Ponto eletrônico

José Horta Manzano

Acompanhei a longa entrevista que doutor Bebianno (Bibbiano?) concedeu, dia 19 de fevereiro, a uma emissora de rádio. O (então já ex-) ministro deu sua versão dos contactos que manteve, nos últimos dias, com doutor Bolsonaro e primeiro-filho. Essa parte não é de despertar paixões. Para mim, tanto faz saber quem disse ou quem não disse, quem mentiu ou quem deixou de mentir, quem devia ou não devia ter dito o que disse ou deixou de dizer. O que me inquieta é o quadro inquietante revelado por esse quiproquó.

Cada governo tem sua personalidade, sua marca de fábrica, seu jeito próprio de ser e de agir. Por razões que escapam a todo controle, a instalação da atual presidência não pôde se fazer nos dias seguintes à tomada de posse, como é costume. A preparação da cirurgia do presidente e o período de hospitalização criaram um vácuo que somente agora começa a ser preenchido. Finalmente, o piloto volta à cabine. O avião, desgovernado, vai entrar no prumo e no rumo.

No prumo e no rumo? Nada é tão incerto. Vamos primeiro esquecer essas futricas de adolescente que, embora não cheguem a derrubar governo, tampouco constroem governança. Vamos agora espremer a entrevista de doutor Bebianno (Bibbiano?) pra ver o que sai. O suco não é nada apetitoso. Ao fim e ao cabo, as conversas entre esses membros do alto escalão revelam que nosso presidente dá preocupantes sinais de fraqueza.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Desde que sofreu o atentado, doutor Bolsonaro praticamente só se comunicou através de redes sociais, com tuitadas curtas, frases lacônicas, slogans mambembes. Quando dá declaração oficial ‒ ocasião em que é obrigado a fazê-lo de pé, diante de um microfone, ao vivo ‒ usa e abusa do ponto eletrônico. Fica sempre a impressão de que ele está apenas servindo de canal para a voz de algum escritor fantasma que ninguém sabe direito quem é.

O presidente nunca escondeu sua admiração por Donald Trump. Dado que os dotes oratórios de nosso chefe de Estado são precários, compreende-se que ele dê preferência a comunicar-se pelas redes. Por um lado, imita o presidente americano; por outro, elude sua carência oratória. Doutor Bolsonaro se esquece de que quem imita tem de ir até o fim. Mr. Trump leva a brutalidade até o fim. Tuíta com violência, discursa com veemência e, no final, age com estrondo. Doutor Bolsonaro, por seu lado, limita-se a tuitar, esquivando-se na hora de agir, vergado ao peso das múltiplas influências de que é vítima, incapaz de decidir por si.

Fica a desconfortável impressão de um dirigente bem-intencionado mas fraco, por demais permeável a influências. Posso estar enganado. Aliás, torço pra isso, mas algo me diz que meu diagnóstico não está tão longe da realidade. Assim sendo, resta esperar que doutor Bolsonaro escolha dar ouvidos às influências mais benéficas para o país. O futuro dirá. Por enquanto, é bom ir preparando novena pra São Benedito.

Sem controle… descontrola

José Horta Manzano

Cartão ponto 3Faz muito tempo que não me sento em bancos escolares, daí estar desatualizado. Não sei se ainda se controla a presença dos alunos ou se já liberou geral. No meu tempo, tinha disso não.

Bastava o professor apontar na soleira da porta para todos se levantarem reverentemente, tudo isso no mais absoluto silêncio. A turma só voltava a sentar-se depois de autorizada pelo mestre todo-poderoso.

Cartão ponto 1Em seguida, vinha a chamada. Talvez pra evitar a interminável ladainha de Josés e Marias – os nomes mais comuns à época –, éramos numerados. Ficava mais simples. Lembro-me de um professor, já idoso e de voz fanhosa, que nos divertia muito. Sua chamada ia assim: «Números óón, dóóis, tréés…»

Ausências eram registradas pelo mestre e, em seguida, anotadas na caderneta escolar do discípulo. O livrinho tinha de ser assinado todo mês pelo pai do aluno. Não sei como funciona hoje, mas, faz meio século, pais costumavam ser severos. Ninguém queria levar puxão de orelha por causa de faltas anotadas no boletim. O medo de levar pito calmava toda tentação de cabular.

Fala-se estes dias sobre controle de presença de servidores da Câmara Federal. Como sabemos, os funcionários lotados debaixo daquelas curiosas cúpulas imaginadas por Niemeyer são milhares. Até hoje, o controle era assegurado por uma simples folha de papel. Os apetrechos de ponto biométrico, adquiridos em 2009, foram finalmente postos a funcionar esta semana.

Cartão ponto 2Foi um deus nos acuda. Logo no primeiro dia, filas se formaram na hora de entrada. Tanta gente compareceu, que faltou acomodação para todos. Mesas e cadeiras não foram suficientes. O congestionamento atingiu até o restaurante do pessoal.

A conclusão é evidente: das duas uma. A primeira hipótese é de que a Câmara não esteja apta a receber tantos funcionários. Como nem todos eram assíduos, ninguém se havia ainda dado conta. Se assim for, é urgente encomendar mesas e cadeiras, construir mais algumas cúpulas e – por que não? – instalar um puxadinho ao lado do restaurante.

Cartão ponto 4A segunda hipótese é de que, inflado, o quadro de funcionários da Câmara ultrapasse amplamente o necessário. Boa metade talvez possa ser dispensada sem prejuízo para o serviço. Tendo a privilegiar esta segunda possibilidade.

Fico aqui a matutar. Entre esses que vivem no bem-bom à custa do dinheiro do contribuinte, deve haver muitos que se escandalizam com o comportamento de gente graúda que assalta os cofres de empresa pública. Pensando bem, os dois atos são de mesma natureza – a diferença é unicamente de escala. Ou não?