual se sentaram Macron e Putin, mas, convenhamos, ela é im-pres-sio-nan-te!

Daqui a alguns dias, será a vez de nosso capitão fazer sua peregrinaçãozinha nas neves moscovitas. Vamos ver qual das duas mesas sairá na foto. A mini de chá ou a XXL dos saldos? A conferir.

Em tempo
Quem lê jornais em vez de ficar mergulhado na bolha sabe que a Rússia e a Ucrânia estão em pé de guerra. Putin encostou na fronteira com a Ucrânia um contingente militar de assustar. Fotos de satélite avaliam que cem mil homens estão ali, à espera da ordem de atacar. Um tiro de chumbinho na hora errada pode ser suficiente pra assustar todo o mundo e desencadear uma carnificina.

Macron, que bobo não é, entendeu a fragilidade da situação. Numa hora dessas, visitar um e ignorar o outro significa automaticamente que se tomou partido na briga. É exatamente o que Macron, a França e a Europa querem evitar. Nesta terça-feira, terminada a visita a Moscou, o presidente francês está em Kiev para uma conversa com o presidente ucraniano, Zelensky – que, por coincidência, também é Vladimir (ou Volodímir, como dizem eles). Se o encontro vai evitar a guerra, só o futuro dirá. Mas, pelo menos, Macron guardará o mérito de haver tentado.

Nosso capitão, que bobo é, vai se meter onde não foi chamado. O infeliz não consegue entender o frágil e o delicado da situação. Com os dois a ponto de se morderem mutuamente a orelha, lá vai o paspalhão visitar um dos contendores, ignorando o outro. Em linguagem diplomática, que é entendida por todos os governos do planeta, essa visita significa alinhamento com um dos beligerantes. Uma imensa estupidez para um Brasil que não tem nada a ver com aquele peixe. Não temos nada a ganhar com essa demonstração explícita de preferência por um dos lados.

A visita unilateral de Bolsonaro vai acrescentar agressão gratuita e desnecessária a mais um povo. O gesto será somado à longa lista das afrontas que já fizeram, ele e seu clã, aos EUA, à França, à Itália, à Alemanha, à Noruega, à Argentina, ao Chile, ao Peru. E, naturalmente, à China, vítima preferencial de suas ofensas de babaca boca-suja.

Ucrânia, seja bem-vinda ao clube! Sinta-se honrada! Amigo do capitão bom sujeito não é.

Macron e a casca de banana

José Horta Manzano

A notícia passou meio despercebida na imprensa francesa, neste momento mais preocupada com as consequências das eleições europeias, com o interminável folhetim do Brexit e com os irritantes protestos dos derradeiros Coletes Amarelos. Vamos rebobinar o filme.

Dia 21 de abril, Volodimir Zelenski, jovem ator ucraniano de 41 anos, foi eleito presidente de seu país. Exemplo de ficção que se torna realidade, o moço tinha encarnado, numa minissérie televisiva, um professor de História que se tornava, por acaso, presidente do país. No auge da popularidade mas sem nenhuma experiência política, candidatou-se à Presidência assim como quem não quer nada. Com estonteantes 73% dos votos, venceu, no segundo turno, o presidente atual, que disputava a reeleição. Foi bem sucedido num desafio que nem nosso Tiririca ousou enfrentar!

Como acontece nessas horas, todos os dirigentes do planeta sentiram a necessidade de dar parabéns ao recém-eleito e desejar-lhe boa sorte. Dois humoristas russos, especialistas em dar trotes e pregar peças a personagens importantes, resolveram preparar uma pegadinha pra Monsieur Macron, presidente da França. Valendo-se do caminho mais simples, ligaram para o palácio presidencial francês e deixaram o número de celular do novo presidente. O número, naturalmente, era do celular deles.

Tranquilizados pela voz com sotaque carregado, os responsáveis pelo cerimonial da Presidência francesa não desconfiaram. Transmitiram o número a Emmanuel Macron. Pouco depois, o francês liga para o número que lhe haviam dado e, convencido de que estava a conversar com o novo presidente ucraniano, sente-se à vontade e solta as amarras.

 Do outro lado, a suposta voz do presidente recém-eleito provoca:

«– Veja, Monsieur Macron, com meus 73%, eu me sinto como meu vizinho Vladimir Putin, o presidente da Rússia.»

E Macron, que não perde a ocasião pra responder na lata:

«– É, mas eu tenho a impressão de que o sistema na Ucrânia ainda não está tão bem organizado como na Rússia. Você ainda não botou todos os seus oponentes na cadeia.»

Ai, ai, ai… Os humoristas russos, que tinham gravado tudo, puseram o áudio à disposição em sua conta no Twitter. Estavam à mesa todos os ingredientes de um sério incidente diplomático. Alguns poucos comentaristas franceses se mostraram surpresos pelo fato de o Palácio do Eliseu ter se deixado tapear com tanta facilidade. E também pela imprudência de Macron ao pronunciar palavras sarcásticas contra o presidente da Rússia, país importante e amigo.

Passado um mês, uma constrangida Presidência francesa segue firme na recusa de confirmar o fato. Tampouco emitiu desmentido, o que já é meia confissão. Por seu lado, a embaixada da Rússia em Paris informou não ter intenção de tecer comentários sobre o ocorrido.

Como se vê, não é só nosso presidente linguarudo que se mete em palpos de aranha ao dizer o que não deve a quem não convém. A diferença é que, enquanto outros escorregam na casca de banana que alguém lhes colocou no caminho, doutor Bolsonaro atravessa a rua pra escorregar na casca que avistou na outra calçada.