No Sergipe?

José Horta Manzano

O nome de alguns estados brasileiros deve ser precedido por artigo, mas Sergipe, certamente, não é membro desse clube.

Por um lado, temos os que pedem artigo:
o Amazonas, o Rio Grande do Sul, o Ceará, o Acre. E diversos outros.

Por outro, há o clube dos que rejeitam artigo:
São Paulo, Santa Catarina, Pernambuco, Rondônia, etc. E, naturalmente, Sergipe.

Que ninguém jamais escreva o Sergipe” como na chamada do jornal. Nem por decreto do papa. Pega mal.

Memento mori

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que se aprendia latim na escola. Apesar de a língua dos romanos ter me provocado muita dor de cabeça e trazido muita nota baixa, guardei certa simpatia por ela. Volta e meia, quando dá, enxerto alguma citação, alguma máxima latina. Os romanos podiam ter seus defeitos, mas tinham notável bom senso.

Memento mori – é o título de um artigo que o Correio Braziliense publicou no caderno Opinião faz dois dias. O autor é Otávio do Rêgo Barros, general de divisão e doutor em ciências militares, aquele senhor sério e comedido que foi porta-voz de Bolsonaro do primeiro dia de governo até um mês atrás. Dizem as más línguas que ele foi expelido do cargo por ter caído em desgraça junto a um dos bolsonarinhos, aquele mais desequilibrado e intriguento.

O artigo do general já começa com citação latina, coisa fina. O texto é o reflexo do jeitão do autor: claro, pausado, bem explicado, ponderado, sóbrio. E erudito. Ele cita batalhas da segunda Guerra Púnica, travadas entre tropas romanas e cartaginesas 22 séculos atrás, embates em que entra em cena Aníbal Barca, aquele que atravessou os Alpes montado em elefantes. Me lembrou as aulas de dona Leocádia – quanto tempo!

Mas vamos deixar os elefantes e voltar ao general. Seu artigo, elegante, não cita nomes. Mas descreve claramente o comportamento do antigo chefe, Bolsonaro. O título, Memento mori (=Lembra-te que és mortal), refere-se a um costume romano. Quando voltavam de uma batalha, cobertos de glória, os generais faziam-se cercar de escravos que lhes sussurravam ao pé do ouvido essa frase o tempo todo. Era para não caírem na tentação de se deixarem embevecer por aplausos e adulações, que a glória é passageira.

Batalha de Zama
Segunda Guerra Púnica, 202 a.C.

No memorável artigo, o general Rêgo Barros faz um convite à reflexão. Depois de incentivar os outros Poderes da República e a imprensa a manterem firmeza e não recuarem diante de pressões, conclama a população a exercer seu papel de «árbitro supremo da atividade política».

O general não diz isto, mas, num país em que parlamentares são corruptos e organizações de classe – se é que existem – estão anestesiadas há duas décadas, o único canal aberto para o povo mostrar descontentamento é a rua. Manifestações como as de 2013, que acabaram por derrubar Dilma e o PT, são a única porta de saída deste pesadelo. Como conclamar o povo? Não sei. Vocês, que vivem no Brasil e são peritos em feicibúquis, tuítch e zap-zap, sabem melhor que eu. Minha parte, estou fazendo aqui.

Não sei como é que Bolsonaro foi escolher Rêgo Barros para o cargo de porta-voz. O general não combinava com a súcia que gravita em torno do Planalto. Sem condições: não podia dar certo.

Se o distinto leitor tiver 5 minutos, vale a pena ler o artigo do ex-porta-voz. Não é longo. Está disponível no site do Correio Braziliense. Aqui.

Estagiário consegue efetivação

José Horta Manzano

Num curto mas bem estruturado artigo publicado hoje, a britânica The Economist insinua, em 750 palavras, que o mandato de Jair Bolsonaro pode ser curto. O escrito se atém ao essencial, podendo ser entendido até por um turista extraterrestre recém-chegado de Marte. O título é sugestivo: Jair Bolsonaro, Brazil’s apprentice president ‒ Jair Bolsonaro, o presidente aprendiz do Brasil”.

