Terra de bandido

José Horta Manzano

A notícia estava na Folha de SP:

«Uma mulher foi tomar a vacina contra a Covid-19 hoje, em Maceió. Ao se posicionar para receber o imunizante, a funcionária responsável pela vacinação inseriu a agulha no braço dela, mas não pressionou o êmbolo da seringa.»

A informação segue e explica que um parente estava filmando a cena e captou tudo com o celular. Estava registrada a prova incontestável. A família foi falar com a responsável, que pediu desculpas e se propôs a reaplicar a vacina. A paciente tomou a vacina – corretamente injetada desta vez –, deu-se por satisfeita e foi-se. A seguir, a funcionária foi repreendida e afastada. Segundo a supervisão, trata-se de um ‘erro isolado’.

Erro? – pergunto eu. Erro? Já se viu alguém preparar a injeção, picar o braço do paciente e ‘esquecer’ de empurrar o êmbolo? Isso não é erro, senhores. É canalhice das grossas. Ignoro a razão pela qual a funcionária terá feito isso, mas coisa boa não é. Não há de ser para aplicar em si mesma; para isso, bastava servir-se na reserva, sem que ninguém visse. Resta a hipótese (mais provável) de estar separando para revenda.

Quero tecer algumas considerações. O caso narrado pode não ter sido a primeira trapaça da funcionária. Foi o primeiro a ser documentado, mas ela pode estar fazendo isso sistematicamente desde a primeira aplicação. Isso explicaria o fato de ela não ter dado importância ao celular que filmava a cena. Tão acostumada estava com a mutreta, que não lhe ocorreu.

A cada vez que sonegou a vacina a um paciente, a funcionária expôs deliberadamente uma pessoa a risco de morte, portanto cometeu crime de tentativa de homicídio. Ao mesmo tempo, incorreu em crime de prevaricação, que é quando um funcionário retarda ou deixa de praticar ato de ofício. A essa lista, pode-se acrescentar o crime de peculato, que é a apropriação de bem público para fins de interesse pessoal.

A meu ver, essa mulher não tinha de ser apenas «afastada». Tinha de ir direto para a cadeia e lá aguardar, trancada sob 7 chaves, a instrução do processo. Solta, ela é um perigo público. Quem empurra para os braços da morte velhinhos inocentes e confiantes que pediam proteção não merece ser deixada solta, por aí, quiçá auferindo os lucros da venda das vacinas que surrupiou. Tratamento idêntico têm de receber todos os que estiverem rezando pela mesma cartilha que ela.

Sempre me perguntei se a mentalidade delinquente de boa parte da população é resultado da corrupção das classes dirigentes ou se, ao contrário, as classes dirigentes são corruptas porque são escolhidas por uma população composta, em boa parte, por delinquentes. Acho que, de certo modo, as duas afirmações são verdadeiras. A desonestidade de uns alimenta a dos outros, e assim por diante, ida e volta, num circuito fechado de bandidagem.

Eu me dou perfeitamente conta de que o que acabo de escrever é terrível. Mas, convenhamos, é o pão nosso de cada dia – como negar? O episódio das Alagoas é apenas um pouco mais sórdido do que o habitual. Mas basta percorrer os jornais nacionais e regionais para encontrar uma coletânea de fatos similares, diariamente, de norte a sul do país.

Como quebrar esse circuito miserável? Confesso que não sei. Se tivesse a receita, embrulhava pra presente e enviava a nosso diligente presidente. Ele, que não busca senão o bem do Brasil, certamente a poria em prática. Não?

Observação
Quem garante que outros funcionários tão dedicados como a anti-heroína desta história não estejam praticando a mesma mutreta? Quem garante que, mesmo quando o êmbolo é empurrado, o paciente não esteja recebendo apenas uma injeção de água? Quem supervisiona o supervisor?

Ministros da Educação

José Horta Manzano

À moda de lá
Em fevereiro de 2013, doutora Annette Schavan, ministra da Educação da Alemanha e amiga chegada da chanceler Angela Merkel, foi acusada de plágio – sua tese de doutorado havia sido fortemente ‘inspirada’ de textos anteriores, com largos trechos idênticos.

Em países sérios, não se brinca com essas coisas. Quando é um cidadão comum que escorrega, a mentira já pega mal; quando a mutreta vem de um ministro de Estado, o mundo desaba. «Com o coração partido», segundo suas próprias palavras, Frau Merkel não hesitou: separou-se na hora da ministra trapaceira.

A espertona nem tentou dar desculpa. De cara no chão, foi chorar sua vergonha longe dos holofotes. Nunca mais se ouvir falar dela.

À moda daqui
Com o pranteado Weintraub fugido do país, o terreno estava aplainado para entrada triunfal do substituto. Afinal, ser melhor do que o anterior é barbada: qualquer um consegue.

Besteiras, todos cometemos. Só que, para os mortais comuns, que vivemos longe do palco, os deslizes podem passar a vida toda esquecidos. Para quem aceita cargo importante, a coisa é diferente: saem todos os jornalistas à cata de falhas do passado. Quem procura, acha. No caso do novo ministro da Justiça, não demorou muito.

Alguns dias atrás, o reitor da Universidade de Rosario (Argentina) veio a público em pessoa para uma ‘retificação’. Doctor Decotelli, nosso novo ministro, havia afirmado, no currículo inserido por ele mesmo na plataforma Lattes, ter obtido o título de doctor em Administração naquela universidade. Negativo – o reitor desautorizou o ministro mentiroso. Ai, que coisa feia!

Dois ou três dias depois, lá vem bomba de novo. Desta vez, o novo ministro é acusado de plágio na dissertação de mestrado que apresentou à FGV em 2008. Como a ministra alemã, doctor Decotelli também é suspeito de haver copiado passagens inteiras, palavra por palavra, de trabalhos anteriores.

