Sem chão embaixo dos pés

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Assistindo às cenas terríveis do resgate de pessoas mortas e de bebês e crianças ainda vivas soterradas no brutal terremoto que atingiu a Turquia e a Síria, fui forçada a reviver uma situação que só posso descrever como paranormal que aconteceu comigo há algumas décadas.

Eu era coordenadora do curso de inglês em uma grande empresa multinacional. Recentemente havia recebido várias reclamações a respeito de um dos professores, um australiano recém-contratado. Os comentários negativos sobre o desempenho dele em sala de aula eram vagos, genéricos. Ninguém o acusava de não ter habilidades linguísticas nem se queixava de sua capacidade didática. O problema aparentemente estava limitado a seu comportamento, descrito apenas como “estranho”, “esquisito”, que fazia lembrar o de um “louco” ou drogado. Fala e gestos lentos, súbitos e longos silêncios, olhar perdido na distância.

Preocupada em entender o que exatamente significava isso e qual impacto negativo teria sobre o aprendizado da turma, resolvi assistir a uma de suas aulas. Sem avisar ninguém e sem me justificar, bati na porta e pedi licença para acompanhar os ensinamentos do dia. A aula já havia começado e o clima entre os alunos e o tal professor parecia sereno. Ele estava de costas para a porta, escrevendo algo no quadro negro. Ao se virar e me ver, no entanto, ele teve uma reação inexplicável: sua fala travou totalmente e seu corpo congelou como o de uma estátua, ainda com o braço suspenso no ar e o giz na mão.

Foram minutos de constrangedor silêncio que me pareceram horas. A classe inteira paralisou à espera dos nossos próximos passos. Sem saber o que fazer, eu também limitei-me a ficar parada e em silêncio, de pé, segurando a maçaneta. Ele olhava para mim com um ligeiro sorriso nos lábios. Seus olhos tinham um estranho brilho, como se ele estivesse tentando contextualizar minha imagem ou se lembrar de alguma coisa. Embora não me conhecesse, parecia estranhamente contente em me ver – ou rever, como descobri mais tarde.

Sem pronunciar uma só palavra, ele lentamente foi descongelando, virou-se novamente para a lousa e escreveu algo nela… só que em indecifráveis (para mim) caracteres da língua hindi. Ao terminar, voltou-se para mim, abriu um largo sorriso e disse candidamente: ‘Este é seu nome”. Cada vez mais assustada e perturbada, perguntei o que aquele nome significava. Ele respondeu apenas: ‘Myrthes!’. Não me lembrava de ter dito meu nome e, mesmo que o tivesse feito, me surpreendia que ele o houvesse absorvido tão rapidamente, com tamanha familiaridade. Àquela altura, eu já estava começando a achar que o caso merecia uma intervenção de ordem psiquiátrica mesmo, mas não quis dar continuidade ao estranho diálogo para não atrapalhar a aula. Sentei-me numa cadeira no fundo da sala e permaneci calada.

Quando a aula terminou, sem outras intercorrências, ele veio conversar comigo. Depois de trocarmos amistosamente algumas informações sobre seu currículo e sobre suas relações com os alunos, novo susto, desta vez de muito maiores proporções. Sem perder sua espontaneidade, ele simplesmente deu início a um relato sobre uma pretensa vida passada minha, algo que me arrepia até hoje: “Você morreu em um terremoto, de fome e de sede, por não ter sido resgatada a tempo”. Absolutamente perplexa, não tive forças para perguntar mais nada, nem quando nem onde aquilo acontecera. Ainda que os temas esotéricos não me fossem desconhecidos e eu já tivesse vivido outras situações estranhas com desconhecidos, eu me recusava a acreditar naquele relato e continuava duvidando da sanidade mental do professor.

