Tratamento desigual

José Horta Manzano

Não tenho acompanhado de perto os escândalos políticos do Brasil. Tudo o que é demais cansa. Além disso, me dá muita pena ver o mal que essa balbúrdia está trazendo ao país, um mal duradouro de que padecerão nossos netos. Justo quando parecia que estávamos pra atingir a borda e nos safar do naufrágio, catapimba! Estamos de novo no fundo do poço. E, desta vez, mais desesperançados que nunca, na quase certeza de que lá permaneceremos até o fim de nossos dias.

Chamada Estadão, 6 jun 2017

Enquanto a caravana da história passa, continuamos discutindo miudezas. Um juiz da corte suprema puxa o tapete pra fazer outro escorregar. O outro revida. Num jardim da infância, certos caprichos são toleráveis ‒ na alta magistratura, não. Corruptos, corruptores, ladrões e rapinadores se fazem defender em tribunal por batalhões de penalistas retribuídos regiamente com nosso dinheiro.

Depoimentos filmados são distribuídos ao grande público, exatamente como se lança miolo de pão a pombas famintas. Não tenho nada contra o fato de serem registrados e filmados. Já o fato de pôr som e imagem à disposição da população, como se cada interrogatório fosse capítulo de trágica e interminável novela, não me agrada nada. Pode até ser legal, mas não contribui para a serenidade exigida pelo exercício da justiça. Fica a impressão de que o intuito é justamente esse: tumultuar os espíritos.

Chamada Estadão, 6 jun 2017

Enquanto peixinhos são encarcerados e condenados a vinte, trinta, quarenta anos de cadeia, peixões são agraciados com liberdade total. É insuportável o tratamento dado àquele senhor de prenome simplório e sobrenome pio, um dos homens mais ricos do país. Falo daquele que, na moita, gravou uns quantos personagens graúdos e, em troca de absolvição, entregou os cúmplices e se mandou para Nova York sob as bênçãos das autoridades judiciárias.

Não tenho especial simpatia para com senhor Temer, presidente em exercício. Nem especial antipatia para com o novo-rico de nome simplório, exceto por ter ele praticado a traição, um crime que abomino. Assim mesmo, as duas notícias que li hoje me impressionam. Por um lado, a Justiça dá ao presidente 24 horas para responder a 82 perguntas no âmbito da investigação de que é objeto. Por outro, a mesma Justiça dá à empresa do rapaz que está passeando nos EUA 90 dias para apresentar a «lista de propinas». O prazo é noventa vezes mais longo!

Quero crer que tudo esteja dentro da legalidade. Mas, convenhamos, há uma flagrante disparidade de tratamento. Trabalhando oito horas seguidas, supondo que não tenha nada mais a fazer, senhor Temer terá de responder por escrito a dez perguntas por hora, seis minutos para cada resposta. Por que tanta benevolência para com o rapaz de Nova York? Imaginando que as propinas não tenham sido dadas ao acaso, com o dinheiro que o bom moço tinha na carteira, a lista de montantes e de beneficiários já deve estar pronta há anos.

Como pôs Shakespeare na boca do personagem Marcellus da peça Hamlet, «Something is rotten in the state of Denmark» ‒ algo está podre no Reino da Dinamarca.

Observação
Na época em que a peça foi escrita, por volta de 1600, não existia o Reino do Brasil. Se existisse, talvez o dramaturgo inglês tivesse situado o enredo em terras de Santa Cruz.

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