Só que aqui não estamos na Alemanha. Brasília não é Berlim. Diferentemente de Frau Merkel, que despachou rapidinho sua ministra de volta a casa, doutor Bolsonaro continua quietinho no seu canto. Nem um pio. Quanto ao ministro, seguiu o padrão dos políticos brasileiros que enfrentam acusações. Longe de se dobrar às evidências, ousou contestar. Nega tudo.

Em lugar de agarrar o touro pelos chifres, mandou o ministério soltar nota. Saiu um daqueles contorcionismos do tipo ”caso” haja alguma ilicitude, terá sido mera distração, “que corrigiremos imediatamente”. O problema será contornado, 12 anos após a entrega da dissertação, com o acréscimo do crédito aos verdadeiros autores dos trechos plagiados. E pronto.

E ainda há quem se pergunte por que raios o Brasil não consegue sair do subdesenvolvimento…

Espírito de comunidade

José Horta Manzano

O cidadão honesto, que se conforma com levar a vida dentro dos limites, sem ceder à tentação de infringir as normas, sente-se pra lá de desconfortável quando constata que outros trapaceiam e transgridem esses limites. É ainda pior quando o resultado da fraude alheia dói no bolso do honesto cidadão. É insuportável.

Uma das características dos povos mais civilizados é a coesão social e o forte sentido de pertencimento a uma comunidade. Quem quer que atente contra o bem comum será alvo da repulsa da sociedade. Todos concordam com Margaret Thatcher: «Não há dinheiro público, mas dinheiro do contribuinte». Fraude contra o erário é ressentida como ataque pessoal.

Um exemplo atual é dado pela detenção de doutor Carlos Ghosn, empresário líbano-franco-brasileiro, manda-chuva do grupo Renault-Nissan-Mitsubishi. Acusado de ter fraudado o fisco do Japão, está há mais de dez dias atrás das grades, à espera de tornar-se oficialmente réu. A evasão fiscal é ressentida como crime contra o conjunto da população. Todos se sentem assaltados pelo doutor. Imperdoável.

Outro exemplo foi dado ontem pelo povo suíço. O eleitorado foi chamado a votar sobre vários assuntos. Entre eles, estava uma proposta de modificação da lei sobre a seguridade social ‒ em modo especial, o seguro-desemprego e o seguro-invalidez.

Por mais honestos que sejam os cidadãos, sempre há os que querem ser mais espertos e que acabam prejudicando os demais. Há gente que recebe salário do seguro-invalidez sem estar realmente inválido. Este blogueiro conheceu, anos atrás, uma senhora que, pelos 50 anos de idade, conseguiu polpuda aposentadoria por invalidez. Acontece que ela, de inválida, não tinha nada. Além de não sofrer de doença alguma, era capaz de sapatear como Fred Astaire e se estremecer como Michael Jackson. Há um bocado de gente nessas condições.

O resultado do voto suíço não dá margem a discussão: 65% dos cidadãos aprovam o reforço da vigilância dos assegurados suspeitos de fraude. A partir de agora, a vigilância por meio de detetives especializados poderá ser determinada. Como em filme de espionagem, dá pra imaginar proliferação de espias montados em galho de árvore, disfarçados de passarinho e munidos de binóculo a observar supostos paralíticos correndo feito criança ou desempregados que não se levantam do sofá pra procurar emprego.

Tirando o lado cômico, o que se depreende é a preocupação da sociedade em defender o bem comum. No Brasil, até poucos anos atrás, estávamos a anos-luz dessa realidade. A Operação Lava a Jato foi importante para fazer despertar no povo brasileiro a consciência de que roubo de dinheiro «público» é assalto ao bolso de cada um. Há que ser otimistas: aos pouquinhos estamos melhorando.

Corrupção & cartel

José Horta Manzano

Saiu estes dias a notícia de que a empreiteira Odebrecht participou, com diversas congêneres, de um cartel visando a fraudar licitações públicas em São Paulo. Há quem ponha a formação de cartel no mesmo balaio que a corrupção. Engano. Cartel e corrupção não são a mesma coisa.

Corrupção, como até as estrelinhas de nossa bandeira já sabem, ocorre quando quem tem poder de decisão aceita receber um benefício em troca de dar decisão favorável a determinados interesses. O valor do benefício varia conforme a importância da negociata, podendo ir de uma carona num jatinho até um depósito de centenas de milhões em conta domiciliada em paraíso fiscal. Incorrem em corrupção tanto quem paga quanto quem recebe.

Formação de cartel joga noutro time. Trata-se de acordo entre fornecedores de um mesmo artigo, visando a manter preços interessantes para ambos. Muito mais comum do que se imagina, o cartel é quase impossível de ser desvendado. Alguns raros são de notoriedade pública. Um deles é a Opep, o clube dos produtores de petróleo. Reúnem-se, combinam preços, acertam volumes de produção, e pronto. O mundo todo fica sabendo e ninguém pode fazer nada.

Na vida de todos os dias, os acertos comerciais podem se dar entre duas padarias vizinhas. Podem também ser fixados entre empreiteiras que cobiçam contratos públicos. As padarias combinarão, por exemplo, o preço dos sanduíches. Uma delas venderá o de mortadela mais caro que o da concorrente. Em compensação, a outra cobrará mais caro pelo misto quente. Assim, no final das contas, os preços se equilibrarão e nenhuma sairá prejudicada. É menos desgastante que uma guerra de preços.

As empreiteiras farão a mesma coisa em patamar mais elevado. Suponhamos que quatro ou cinco empresas formem um cartel. Em sistema de rodízio, cada licitação será vencida por uma delas, uma de cada vez. Antes de apresentar a proposta, todas se reunirão e entrarão em acordo. A que deve vencer dirá qual é seu preço. As demais prepararão proposta com valor superior, de forma a garantir a vitória da empreiteira da vez.