No dia seguinte, marquei um encontro com a diretora da escola de inglês. Contei a ela brevemente das reclamações sobre o comportamento do professor, omitindo o relato acima. Ela prontamente me tranquilizou: disse que ele era uma pessoa realmente estranha para os padrões corporativos ocidentais mas uma pessoa nobre, altamente espiritualizada, que havia vivido muitos anos na Índia e se tornado uma espécie de liderança iogue. Tinha vindo ao Brasil com a missão de aqui instalar um centro de ioga voltado à construção da paz universal vinculado à ONU, e que só estava dando aulas de inglês para sobreviver financeiramente enquanto isso não acontecia. Garantiu que conversaria com ele para que ele evitasse discussões não-técnicas com os alunos e adotasse um comportamento mais “dinâmico” (menos zen) em sala de aula, de modo a afastar a possibilidade de novas reclamações.

De fato, algumas semanas depois as queixas cessaram e ele continuou dando aulas normalmente. A partir dali, aproximei-me mais dele e, após ser convidada, fui fazer um curso de Raja Yoga (um tipo de ioga mais propriamente mental) no centro que ele estava construindo. Não posso dizer que nos tornamos amigos, mas os conceitos do hinduísmo que aprendi ali me ajudaram a interpretar com mais tolerância seus estranhos hábitos e relatos.

De alguma forma, a ideia de ter morrido num terremoto começava a fazer sentido para mim. Sempre tive pavor de voar e algumas vezes entrei em pânico até mesmo dentro de elevadores. A sensação apavorante de não ter chão embaixo dos meus pés me acompanha desde que me conheço por gente. Assunto de muitas sessões de terapia, aprendi aos poucos a lidar melhor com o descontrole emocional e esse medo acabou ficando literalmente soterrado em meio às minhas lembranças do passado.

Ontem, entretanto, ouvindo uma sobrevivente dizer que a sensação é a de que você está pisando em um colchão de água e seu corpo oscila violentamente acompanhando as ondas que vêm da terra, não tive como evitar reviver intensamente o terror do chão se abrindo, a sensação de sufocamento, abandono e desamparo. Sim, muito provavelmente eu já vivi essa situação, não importa se em uma vida passada ou dentro do útero de minha mãe na hora do parto.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O terremoto

Correio Paulistano, sabbado 28 jan° 1922

José Horta Manzano

Você sabia?

No Brasil de antigamente, parece que a vida escorria mais lenta. Há razões objetivas para isso.

  • O clima era mais ameno. Não fazia calor como hoje. Basta conferir os registros meteorológicos.
  • As distâncias eram menores – refiro-me às que se percorriam habitualmente, de casa ao trabalho e vice-versa.
  • Havia menos gente. (Basta dar uma olhada na Wikipedia pra se inteirar do desenfreado crescimento populacional de vilas e cidades.)

Há também razões subjetivas.

  • Sem internet e sem telefone celular, o indivíduo não sentia a afobação de ter de estar ligado e antenado o tempo todo. A vida corria mais ‘relax’.
  • Sem a torrente de informação que nos invade atualmente, havia espaço para uns minutos de prosa com um conhecido, quando de encontro casual – sempre havia alguma novidade a contar (ou a ficar sabendo).

Este blogueiro tem especial prazer em dar uma espiada em jornais antigos. Uma leitura atenta da imprensa nos ensina muito sobre os costumes de cada época.

Este 28 de janeiro, faz exatamente 100 anos que os jornais comentaram o incrível acontecimento: a terra tremeu numa vasta região compreendendo grande parte do estado de São Paulo, o Rio de Janeiro e o sul de Minas. O raríssimo fenômeno acordou a população às 3h50 da madrugada do dia 27 de janeiro de 1922.

A linguagem pitoresca da época acrescenta uma nota poética aos acontecimentos. No Correio Paulistano, o subtítulo já informa que “A cidade despertou sobresaltada (sic)”. E continua: “o phenomeno foi observado em quasi todo o Estado de S. Paulo, em Minas e no Rio de Janeiro”. Em seguida, vem a notícia. Começa assim:

“Hontem, ás 3 horas e 50 minutos, S. Paulo presenciou um terremoto. Os que, por dever de officio ou inveterados habitos de noctivago, estavam acordados áquella hora tiveram opportunidade de assistir a um espectaculo bem raro e bem difficil de ser apreciado tão cedo neste privilegiado torrão da nossa terra immunizado pelas suas condições geologicas e geographicas contra todas as calamidades sismicas, tão frequentes em outros paises.”

