Alinhamento automático

José Horta Manzano

Em novembro passado, quando o pai ainda nem havia ainda vestido a faixa, doutor Bolsonaro júnior, em visita a Washington, enfiou na cabeça um boné marcado «Trump 2022». Pela mesma ocasião, encontrou-se com o genro do presidente americano e atirou-lhe flores ao descrevê-lo como ‘um dos mais importantes conselheiros da Casa Branca e grande empresário’.

De lá pra cá, vivemos um não oficial alinhamento automático com a maior potência do planeta. Embora a expressão pareça fácil de entender, não sei exatamente o que significa um país alinhar-se automaticamente com outro. Acho que ninguém sabe direito. Que haja convergência em diversos temas, posso entender. Daí a colar feito sanguessuga me parece complicado. Colônias, protetorados e satélites podem agir assim. País soberano, não.

Não convém que o Brasil grude em outro país, como se sombra fosse. Pouco importa que os EUA sejam a potência dominante. O problema é o mesmo. Com a mudança de dirigentes, a orientação do país que serve de modelo pode se alterar. Quando isso ocorre, como é que fica? Caso apareça novo presidente com ideias semelhantes às de Mr. Obama, um pouco menos America first e um pouco mais globalizantes, que fazemos? Desgrudamos? E se, em seguida, vier outro Trump? Grudamos de novo?

Banquete medieval

Ajustar a política externa é exercício pra lá de delicado. A própria União Europeia ‒ fechado clube de menos de 30 sócios relativamente bem de vida, com níveis de desenvolvimento não muito díspares ‒ tem de fazer exercícios de contorcionismo nesse campo. É virtualmente impossível encontrar solução unificada que contemple o interesse individual de cada membro. Haverá sempre os descontentes, que se recusarão a sentar-se à mesa do banquete.

Tomemos o caso do repúdio ao ditador venezuelano. O apoio explícito a señor Guaidó, presidente autodeclarado, só foi subscrito, até o momento presente, por 19 dos 28 países membros da UE. Os demais, cada um por um motivo que lhe diz respeito, preferem manter distância do conflito e não declarar apoio nem a um nem ao outro. A Grécia nem tenta disfarçar: dá apoio integral ao regime de señor Maduro. E ressalte-se que são todos sócios do mesmo clube.

Enquanto um Brasil entusiasmado apoiou Guaidó desde o primeiro dia, a Itália, apesar de contar com um Salvini tão chegado aos Bolsonaros, difere da maioria dos europeus. Recusa-se a manifestar apoio ao autoproclamado presidente venezuelano. Isso tende a demonstrar que o caminho do alinhamento automático ‒ com quem quer que seja ‒ não nos convém. É insustentável. Atritos e divergências aparecem rapidinho.

Urgência urgentíssima

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 janeiro 2019.

Muitos anos de maus governos maltrataram o país. Apesar de sacolejado por golpes e revoluções, o brasileiro não se lembra de ter assistido antes a tanto descaminho por tão longo tempo. O horizonte trancado durante quase duas décadas gerou sensação de impotência. A bateção de panela de 2013 foi bonita, empolgou, mas não resolveu. A destituição da doutora foi um começo de solução, mas não passou disso: um começo. Serviu pra desanuviar, mas não afastou o espectro do retorno vigoroso da rapina institucionalizada. Como náufragos, os brasileiros procuravam uma tábua à qual se abraçar.

Eis senão quando, na última campanha eleitoral, um candidato obscuro e desconhecido emergiu das profundezas do baixo clero do Congresso. No princípio, ninguém teria apostado um real furado no sucesso do homem. Estava mais pra figura folclórica, um daqueles candidatos que parecem estar lá só pra dar um tchauzinho na televisão e pra receber uns caraminguás do fundo eleitoral. À medida que o tempo foi passando, como quem não quer nada, a candidatura engrossou, ganhou peso e tomou lastro. Sem ser radical, do tipo ‘todos al paredón’ ou ‘à guilhotina os burgueses’, a fala do postulante denunciava o descalabro instalado nas altas esferas. O discurso não vinha tricotado com fios de oratória arrebatadora, mas dizia o que os brasileiros, cansados de guerra, queriam ouvir. Aquele em quem, seis meses antes, nenhum apostador teria botado fé venceu a corrida e ganhou direito ao trono do Planalto. Terminada a corrida e conquistada a taça, é hora de sentar e cogitar sobre o rumo a tomar.

Em princípio, preocupação com filhos termina assim que eles atingem a maioridade, deixam o lar e vão viver a própria vida. No clã dos Bolsonaros, no entanto, filhos já grandinhos continuam grudados ao pai. A mostra explícita de família unida sai bem na foto, mas os rebentos têm dado sérias dores de cabeça ao patriarca. Nas semanas escoadas desde a tomada de posse, francamente, mais atrapalharam que ajudaram. Já antes da entronização, era perceptível que os juniores se comportavam como crianças mimadas, daquelas que, na hora do recreio, desdenham dos coleguinhas: «Meu pai é mais forte que o seu!». Agora, que o chefe virou presidente, a dor de cabeça virou enxaqueca.

Os herdeiros não são a única fonte de problemas de doutor Bolsonaro. Um vozerio descontrolado percorre o mundinho que lhe está em torno ‒ secretários, conselheiros, assessores, ministros. Talvez em virtude daquele natural deslumbre que subjuga todo noviço, as declarações do entourage do presidente andam abrindo remoinhos e levantando ondas que lambem o país inteiro. São falas desencontradas, cada um se sentindo livre de afirmar o que lhe passa pelo bestunto, numa cascata de tagarelice bizarra que vai desde política externa até vestuário infantil.

Unanimidade de opiniões, concedo, é característica de regime totalitário. Como exemplo máximo, temos a bem-comportada torrente de aplausos que coroa todo anúncio de decisões tomadas pelo comitê central do partidão, na China ou em Cuba. Não é sadio, nem é o que gostaríamos de ter em nossa incipiente democracia. Nem por isso, o inverso é aceitável. As estrepolias dos filhos do presidente adicionadas à inabilidade dos que lhe orbitam em torno está gerando algaravia. Botar remédio nesse estado de coisas é caso de urgência urgentíssima.

Um outro ponto que vem gerando atrito é a radicalização religiosa de alguns dos novos componentes do andar de cima. É importante ter presente que Estado laico é invenção relativamente recente. Desde sempre, o Estado foi ligado à religião, o que não é um mal em si. Mais importante do que a crença pessoal de membros do governo é o ambiente de tolerância que deve reinar. Há países civilizados com religião oficial ‒ Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Grécia ‒ onde, nem por isso, os habitantes se sentem aprisionados por uma teocracia em que nada existe fora da fé. A tolerância e a benevolência, se bem aplicadas, são precioso anteparo contra excessos.