Pode chamar de trapaça, fraude, desonestidade, mas não de corrupção. Não é a mesma coisa. Corrupção, dado que costuma envolver favores materiais, deixa rastro: movimentação bancária, malas de dinheiro, apartamentos tipo caixa-forte, conta em paraíso fiscal. Desmascarar um cartel é muito mais complicado, quase impossível. Pode-se desconfiar, mas sempre será difícil provar.

Redes de supermercado, operadoras de comunicações, bancos, companhias de cartão de crédito, empresas aéreas, empreiteiras são ramos em que entendimento prévio sobre preços são o pão nosso de cada dia. Só vejo duas maneiras de «explodir» o sistema, ambas de difícil realização.

Podem-se esconder minicâmeras e microfones na sede das empresas visadas. Esse sistema à soviética, além de ilegal, é antiquado e pouco eficaz, dado que não se sabe onde os entendimentos serão acertados. Alternativamente, podem-se também infiltrar espiões nas altas esferas das companhias suspeitas. Como o anterior, esse método é caro, pouco prático e de difícil implementação.

Não tem jeito, minha gente. Não só o Brasil, mas o mundo todo tem de se conformar com a cartelização. Até que algum sistema, hoje não inventado, venha a coibir uma prática que surgiu junto com o comércio.

O escândalo do ovo

José Horta Manzano

Você sabia?

Doutor Doria, prefeito da cidade de São Paulo, quando de recente visita à Bahia, serviu de alvo para um lançar de ovos. Se é sempre melhor levar uma ovada que uma pedrada, assim mesmo é desagradável. Moderada ou violenta, toda agressão física ‒ seja a ocupação da mesa diretora do Senado ou uma rajada de metralhadora ‒ é apanágio dos que não têm argumentos. Em linguagem de todos os dias, chamamos isso de apelação. Tivesse o incidente oval acontecido na Europa, o significado teria sido bem mais grave. Vamos começar do começo.

No fim dos anos 80, a empresa química Rhône Poulenc sintetizou uma molécula destinada a ser usada como pesticida. Seu nome técnico é Fipronil. A licença de fabricação e de comercialização pertence hoje ao gigante alemão Basf. Desde quando o produto foi lançado, estudos paralelos suspeitaram que fosse perigoso para a saúde humana. O inseticida, usado amplamente em antiparasitas para animais de companhia e também contra traças, baratas e formigas, tem sido ademais acusado de exterminar abelhas, animalzinho útil e indispensável para a polinização.

Faz alguns anos, em virtude de sérios indícios de nocividade, a União Europeia proibiu o uso do Fipronil em animais e produtos destinados ao consumo humano, entre eles, galináceos e ovos.

Passando por cima da interdição, grandes avícolas da Holanda e da Bélgica, que exportam a maior parte da produção, continuaram tratando galinhas e ovos com o pesticida. Poucos estavam a par até que, esta semana, espocou o escândalo dos ovos contaminados. A mídia não hesitou: estes dias, só se fala nisso. Foi um deus nos acuda. Dado que ovos entram na composição de grande variedade de produtos (massas, pães, bolos, doces, biscoitos, congelados, pratos «à milanesa» entre outros), as autoridades europeias estão sem saber pra que santo apelar. Descobriu-se que até ovos ditos «orgânicos» têm sido tratados com o produto proibido ‒ o cúmulo da trapaça.

Muitos produtos contendo ovos têm sido retirados das prateleiras dos supermercados mas, como se pode imaginar, é praticamente impossível conhecer a origem de cada componente de cada produto. À espera de que a poeira baixe, autoridades sanitárias tentam tranquilizar os consumidores dizendo que, em pequenas quantidades, a molécula não há de fazer mal a ninguém. Acredite quem quiser.

Pra ter certeza, pelo menos por enquanto, o melhor é comprar ovos do galinheiro da vizinha. Espero que o ovo que atingiu o cocuruto do prefeito não tenha sido importado da Holanda. O risco é pequeno, é verdade.

Três trapaças

José Horta Manzano

Na Alemanha
Em 2013, Frau Annette Schavan, então ministra alemã da Educação ‒ e amiga pessoal de Angela Merkel ‒ foi acusada de ter plagiado um bom pedaço de sua tese de Filosofia. A primeira reação veio rápido da própria universidade: seu título de doutora foi cassado. Menos de uma semana depois, não teve mais jeito. A trapaceira, constrangida, entregou sua carta de demissão do cargo. Com o «coração pesado», Frau Merkel aceitou imediatamente. Nunca mais se ouviu falar da doutora picareta.

Frau Annette Schavan, ex-ministra da Educação da Alemanha

Frau Annette Schavan, ex-ministra da Educação da Alemanha

No Uruguai
Semana passada, señor Raúl Sendic, vice-presidente do Uruguai, foi citado pela Justiça pelo delito de usurpação de título. Deverá prestar esclarecimentos sobre uma suspeita de fraude. De fato, alguns meses atrás, apresentou-se ‒ em documentos públicos e em atos oficiais ‒ como diplomado em Genética Humana.

Acontece que sua licenciatura não consta em nenhuma instituição de ensino uruguaia. Señor Sendic alega ter feito seus estudos e obtido o diploma em… Havana, Cuba. O quiproquó já dura desde o mês de fevereiro. Havana continua em silêncio, sem confirmar o que diz o vice-presidente. Eis por que a Justiça perdeu a paciência e intimou o figurão. Agora, ou vai ou racha.