Com um linguajar assim, o desabamento de alguns telhados fica até simpático. O sismo não deixou vítimas mortais, com exceção de um cidadão que, na linguagem da época, “morreu de susto”. (Há de ter tido o que hoje se descreveria como infarto ou parada cardíaca.)

Houve um outro cidadão que, assonado e assustado, achou que gatunos estivessem assaltando a casa. Catou a a garrucha e saiu atirando a esmo.

O presidente do estado, hoje chamado governador, tomou o estrondo por estampidos de arma de fogo, e imaginou que tivesse estourado uma revolução. É que revoluções eram corriqueiras à época. Os revoltosos atiravam de verdade e costumavam visar o palácio do governo. Hoje revoluções não passam de papo de internet. Quando os ‘revoltosos’ miram um prédio oficial, não é mais o palácio do governo, mas o STF. E as armas são fogos de artifício. Francamente, não se fazem mais revoluções como antigamente.

Um senhor, bastante assombrado, relatou ao repórter do Correio Paulistano que, sempre que morria alguma pessoa na família, ele recebia aviso de um espírito. Tendo sentido o tremendo abalo, saiu correndo de madrugada em direção ao telegrapho para pedir notícias dos seus.

Os boatos mais estapafúrdios correram pela capital paulista. Que haviam desabado casas e igrejas, que estátuas haviam despencado de fachadas, que havia mortos nos baixios do bairro do Brás. Nada disso se confirmou.

De manhã bem cedo, assim que o dia clareou, viram-se famílias inteiras a passear pela Rua Direita, felizes de constatar que as casas continuavam de pé e que não tinha ocorrido nenhuma catástrofe.

Consta que o último terremoto de que se tinha notícia havia ocorrido nos anos 1500, nos tempos do Padre Anchieta. Se o intervalo entre dois sismos for de 400 anos, não temos nada a temer. Daqui até o próximo, os tataranetos de nossos tataranetos já terão deixado este vale de lágrimas.

Terremoto – 2

José Horta Manzano

Em nosso país, os terremotos mais frequentes são de natureza política – esses estouram dia sim, outro também. Tremores de terra no sentido original, daqueles que derrubam gentes e prédios, são fenômeno bem mais raro. Ocorrem, às vezes, mas em geral em zonas de escassa habitação, o que suaviza o problema. A gente só fica sabendo quando algum sismógrafo ultrassensível, montado a milhares de quilômetros dali, registra e publica o acontecido. Já nossos hermanos do Peru, do Chile, do Equador, da Colômbia estão muito mais expostos a esse tipo de ocorrência. Quando violentos, os terremotos podem causar perda de muitas vidas além de grande estrago material.

Terremoto de 26 maio 2019

No domingo 26 de maio, forte sismo de magnitude estimada em 7,5 graus na Escala Richter sacudiu a região do Alto Amazonas, no Peru. Foi sentido no país inteiro e até nos vizinhos Equador e Colômbia. É mais que provável que pudesse ter sido sentido também no Brasil, no oeste do Amazonas e no Acre, se essas regiões fossem mais densamente povoadas. Como há pouca gente por ali, só ficamos sabendo porque os sismógrafos peruanos registraram.

Em nota discreta, a notícia foi dada pela mídia brasileira. Como acontece a cada vez, escorregaram na hora de dar os detalhes. O Estadão, por exemplo, escreveu que o epicentro do tremor foi registrado a uma profundidade de 141km. Bobeou. Já falei nisso antes mas, como o erro se repete, repito eu também.

Estadão, 26 maio 2019

Epicentro é o ponto da superfície (da terra ou do mar) situado exatamente acima do lugar onde teve origem a ruptura que causou o terremoto. Portanto, é incorreto dizer que o epicentro está situado a tal profundidade. Está sempre na superfície. A palavra epicentro utiliza o prefixo grego epi = acima, na superfície. O hipocentro é o ponto onde se produziu a ruptura. Esse, sim, está sempre na profundidade.