À vista do caminhão de trapalhadas que vêm sendo patrocinadas pela família Bolsonaro e por seu entourage, a profecia parece realizável. De fato, a persistirem os desencontros, as ofensas gratuitas, os escorregões na pista do bom senso e as rajadas de ‘fogo amigo’, o governo que está aí não vai longe. As portas estão abertas pra um desenlace abrupto.

No entanto, embora legalmente possível ‒ com um impeachment, por exemplo ‒ um abreviamento do mandato de doutor Bolsonaro está longe de ser provável. Se estivesse diante de um tapetão verde, eu apostaria minhas fichas na permanência do presidente. A não ser que motivos de acidente ou saúde não lhe permitam ficar, evidentemente.

Crédito: The Economist

Por um lado, acredito que, aos trancos e barrancos, doutor Bolsonaro & família vão acabar aprendendo que a sacola de votos que receberam não lhes dá carta branca pra segurar o país na rédea curta. Podem muito, mas não podem tudo. E que se cuidem, porque se um dos superministros (Guedes ou Moro) pedir as contas, o buraco será bem maior.

Por outro lado, não interessa a muita gente que o presidente seja destituído. Apesar de trapalhão, já mostrou ser inofensivo. Suas trapalhadas não atrapalham (com o perdão do eco) os interesses dos que realmente mandam no país. Que meninos se vistam de azul ou de amarelo, não tem importância. Que a embaixada do Brasil em Israel esteja em Tel-Aviv ou Jerusalém, pouca diferença faz. Que o 31 de março seja festejado nas casernas, o andamento da nação não estará perturbado.

Por pior que seja, o presidente ainda está a anos-luz de cometer as barbaridades dos antecessores. Com um país mais vigilante que nunca, hoje em dia seria difícil depenar a Petrobrás ou o erário. Grandes empresários, grandes produtores rurais e grandes banqueiros sabem disso. O mundo político e a intelligentsia também.

Tem mais. Na hipótese de o presidente ser apeado, o substituto seria doutor Mourão, homem bem mais inteligente e mais difícil de manipular. Portanto, um elemento perigoso. Ninguém sabe que caminho tomaria o país com o general na boleia. Não tanto por ser militar, mas por ter demonstrado ter ideias próprias ‒ um risco que ninguém quer correr.

Que durmam todos em paz. A menos que seja ceifado por um acontecimento fora do controle, doutor Bolsonaro chegará ao fim do mandato. E, apesar de ter declarado ser contra a reeleição, periga se desdizer, se recandidatar, e ganhar no voto mais quatro anos no Planalto. Quem é que nunca mudou de ideia? Assim é a vida.

Salto para trás

José Horta Manzano

Atribuem ao grande Antônio Carlos Jobim a frase «O Brasil não é para principiantes». Que seja dele ou não, a ‘boutade’ exprime uma grande verdade. O distinto leitor que, há tantos anos, tem visto o país descendo a ladeira, não não faz parte dos «principiantes» aos quais Tom Jobim se referia. Assim sendo, conhece os comos e os porquês do descalabro atual.

No entanto, quem não vive a realidade nacional no dia a dia recebe informações fragmentárias. Certas notícias chegam, outras não. Quem vive em Terras de Santa Cruz conhece nome, sobrenome e, muitas vezes, ‘codinome’ de todas as figurinhas carimbadas que circulam pelos corredores do Planalto, do Congresso e do STF. Para quem vive fora, é diferente.

jornal-6O respeitado jornal «Le Monde», quotidiano francês de referência, cujas análises costumavam ser respeitadas como as do New York Times, começa a dar mostra de ter abandonado a isenção, sua marca registrada. Quanto trata dos problemas brasileiros, sabe-se lá por que, tem mostrado visão sistematicamente capenga. Insiste em apresentar uma versão parcial dos fatos, dando a seus leitores uma ideia distorcida de nossa realidade.

A edição datada de 8 dez° 2016 traz um surpreendente artigo que ilustra o que acabo de dizer. Começa pelo título: «Brésil: le grand bond en arrière» ‒ «Brasil: o grande salto para trás». Para que fique ainda mais claro, o subtítulo insiste que «desde a destituição de Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer conduz uma política que combina conservadorismo, autoritarismo e corrupção». Pronto, o tom está dado.

Transcrevo abaixo os primeiros parágrafos do artigo. Vai no original, em seguida dou a tradução.