Señor Raúl Sendic, vice-presidente do Uruguai

Señor Raúl Sendic, atual vice-presidente do Uruguai

No Brasil
Já dizia o outro que, a cada quinze anos, o Brasil esquece o que aconteceu nos quinze anos anteriores. De fato, era assim, mas parece que o ritmo de esquecimento se acelera. Alguém se lembra de que dona Dilma, então ministra da Casa Civil do Lula, foi um dia apanhada em flagrante delito de trapaça?

Pois é. Foi em 2009, sete anos atrás. Em currículo publicado na mui séria e conceituada Plataforma Lattes, a então ministra se atribuía créditos de doutoramento aos quais não fazia jus. Pra encurtar o caso, tentava tapear, de forma rasteira, o grande público.

Dilma 15Descoberta e denunciada, classificou o embuste de «equívoco», provável obra de algum assessor arteiro. (Como todo universitário sabe, ninguém acessa o próprio currículo se não tiver a senha.)

Como terminou a história? Em pizza. Uma semana depois, ninguém mais lembrava. Virou-se a página e ficou tudo por isso mesmo. Meses mais tarde, a doutora foi eleita para a presidência, num verdadeiro prêmio à pilantragem.

Quem paga?

José Horta Manzano

«Governo terá que pagar 57 bilhões por pedaladas fiscais.»

Bicicleta 9Foi assim que a Folha de São Paulo deu a notícia. Como sabemos todos, «pedalada» é eufemismo inventado sabe-se lá por quem para evitar palavra que defina, de fato, o que aconteceu. Trapaça, pilantragem, embuste, vigarice, tramoia, trambique dariam o recado mais bem dado. Cada boi tem nome próprio e dispensa alcunha.

Dito isso, garanto-lhes que não é nesses termos que a informação apareceria em países nos quais a população é mais consciente. Quando se menciona «o governo», a grande massa dos brasileiros fica com a impressão de que esse tal de «governo» – pai de nós todos – vai bondosamente enfiar a mão no bolso e tirar de lá 57 bilhões pra resgatar seus pecados.

No Brasil, fica por isso mesmo. Lida a notícia, vira-se a página e passa-se a outro assunto. Em outras plagas, não seria tão simples. Poucos são, entre nossos conterrâneos, os que se dão conta de que a conta será paga por todos.

Chamada da Folha de São Paulo, 4 nov° 2015

Chamada da Folha de São Paulo, 4 nov° 2015

O governo, ao fazer mal seu trabalho, meteu o Estado brasileiro em maus lençóis. O prejuízo é nosso, de todos os brasileiros, do primeiro ao último. Caberá a cada um de nós contribuir para reparar o mal, para tapar o buraco cavado pela vigarice do Planalto.

Uns sentirão no bolso, outros sofrerão na fila do SUS. Há quem receberá formação escolar ainda mais precária que de costume. Serviços públicos funcionarão de forma ainda mais primitiva. O policiamento enfraquecido aumentará a insegurança de todos os cidadãos. Estradas ganharão mais buracos. A carestia vai se agravar. Todos pagarão.

Distraída, a grande imprensa ainda não se deu conta da força das palavras e do impacto das frases. Em vez de anunciar que «o governo» pagará bilhões, melhor seria afirmar:

«Brasileiros pagarão 57 bilhões por trambiques do governo.»

Dilma e a legitimidade

José Horta Manzano

Dilma 1Legítimo é filhote de lei. O adjetivo latino legĭtĭmus é formado por lex/legis (a lei) com acréscimo do mesmo sufixo que se encontra em último, marítimo, íntimo.

Em sentido próprio, designa aquilo que é fruto da lei, amparado nela, justificado por ela. Em sentido figurado, diz-se também do que for genuíno, procedente, lógico, verdadeiro.

Dona Dilma, de visita a Rondônia, aproveitou uma cerimônia de distribuição de bondades para reafirmar, num discurso, sua relutância em reconhecer a rejeição maciça de que é alvo. Afirmou, com todas as letras, que o voto popular confere legitimidade a seu mandato e que, por via de consequência, o cumprirá até o último dia.

Não sofresse de um vício de origem, o raciocínio seria irrepreensível. De fato, o voto popular outorgou a dona Dilma mandato para segurar as rédeas do Executivo por quatro anos. Mas… cuidado! A mão que afaga é a mesma que castiga. A legitimidade que a lei concede ao eleito não é incondicional nem ilimitada. A lógica tem de ser respeitada até o fim.

O consumidor que, enganado pela propaganda, adquire um produto que não corresponde ao que dele se espera tem direito a devolvê-lo e a receber seu dinheiro de volta.

O mesmo vale para governantes. Somente será legítimo o presidente que não se tiver valido de subterfúgios ilícitos que possam ter pervertido o resultado das urnas. Em português claro: irregularidades na campanha eleitoral confiscam a legitimidade da eleição.

Dilma 11Pois é exatamente o caso de dona Dilma. Todos os brasileiros se dão conta agora: a campanha presidencial foi eivada de mentiras e de meias verdades. Incautos, muitos votaram na candidata justamente por acreditarem em suas promessas. Tomaram por ouro as barras de latão que dona Dilma expunha diante de seus olhos crédulos e esperançosos.

Embora desconfie da lisura do processo apuratório, não tenho meios de comprovar trapaça. Um dia, quem sabe, vai-se acabar descobrindo que a contagem dos votos escapou aqui e ali da lhaneza. Por enquanto, não há meios de afirmar. Portanto, sou constrangido a dar de barato.

No entanto, as mentiras que mancharam a campanha são amplamente suficientes para deslegitimar o resultado da eleição. Que dona Dilma não encha a boca pra proclamar a pertinência do mandato que recebeu.