O escorregão se explica. Pra terremoto político, estamos escolados. Já tremor de terra não é nossa praia. Cada qual com sua especialidade, ué.

Terremoto

José Horta Manzano

Um terremoto sacudiu o centro e o sul do México ontem, pouco depois das 17h30, em plena hora de pico. Ainda que estejam acostumados a sofrer frequentes tremores de terra, os mexicanos se assustaram. O sismo de setembro passado, que deixou muitas vítimas, ainda está vivo na lembrança de todos.

Este terremoto foi de magnitude 7,2 na escala Richter e durou cerca de um minuto. Foi seguido por um mínimo de 150 réplicas. A frequência desses fenômenos fez que o México já tenha implantado um sistema de alerta. Setenta e dois segundos antes de o sismo ser sentido, a população ameaçada foi avisada por SMS, rádio, tevê e alto-falantes. Um minuto parece pouco, mas é tempo que permite correr para o ar livre ou procurar abrigo seguro.

O tremor foi ressentido até a capital, mas o epicentro situou-se em Santiago Pinoteca, cidade de 30 mil habitantes, a 400 km em linha reta. No Brasil, locutores de rádio e tevê disseram que «o epicentro foi em Pinoteca a 24km de profundidade». Escorregaram.

Terremoto: epicentro e hipocentro (foco)

Epicentro, palavra erudita formada com o prefixo grego epi (= em cima, acima, sobre), indica o ponto da superfície situado exatamente na vertical do foco do acidente sísmico. O ponto exato em que o atrito das rochas provocou o terremoto leva o nome técnico de hipocentro ‒ no presente caso, situado a 24km de profundidade. As ondas de choque se propagam em todas as direções, mas o epicentro ‒ o ponto da superfície situado mais próximo do sismo ‒ é o mais afetado.

Ouvi também que não tinha havido «alerta de tchissunâmi». O problema aí não é de inadequação vocabular, mas de pronúncia. O mundo adotou o termo tsunami para designar a enorme onda marítima que certos terremotos provocam. A palavra vem direto do Japão, país cuja língua não conhece acentuação tônica. Embora seja inabitual para nós, assim é: todas as sílabas são pronunciadas com a mesma intensidade, sem destaque para nenhuma delas. Pra facilitar, basta pronunciar tsunami como oxítona, com acento no mi. Fica mais próximo do original.

Ah, só pra terminar. O tsu de tsunami forma uma sílaba só. Não é tchissu. Lembre-se de pizza, que todos pronunciamos «pítsa» e não «pítchissa».

Este artigo, como tantas coisas em nosso país, também termina em pizza. Que fazer?

Impeachment é fichinha

José Horta Manzano

Bandeira St-KittsComo todo cidadão minimamente ligado ao que acontece no país, sinto-me um tanto inflamado pelos acontecimentos políticos destes dias. Esqueça a zika, o verão que não termina. Não se preocupe se o Corinthians ou o Flamengo ganharam ou deixaram de ganhar. Esqueça até o terremoto do Japão, o terremoto dos ‘Panama Papers’, o terremoto da Lava a Jato. Uma indagação domina a cabeça de todos: Dilma fica ou Dilma vai?

Como todo cidadão minimamente ligado ao que acontece no país, estava me preparando para escrever sobre nossa presidente. Afinal, fica ou vai? Já tinha até lido boa parte das manchetes da imprensa internacional. Tinha colecionado os títulos que me pareciam mais significativos. Eis senão quando… dou de cara com uma notícia que, por sua importância, sobrepuja todas as outras. Deixa o resto no chinelo. Resolvi abandonar tudo e relatar a notícia que dominou a semana em São Cristóvão & Névis, simpático Estado situado nas pequenas Antilhas. Não fica longe de lugares de nome evocador como Anguilla, Antigua & Barbuda, Montserrat, Guadalupe.