Interligne 18c

«Le mardi 29 novembre, le Sénat brésilien a voté en faveur d’un amendement constitutionnel (PEC-55) plafonnant pour 20 ans les dépenses publiques. Alors que les sénateurs votaient, une manifestation d’étudiants se déroulant sur l’esplanade du Congrès était violemment réprimée par la police militaire(1). Au même moment, les députés adoptaient une série de dix mesures anti-corruption, vidées de leur substance et perçues comme une manière de se protéger des investigations liées aux dédoublements de l’Affaire Petrobras et de contre-attaquer un pouvoir judiciaire prompt à théâtraliser son action, à outrepasser ses prérogatives et à bousculer l’équilibre entre les pouvoirs.

Une semaine plus tard, le Président du Sénat, Renan Calheiros (du Parti du mouvement démocratique brésilien, auquel appartient le président non-élu(2) Michel Temer) est mis en accusation et écarté de ses fonctions par un membre de la Cour suprême (STF). La décision «monocratique» est refusée par le comité directeur du Sénat. Cet ensemble de faits en dit long sur l’état de la démocratie au Brésil, ébranlée depuis le coup d’État parlementaire maquillé en processus d’impeachment.»

Chamada do jornal Le Monde, 8 dez° 2016

Chamada do jornal Le Monde, 8 dez° 2016

«Terça-feira 29 de nov°, o Senado brasileiro votou emenda constitucional limitando, por 20 anos, as despesas públicas. Enquanto os senadores votavam, uma manifestação de «estudantes» (as aspas são minhas) na esplanada do Congresso foi violentamente reprimida pela PM(1). No mesmo momento, os deputados adotavam um conjunto de dez medidas anticorrupção ‒ desfiguradas ‒ destinadas a protegê-los de investigações do escândalo Petrobrás e a contra-atacar um Judiciário prestes a ultrapassar teatralmente suas prerrogativas e a desestabilizar o equilíbrio entre os Poderes.

Uma semana depois, o presidente do Senado, Renan Calheiros (do PMDB, partido do presidente não-eleito(2) Michel Temer) torna-se réu e é afastado de suas funções por um membro do STF. A decisão «monocrática» é rejeitada pela mesa diretora do Senado. Esse conjunto de fatos traduz o estado da democracia no Brasil, abalada desde o golpe de Estado parlamentar disfarçado de processo de impeachment

Interligne 18c

É frustrante ver órgão respeitado da mídia internacional publicando esse tipo de análise lacunar e tendenciosa. Atravessamos um momento difícil, sim, mas ainda há esperança. Esse tipo de escrito, que reduz o Brasil a uma republiqueta de bananas, nos é altamente prejudicial. À leitura de artigos como esse, grandes investidores não se sentem encorajados a arriscar estabelecer-se num país tão primitivo.

Ninguém ignora que nosso país está longe de ser perfeito, mas está na hora de o governo federal tomar iniciativas enérgicas para dizer ao mundo que, apesar dos pesares, muito está sendo feito para sair do buraco em que nos metemos.

by Paul Colin (1892-1985), artista francês

by Paul Colin (1892-1985), artista francês

(1) Ao sublinhar que Michel Temer é presidente “não-eleito“,  o artigo desinforma. Dilma Rousseff e Michel Temer formavam uma chapa eleitoral. Os 54 milhões de votos foram dados aos dois, não somente a ela. Houve tempos, no Brasil, em que se votava separadamente para presidente e para vice-presidente. Faz tempo que não é mais assim. Todos os que sufragaram a doutora também votaram no doutor.

(2) PM (= Polícia Militar) é expressão corriqueira no Brasil. Contrapõe-se a Polícia Civil. Em francês, não é assim. A informação que o artigo dá aos franceses é maliciosa. A Polícia Militar brasileira deve ser traduzida simplesmente por Police ou Gendarmerie. À Polícia Civil brasileira, corresponde a Police Judiciaire francesa.

Dado que, na França, a expressão «Police militaire» não designa nenhum corpo policial corriqueiro, traz à imagem o exército. No texto, o autor dramatizou voluntariamente a situação. A ouvidos franceses, soa como se o exército tivesse sido chamado para reprimir inocentes «estudantes». Com tanques e brucutus.