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

Diante da tremenda desaprovação popular de que é alvo, volto a sugerir a nossa presidente a saída que lhe recomendei meses atrás. Para escapar da enrascada sem perder a face, só resta a dona Dilma convocar um plebiscito. Que pergunte aos brasileiros se desejam que ela toque o mandato até o fim. E que respeite a decisão do povo, seja ela qual for. Em seguida, não se falará mais nisso.

Como diz o outro, «quem paga mal paga duas vezes». Portanto, quem se elege mal…

Sem controle… descontrola

José Horta Manzano

Cartão ponto 3Faz muito tempo que não me sento em bancos escolares, daí estar desatualizado. Não sei se ainda se controla a presença dos alunos ou se já liberou geral. No meu tempo, tinha disso não.

Bastava o professor apontar na soleira da porta para todos se levantarem reverentemente, tudo isso no mais absoluto silêncio. A turma só voltava a sentar-se depois de autorizada pelo mestre todo-poderoso.

Cartão ponto 1Em seguida, vinha a chamada. Talvez pra evitar a interminável ladainha de Josés e Marias – os nomes mais comuns à época –, éramos numerados. Ficava mais simples. Lembro-me de um professor, já idoso e de voz fanhosa, que nos divertia muito. Sua chamada ia assim: «Números óón, dóóis, tréés…»

Ausências eram registradas pelo mestre e, em seguida, anotadas na caderneta escolar do discípulo. O livrinho tinha de ser assinado todo mês pelo pai do aluno. Não sei como funciona hoje, mas, faz meio século, pais costumavam ser severos. Ninguém queria levar puxão de orelha por causa de faltas anotadas no boletim. O medo de levar pito calmava toda tentação de cabular.

Fala-se estes dias sobre controle de presença de servidores da Câmara Federal. Como sabemos, os funcionários lotados debaixo daquelas curiosas cúpulas imaginadas por Niemeyer são milhares. Até hoje, o controle era assegurado por uma simples folha de papel. Os apetrechos de ponto biométrico, adquiridos em 2009, foram finalmente postos a funcionar esta semana.

Cartão ponto 2Foi um deus nos acuda. Logo no primeiro dia, filas se formaram na hora de entrada. Tanta gente compareceu, que faltou acomodação para todos. Mesas e cadeiras não foram suficientes. O congestionamento atingiu até o restaurante do pessoal.

A conclusão é evidente: das duas uma. A primeira hipótese é de que a Câmara não esteja apta a receber tantos funcionários. Como nem todos eram assíduos, ninguém se havia ainda dado conta. Se assim for, é urgente encomendar mesas e cadeiras, construir mais algumas cúpulas e – por que não? – instalar um puxadinho ao lado do restaurante.

Cartão ponto 4A segunda hipótese é de que, inflado, o quadro de funcionários da Câmara ultrapasse amplamente o necessário. Boa metade talvez possa ser dispensada sem prejuízo para o serviço. Tendo a privilegiar esta segunda possibilidade.

Fico aqui a matutar. Entre esses que vivem no bem-bom à custa do dinheiro do contribuinte, deve haver muitos que se escandalizam com o comportamento de gente graúda que assalta os cofres de empresa pública. Pensando bem, os dois atos são de mesma natureza – a diferença é unicamente de escala. Ou não?

Cria fama

José Horta Manzano

Você sabia?

«Cria fama e deita-te na cama» – costumava dizer minha avó. Taí uma verdade grande e fácil de constatar. Lá fora, a notoriedade do Brasil nem sempre é aquela que gostaríamos que fosse. O portal regional sueco Helagotland traz uma história edificante.

Lars Wallin, cidadão sueco, atualmente com 51 anos, foi condenado em 2011 a quatro anos de cadeia. Seu crime? Estelionato qualificado e fraude contra empresa de seguros. O indivíduo comprou uma cadeira de rodas e, durante seis anos, fingiu ser cadeirante totalmente inválido. Devia ser excelente ator, pois enganou médicos e especialistas.

O "paralítico" de férias no Egito

O “paralítico” de férias no Egito

Conseguiu, com isso, receber 13,5 mi de coroas (4,7 milhões de reais) em dinheiro e em assistência pessoal 24h por dia. Por seis anos, o homem não precisou se levantar da cadeira para nada. Tinha ajuda para cuidar das compras, da cozinha, da casa, tudo. E ainda recebia boa indenização mensal. Com isso, mandou reformar inteiramente a casa e chegou até a passar férias no Egito.

Como costuma acontecer aos que se abandonam a uma vida de fabulação, o sujeito acreditou que a trapaça jamais seria descoberta. Relaxou. Deixou-se fotografar em situações onde ficava claro que estava longe de ser paralítico.

O que tinha de acontecer aconteceu. Acabou sendo descoberto, denunciado, julgado e condenado. Expedida a sentença, o espertinho chegou até a apresentar-se à cadeia de Borås. A Suécia é país civilizado, onde ainda se costuma confiar na palavra do cidadão. Ficou acertado que o condenado voltaria alguns dias depois para começar a cumprir a pena. Ele foi-se e, desde então, ninguém mais o encontrou.

Incluído na lista da Interpol, foi encontrado… adivinhem onde? Um doce pra quem for esperto. No Brasil, é claro. Apanhado em terras de Pindorama, recebeu o conselho de ser esperto até o fim: entrou com pedido de asilo. Imaginem a situação: um refugiado sueco pedindo asilo ao Brasil! É o mundo de ponta-cabeça.

O "cadeirante" trabalhando em casa

O “cadeirante” trabalhando em casa

As chances de que lhe seja concedida permanência estão longe de ser nulas. Seja como for, que o extraditem ou não, a simples análise do pedido de asilo deve demorar pelo menos um ano.