Vista geral de Basseterre, capital de São Cristóvão e Névis

Vista geral de Basseterre, capital de São Cristóvão e Névis

São Cristóvão e Névis são duas ilhotas vizinhas que se agruparam num só Estado. Integram o Commonwealth britânico, mas mantêm governo independente da matriz europeia. A população do país aproxima-se de 55 mil almas. Basseterre, capital e maior cidade do país, concentra 13 mil habitantes. Desde o tempo em que nosso guia achava que a importância de um país se media pelo número de representações diplomáticas espalhadas pelo planeta, o Itamaraty foi instado a abrir embaixada naquele país. Uma necessidade absoluta, como pode o distinto leitor avaliar.

A embaixada, que tem até embaixador residente, está lá, há alguns anos, a preparar-se para o intenso intercâmbio que virá um dia, é certeza. Na semana que passou, começou a mostrar a que veio. Finalmente, um acordo de cooperação técnica foi assinado entre Brasília e Basseterre. A partir de agora, há facilidade de treinamento dos incontáveis nativos interessados em aprender nossa língua. E vice-versa, naturalmente.

Embaixada do Brasil em Basseterre, S. Cristóvão e Névis

Embaixada do Brasil em Basseterre, S. Cristóvão e Névis

O acordo apresenta suprema vantagem. Segundo nosso embaixador, o Brasil é parceiro estratégico, pois está inserido na mesma região geográfica, portanto combateu problemas semelhantes. Tendo-os já em grande parte resolvido, pode oferecer colaboração eficiente a países como São Cristóvão.

Tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Nosso guia permitiu-se dar lições políticas a seus colegas do G20. Dona Dilma autorizou-se a ensinar economia a Frau Merkel. Agora chegou a vez do paradisíaco resort antilhano de aproveitar de nosso avanço civilizatório. Agora, vai!

Ah, essa soberba que nos tem turvado a visão…

A brasilidade em tempos de folia

Myrthes Suplicy Vieira (*)

O que define a brasilidade aos olhos de um estrangeiro?

Futebol 3Eu diria que, se fossemos investigar há algumas décadas como outros povos conceituam nossa cidadania, três fatores seriam elencados em uníssono: futebol/Pelé, café e samba. O tempo passou, muita coisa mudou sob nosso céu de anil e outras percepções foram sendo agregadas para ajudar a formar um painel ilustrativo de nosso país varonil: exotismo tropical (sol, calor, belas paisagens de praia, campo e florestas), povo amistoso, alegre, tolerante e musical, belas mulheres desinibidas e semidesnudas, etc.

Décadas mais tarde, nuvens de chumbo passaram a cobrir os céus deste paraíso tropical e o quadro geral ganhou contornos tenebrosos para além de nossas fronteiras: o lar da corrupção, o campeão no ranking da insegurança pública, o berço das mais diversas endemias e epidemias, o abrigo de malfeitores internacionais, anão diplomático, o lugar no qual a elite é perversa e o povo é domado. Constrangedor, não é? Mas, tudo bem, deixa estar. Afinal, minha gente, é Carnaval! Vamos para a rua festejar!

by Fabio Teixeira, desenhista carioca

by Fabio Teixeira, desenhista carioca

Para os que não sabem o que isso significa no contexto do imaginário nacional, eu explico: antes de mais nada, Carnaval é o espaço da fantasia, da utopia e da autoafirmação nacional. Durante quatro dias, a pirâmide social se achata, papéis sexuais são invertidos, o machismo é suspenso temporariamente, a hipocrisia social desmancha-se no calor dos corpos em êxtase. O país todo se detém mesmerizado para assistir à deslumbrante parada de luzes e sons. Economia e política perdem totalmente seus significados. Não há “sofrência” amorosa que se sustente, não há negativismo capaz de toldar a alegria geral, não há preocupação com o futuro capaz de desbotar as cores da festa. Tudo o que se quer é que o mundo inteiro caia de joelhos diante de nossa criatividade, nossa genialidade, nossa capacidade de superação. Vira-latas são mais belos, mais resistentes, mais amorosos e mais simpáticos do que outras raças, bradamos a plenos pulmões.