Pois é, distintos leitores, não é de hoje que nosso pais é visto como refúgio dourado de malfeitores de toda espécie. Tirando algum amalucado – tipo Snowden – ninguém imaginaria buscar abrigo na China ou na Rússia. No imaginário europeu, faz meio milênio que o Brasil é idealizado como paraíso terrestre.

O asilo concedido a bandidos (Ron Biggs, da Inglaterra), ditadores (Alfredo Stroessner, do Paraguai) e assassinos (Cesare Battisti, da Itália) não faz senão reforçar a percepção de que o nosso é um País onde o crime compensa. Talvez seja isso mesmo.

A fama está criada. O Brasil pode continuar dormindo tranquilo em berço esplêndido.

Combinando com os russos

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Fazia tempo que o Sigismeno não aparecia. Eu estava até com saudades. Veio logo me perguntando o que era CPI. Respondi que, pelo que sei, é o nome dado a um comitê de parlamentares reunidos para investigar alguma disfunção no trato da coisa pública.

Ele quis conhecer mais detalhes. Tive de confessar minha ignorância. «Pelo que imagino» ― disse eu ―, «um grupo de deputados ou senadores de elevada reputação e notória honradez é encarregado de descobrir os comos e os porquês de alguma anomalia. Mais, não sei.»

Sigismeno me contou que uma importante revista semanal tinha publicado reportagem sobre um escândalo ligado a uma dessas tais CPIs. Parece que os inquiridos já vão depor sabendo de antemão quais serão as perguntas do comitê.

«Ah, é, Sigismeno?. Mas isso é trapaça» ― retruquei. «Se os que serão interpelados já conhecem as perguntas, podem combinar as respostas para evitar contradições.»

«Pois é» ― acrescentou ele ―, «a coisa é tão primária que a gente sente que está sendo feito de bobo. As comissões são constituídas de parlamentares de diversas siglas. Parte dos componentes gostaria de descobrir certas verdades, enquanto outros prefeririam que essas verdades continuassem encobertas.»

«Isso me parece normal, Sigismeno. Se todos estivessem de acordo, não havia necessidade de CPI. Condenava-se logo e pronto.»

«Não, não, não! A solução não é por aí. Afinal, o tempo dos processos de Stalin acabou!» ― exaltou-se meu amigo. «O problema está em impedir que investigados fiquem a par das perguntas que serão feitas.»

«E qual seria a solução, Sigismeno?»

«Ora, é simples» ― concluiu meu amigo. «Basta estabelecer que a CPI apenas fixa os temas a serem abordados. A formulação das perguntas fica a cargo de cada um dos componentes do comitê. Ninguém fica a par do teor das questões até a hora H, até o momento em que o parlamentar interpela o depoente. O efeito pode até ser cômico.»

«Cômico?» ― perguntei. «Como assim?»

E Segismeno, olhar matreiro: «Ora, meu amigo, a hipótese mais razoável é que os inquiridos já estarão a par das perguntas a serem formuladas por seus amigos políticos, não é?»

«Parece-me plausível, Sigismeno.»

«Pois então. A essas perguntas, as respostas virão imediatas, fluentes, concordantes, preparadas, sem falhas. Já as perguntas dos adversários vão deixar os investigados em saia justa. As respostas visão gaguejadas, enroladas, atrapalhadas. Haverá contradições. Vai ficar evidente que uma parte da explicação foi alinhavada com antecedência. Ao fim e ao cabo, a opinião pública vai saber descartar o joio e guardar o trigo.»

Pois é. Sigismeno não é muito culto, mas costuma mostrar que tem bom senso.

Sorry, mano

José Horta Manzano

«Computador do Planalto pôs elogios a Dilma em página da Wikipédia» ― é o título de matéria da Folha de São Paulo deste 28 de julho.

ComputadorOs autores do artigo vão mais longe, descem aos tim-tins e dão nome aos bois. Informam que 11 (onze!) computadores do governo federal, em irrefutável desvio de suas funções republicanas, dedicaram-se a eliminar referências desairosas a membros da nomenklatura. No lugar de menções desagradáveis, os computadores inseriram louvação.

A blindagem tem a presidente por objeto principal, mas não só. Um certo senhor Padilha, candidato a governar o maior estado da federação, também teve seu currículo, digamos, adocicado. A história não faz alusão a outros beneficiários da trapaça, mas o bom senso impele a imaginar que os dois não sejam os únicos.

Curioso é o artigo relatar que «computadores» do Planalto tenham feito isto ou aquilo, como se máquinas decidissem por si o que convém e o que não convém a determinados figurões.

Dona Dilma disse uma vez que, atrás de cada criança, havia sempre uma figura oculta ― um cachorro, no imaginário presidencial. Pois eu digo, sem demagogia, que, atrás de um computador, há sempre ser(es) humano(s) que o manipulam. É incontestável.

Computador 2Portanto, digamos as coisas como são. Uma penca de funcionários ― pagos com nosso dinheiro ― estão incumbidos de reescrever a história, apagando menções embaraçosas e substituindo-as por referências enaltecedoras. Para chegar a seus fins, utilizam computadores pagos com nosso dinheiro, abrigados em palácio custeado com nossos impostos. Até a conta da eletricidade que faz funcionar as simpáticas máquinas de dourar pílula é paga com dinheiro do nosso bolso.

E agora, que a falcatrua foi desvendada, fica tudo por isso mesmo? Ministério Público, OAB, Congresso, onde estais que não respondeis?

Tremei, porteiros! Tremei, moças do café! Tremei, contínuos, bedéis e faxineiros! Se a notícia chegar ao jornal televisivo, não vai ter jeito: um de vocês terá de pagar pelo malfeito. Sorry, mano.

Vai ter copa

José Horta Manzano

Anda mal das pernas a imagem de seriedade das instâncias dirigentes do futebol mundial. João Havelange, que foi presidente da Fifa durante um quarto de século, foi discretamente despachado ao ostracismo já faz alguns anos. Um nome a esquecer.

Ricardo Teixeira, que dirigiu a Confederação Brasileira de Futebol durante 23 anos ― por sinal, aparentado com o figurão nomeado mais acima ― foi corrido de seu pedestal a toque de caixa sob acusação de roubo e corrupção da pesada.

2010: Blatter e um figurão catari

2010: Blatter e um figurão catari

Sepp Blatter, atual número um da Fifa, é olhado com desconfiança, embora nenhum caso escabroso tenha vindo a público. Por enquanto.

Talvez no intuito estratégico de adiantar-se às más línguas, Herr Blatter andou declarando, faz algumas semanas, que a designação do Emirado do Catar como sede do Campeonato Mundial de Futebol de 2022 foi um erro.

Erro? Em que sentido? Se a escolha daquela minúscula tripinha de areia desértica foi decidida pelo voto dos delegados de todos os países-membros, onde está o erro? Será que, como se costuma dizer dos eleitores brasileiros, os membros da Fifa também não sabem votar? Coisa mais esquisita.

Ao se dar conta de que seu pronunciamento havia caído mal, Herr Blatter foi mais além e desvelou o fundo de seu pensamento: o voto havia sido um jogo de cartas marcadas. Os donos do Catar ― sim, aqueles miniestados têm dono! ― haviam cooptado delegados mais dóceis e melado a decisão. Pegou mal pra burro.

A denúncia de malfeitos vários envolvendo nossa «Copa das copas» ― superfaturamento, desorganização, atraso, bagunça, descaso, roubo, desleixo, trapaça ― não podem ser atribuídos automaticamente à Fifa. No entanto, é inegável que a instância máxima do futebol mundial sai respingada. No mínimo, aparece na foto como conivente, se não como cúmplice.

A série de acusações continua. O episódio mais recente nos vem pela imprensa britânica deste domingo 1° de junho. Entre outros, o Sunday Times, o Guardian e o Independent trazem artigos acachapantes sobre denúncias de propinas pagas pelo Catar com o objetivo de vencer a disputa pela atribuição da Copa de 2022.

2010: Atribuição ao Catar do direito de sediar a Copa 2022

2010: Atribuição ao Catar do direito de sediar a Copa 2022

Havelange, Teixeira, Blatter e a «Copa das copas» já causaram estrago considerável à reputação da Fifa. A instituição não sobreviveria à avalanche de denúncias que se anuncia. Daqui até a Copa do Catar ainda faltam 8 anos! O mais provável ― e o mais acertado ― é que a escolha do emirado seja impugnada e que se vote de novo. Não vejo outra maneira de evitar o desaparecimento da Fifa. Se o presidente da entidade declarou que um erro foi cometido, a única saída é corrigi-lo enquanto é tempo.

Quanto à nossa «Copa das copas», infelizmente é tarde demais para enjeitá-la. Sinto muito pelos black blocs, mas… vai ter copa. Sim, senhor.

Uns de menos, outros de mais

José Horta Manzano

Os brasileiros de boa vontade se comoveram com a triste sorte dos médicos cubanos arrolados no programa Mais Médicos ― aquele que visa a aumentar o número de profissionais sem lhes garantir o apoio de infraestrutura condizente.

Os infelizes caribenhos são tratados como raça à parte, tratamento que combina com o regime de apartheid, de divisão do povo em estratos, que nossas autoridades vêm tentando nos impingir. A distorção entre a remuneração dos médicos comuns e a dos cubanos é chocante. Enquanto os comuns recebem remuneração decente, os cubanos, encurralados em regime de pão e água, têm de resignar-se a sofrer confisco de 80% a 90% do salário.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Mas toda moeda tem duas faces. De um lado, estão os cubanos, desapossados, por seu próprio governo, do fruto de trabalho suado. No outro extremo, estão alguns espertinhos que descobriram caminho pouco ortodoxo para engordar seus ganhos. Explico.

A província argentina de Misiones, cuja capital é Posadas, faz fronteira com o Paraná e com Santa Catarina. O lado brasileiro é mais densamente povoado que a província vizinha. Uma vez anunciado, o Mais Médicos despertou interesse em bom número de profissionais argentinos. Muitos se apresentaram e estão hoje empregados no Brasil, onde recebem os 10 mil reais como todos os outros ― à exceção dos azarados cubanos.

Até aí, nada de excepcional. O caldo começa a engrossar agora. Maurice Closs, governador da Província de Misiones, acaba de vir a público denunciar uma fraude perpetrada por uma vintena de médicos argentinos.Mais médicos

São profissionais que, contratados pelo Brasil no bojo do Mais Médicos, encontraram um jeito original de continuar a receber salário de médico contratado pela Saúde Pública argentina. Conseguiram falso atestado médico e pediram a seu governo licença para tratamento de saúde. Conseguiram. Além do salário brasileiro, recebem, sem trabalhar, mais o equivalente a 5 mil reais.

Das duas dezenas de profissionais argentinos contratados pelo Brasil naquela região, dezesseis estão-se valendo do mesmo estratagema. Os problemas de saúde alegados são, em maioria, de ordem psíquica. A constatação de que, numa pequena província, tantos médicos estavam com problemas mentais despertou a curiosidade das autoridades. E a tramoia foi descoberta.

O ministro argentino da Saúde Pública, indignado com essa mostra de desonestidade e de falta de ética, promete tomar providências.

Frase do dia — 61

«Na famosa Reserva Extrativista Chico Mendes, a principal atividade atualmente não é o extrativismo, mas a pecuária de corte, de fato proibida pelas normas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Nem por isso, no entanto, muitos deixam de receber a Bolsa Verde.