Entender um brasileiro que não goste de Carnaval, que não se sinta tentado a jogar tudo para o alto e cair de boca na folia, é coisa que gringo nenhum consegue fazer. Cá para nós, também não há brasileiro que não pense que seus compatriotas avessos ao samba são ruins da cabeça ou doente dos pés. Pois bem, feliz ou infelizmente, esse é o meu caso.

Café 5Trancafiada em casa, tento fazer de conta que o mundo é normal lá fora. Ligo a televisão, ansiosa para mergulhar de cabeça em outra dimensão que exale um pouco de racionalidade, sensatez e compostura. Ledo engano! A mercadoria que você procura não está disponível no momento, alertam todas as emissoras, inclusive os assim chamados canais educativos. Talvez seja essa a época em que o pensamento único seja mais glorificado e incensado.

Nem mesmo os telejornais escapam do delírio geral. Encurtados para não atrapalhar a cobertura dos desfiles nas principais capitais, eles passam atabalhoadamente de um tema para outro, sem aprofundar nenhum. Terremoto atingiu cidade no interior de Mato Grosso? Ai, que hora mais ingrata para acontecer isso! Dilma se suicidou para evitar a cassação? Nossa, não esperava por isso, mas prometo que na Quarta-feira de Cinzas vou entrar na internet para ver os detalhes do velório e as discussões sobre quem vai ser o sucessor. O Lula assumiu que se lambuzou todo com o melaço que nunca havia comido antes e entrou para um convento franciscano, doando todos os seus bens para a caridade? Poxa, se ele tivesse feito isso antes eu ainda votaria nele! O Papa Francisco assumiu que é gay e decretou que, de agora em diante, só haverá mulheres à testa da igreja? Que bom, eu sempre achei esse cara sensacional, mesmo ele sendo argentino. O dólar foi cotado a 8 reais e a CPMF foi aprovada? Isso não me abala em nada, eu já tinha cancelado mesmo minha viagem para Miami.

Samba 3Nada ganha destaque, nada consegue prender a atenção do telespectador por mais de dois minutos. Uma vez transpostos os temas chatos do cotidiano, a mídia toda abre enormes espaços para o deslumbramento da rainha de bateria, para o escândalo causado por uma socialite que tirou toda a roupa em plena avenida, para a descontração dos blocos de rua. E dá-lhe festa.

Quem não se deu ao trabalho de assistir aos desfiles, não precisa se preocupar. Basta acessar a Internet para ver um resumo dos melhores momentos de cada escola, as fotos mais constrangedoras, as chamadas mais empolgantes do que ainda está por vir. Nas redes sociais, bem ao lado das fotos da participação doméstica na folia, comentários irados de quem dela não fez parte: Já imaginou uma multidão dessas saindo às ruas para protestar? Por que as mulheres aceitam fazer esse papel? Depois se queixam da violência…

Carnaval 1Quer um conselho? Não tente entender nem explicar nada, nem para os moralistas de plantão nem para os estrangeiros atônitos. Somos secularmente o país da improvisação. Depois damos um jeito de colocar a casa em ordem de novo.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Os problemas que não temos

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 jan° 2015

Farofa 1Entrada de ano é hora de balanço. Todos nós, coração amolentado, olhamos pra trás, analisamos nossos próprios feitos e juramos de pés juntos fazer mais caprichado no ano que entra. Junto com o peru, a farofa e a troca de presentes, o exame de contrição faz parte do ritual da passagem de ano.

Canais de tevê, jornais, revistas e portais fazem questão de propor retrospectivas do ano que se foi. Pouca atenção se dá a acontecimentos positivos. Em compensação, é impressionante o que se vê de desastre e de desgraça. Compreende-se: coisa ruim vende melhor.

É verdade que, no Brasil, 2014 foi um ano e tanto. Eleições, seca saariana, vexame na Copa, violência endêmica, corrupção aos borbotões assustaram. Os problemas que temos são pesados. Às vezes nos fica a impressão de estarmos vivendo no pior país do planeta. Será mesmo?