Aliás, por essa razão, em outra reserva, no Alto Juruá, o líder da comunidade afirma: “O que mais se produz aqui é menino, pois é o que rende mais” – em referência ao recebimento da Bolsa Família e de outros benefícios, como a bolsa que a mãe poderá pleitear do Programa Brasil Carinhoso.»

Zander Navarro, sociólogo. In Estadão, 25 dez° 2013.

Vamos ajudar a Fifa

José Horta Manzano

Costuma-se dizer que o exemplo vem de cima. Parece-me uma evidência, de baixo é que não poderia vir. Outro dito popular ― adoro ditados e provérbios ― afirma que quem semeia vento colhe tempestade. Em geral, é o que acontece.

Há corrupção no futebol em vários países! Que surpresa! O correspondente do Estadão deu a inacreditável informação, publicada na edição online de 17 de janeiro. Na mesma linha, seguiram o Globo, Terra e outros sites noticiosos.

Todos relatam que a Fifa, um dos organismos mais endinheirados do planeta, precisa de ajuda para coibir a propagação da corrupção. É mais ou menos como se uma raposa, presa num galinheiro, pedisse ajuda às galinhas para escapar.

Ora, pois. Não é segredo para ninguém que a Fifa, além de ser dona de cofres abarrotados, é composta de elementos altamente suspeitos de corrupção. Não falo de ladrões de galinhas, mas de raposas, de criminosos de alto coturno. Daqueles cujo balcão de negócios faria empalidecer de inveja certos congressistas tupiniquins. Dos mais graduados!Corrupção

Pouca gente arriscaria a pele para assaltar a pobre vendinha de seu Zé. Já onde há dinheiro, a tentação é, evidentemente, maior. Para eliminar ― ou, pelo menos, reduzir ― a corrupção no «esporte das multidões», a retidão tem de começar no topo. O exemplo vem de cima. Uma associação (mais que) suspeita de pesados malfeitos não tem moral para exigir de seus afiliados aquilo que não exige de si própria.

Mas que se aquietem todos, nada de pânico! A corrupção, os árbitros vendidos, as trapaças em todos os escalões do futebol ainda têm dias risonhos à frente. Estamos ainda em plena semeadura de vento. As borrascas de verdade só virão mais tarde.

Falando nisso, ainda não consegui entender por que raios o Catar (ô nome esquisito, prefiro Qatar, mais exótico) foi designado para acolher a Copa do Mundo de 2022. Se o Japão e a Coreia, poucos anos atrás, tiveram de unir forças para abrigar uma evento de tal magnitude, como é possível que alguns quilômetros quadrados de deserto possam montar a tenda, receber o circo e garantir o espetáculo? Tudo indica que, nessa história, os palhaços somos nós.

Onde tem fumaça, tem fogo. Tá ruço.

As trapaças de lá e as de cá

José Horta Manzano

Tudo é relativo, costuma-se dizer. É verdade.

Um resto de pão seco, daqueles que se costuma descartar, pode parecer um banquete para alguém que esteja sem comer há vários dias.

A declaração de um figurão que brada «eu não sabia de nada» pode parecer fichinha perto da de um outro que despeja uma ladainha de mentiras, brotadas diretamente de sua imaginação.

Um tempo frio e ventoso de 10 graus, ressentido como clima polar por quem está acostumado a viver em terras tropicais, será percebido por um siberiano como brisa de primavera.

Poderia continuar a citar exemplos. A lista poderia prolongar-se a ponto de cansar meus caros leitores. Não vou fazer isso. Quero citar só mais um caso. Depois dele, dou-lhes uma pausa para refletir.

Faz uns 10 dias, a ministra da Educação da Alemanha, doutora Annette Schavan, amiga chegada da primeira-ministra Merkel, foi acusada de plágio. Alguém descobriu que sua tese de doutorado havia sido fortemente inspirada ― para não dizer copiada ― de textos anteriores.Diploma

Em civilizações mais evoluídas, não se brinca com esse tipo de coisa. Principalmente em países germânicos. «Com o coração partido», segundo suas próprias palavras, Frau Angela Merkel não hesitou: separou-se na hora da ministra trapaceira. Caso alguém tenha saltado esse capítulo, vale a pena ver de novo. Aqui.

Lembrei-me de um caso semelhante, ocorrido faz alguns anos em terra tupiniquim. Em julho de 2009, quando a atual presidente ainda era ministra, mas já bastante chegada ao então presidente, exatamente como sua confrade alemã, mentiras ― perdão! ― inverdades foram flagradas em seu currículo oficial, publicado aos quatro ventos pelo sistema Lattes.

Ok, ok, os casos não são idênticos. Enquanto a alemã apresentou tese plagiada, a brasileira, segundo se comprovou, não apresentou tese nenhuma. A seu favor, pode-se dizer que não copiou nada de ninguém.

A maior diferença, no entanto, foi o tratamento dado a cada caso. Frau Schavan foi demitida no ato, o que resultou em seu banimento ad vitam æternam da política e da vida acadêmica alemã. Será para sempre lembrada como fraudadora.

Nossa esperta ministra recebeu tratamento diferente. Declarou, sem corar, que tudo não passava de um erro de assessores ― sempre os outros! O currículo foi emendado, e pronto: ficou tudo por isso mesmo.

O resto, todos conhecemos. Guindada pelo aparelho mercadológico que a sustentava, foi ungida candidata ao posto maior do Executivo e… foi eleita. Currículo fraudado? Ora, que bobagem, ninguém se lembra mais disso.

Se você também se esqueceu, talvez goste de dar uma vista d’olhos por aqui.

Pois é, caros amigos. Tudo é relativo. Até a noção de honra.