Nestes dias flutuantes que separam passado e futuro, proponho darmos uma espiada no quintal do vizinho. Vamos, por um momento, esquecer nossas mazelas e imaginar a aflição de outros povos.

Manif 11Os Estados Unidos, símbolo de desenvolvimento e sucesso, estão sacudidos por distúrbios raciais. Ressurgem os espantalhos que imaginávamos falecidos com o último dos hippies.

Serra Leoa e outros territórios da África Ocidental choram seus mortos. Estão sendo dizimados por severa epidemia, mal terrível contra o qual pouco ou nada se pode fazer.

Desvario na condução da economia mergulhou nossa vizinha Venezuela no desabastecimento e na hiperinflação. O país resvala para a anomia.

Todos os Estados da orla do Pacífico vivem na permanente angústia de terremoto ou tsunami, catástrofes que podem irromper sem dizer água vai.

Imigração 4Empurradas pela miséria, populações inteiras arriscam a pele na temerária travessia do Mediterrâneo a bordo de embarcações precárias em busca de vida melhor na Europa. Esse fluxo continuado de infelizes aporta na Itália, onde acaba gerando fortes tensões que esgarçam o tecido social.

Os países produtores de petróleo do Oriente Médio, aqueles cuja única riqueza repousa na extração do ouro negro, sabem que a qualquer hora a fonte vai secar. Imagina-se a apreensão criada por essa perspectiva.

As duas Coreias vivem situação paradoxal. A do norte passa fome. A do sul vive há 60 anos na apreensão de um ataque do irmão desorientado.

Os iranianos pelejam contra o olhar reprovador do resto do mundo. Além de serem vistos com desconfiança, sofrem sanções que lhes sufocam a economia.

Já faz meio século que nossos vizinhos colombianos vêm tentando varrer do país o estigma da narcoguerrilha. Sem sucesso até agora.

Guerrilha 1Na França, imigração maciça oriunda das antigas colônias africanas tem semeado crescente discórdia entre franceses «de raiz» e recém-chegados. Essa cizânia é alimento para correntes políticas populistas e neonazistas, que ganham adeptos a cada dia.

Os países da África subsaariana, já castigados pela pobreza endêmica e pela natureza hostil, ganharam mais um inimigo. Grupos terroristas elegeram domicílio na região, que se tornou, de facto, território sem lei.

A queda vertiginosa do preço do petróleo, aliada às sanções aplicadas por países ocidentais, reduziu dramaticamente as rendas do Estado russo. Refletindo a desesperança, a moeda nacional perdeu boa parte de seu valor. Como de hábito, quem sente o baque é o povo.

Espanha, Turquia, Ucrânia, China são dilaceradas por crônicos movimentos separatistas – explícitos ou latentes. O estado insurreccional pode até, por momentos, se aquietar. Mas é calmaria que não ilude: por baixo da brasa, o fogo cochila. Um sopro basta para reavivá-lo e incendiar o país.

E o Brasil, bonito por natureza, como é que fica? Temos nossos problemas, sim. Seria hipocrisia negá-lo. No entanto, sopesando os males que corroem outros países, impõe-se o óbvio: nossos problemas têm solução.

Tsunami 1De fato, não dependemos da benevolência de governos estrangeiros, nem da descoberta de vacina milagrosa, nem da clemência da natureza. Não temos guerrilhas a combater, nem separatistas a derrotar, nem inimigos a temer. A faca, o queijo, a responsabilidade e a chave do futuro estão unicamente em nossas mãos – bênção de que outros povos não dispõem!

Quem quer mudar, muda. Quem não quer, reclama. Que tal incluir, nas intenções de fim de ano, a mudança de atitude? Que tal arregaçar as mangas e meter mãos à obra? A recuperação do País requer empenho de todos. Temos de salvar o que ainda pode ser salvo. E é bom acharmos logo solução contra a dissolução de nossa sociedade. Feliz ano-novo!