Rua com nome de mulher

José Horta Manzano

Os que me acompanham sabem que sou radicalmente contrário a todo sistema de quotas. Embora entenda as boas intenções dos que são favoráveis a esse método, acredito que ele é contraproducente. Em vez de oferecer oportunidades iguais, a implantação de quotas acaba por sacramentar desigualdade.

As «reservas de mercado» garantidas a membros deste ou daquele grupo social instituem privilégios que são, no fundo, a exata negação do objetivo perseguido. Decretar que uma porcentagem de determinado grupo social, étnico, racial ou religioso passe à frente dos demais é uma aberração, um contrassenso. Não é possível impulsionar ascensão social por intermédio de um atalho. Cotas são solução simplista para um problema bem mais profundo. É como se o médico administrasse analgésico sem se preocupar com a origem da dor. A foto sai bonita mas dissimula a origem do mal.

Contra certas fatalidades não se pode lutar. Quando a velhice, a doença ou desastres atingem o cidadão e lhe diminuem a capacidade de acertar o passo com os demais, é natural que se lhe facilite a existência. Ceder assento no ônibus a anciãos ou a gestantes, permitir que indivíduos fisicamente diminuídos sejam atendidos com prioridade, proporcionar escolaridade especial a incapacitados físicos ou mentais são práticas meritórias, que devem ser incentivadas.

Reservar quotas em virtude de raça (se é que «raça» tenha algum significado num país colorido como o nosso), de sexo ou de origem pode parecer demonstração de bondade. O quadro é enganoso. A meu ver, agir assim é tapar o sol com peneira. A origem do mal é bem anterior e é lá que deve ser atacada.

Se jovens negros, pardos, vermelhos ou azuis precisam de um jeitinho especial para ter acesso a estudo superior, por exemplo, garantir-lhes um lugar por decreto deixa a amarga impressão de serem menos inteligentes que os demais, o que é insultante e está longe de ser verdadeiro. Como fazer então? O caminho é um só: tratar o mal pela raiz. Investimento pesado em Instrução Pública é o nome do jogo.

Em países adiantados da Europa, não viria à cabeça de ninguém escolarizar os filhos fora da escola pública. Todos recebem a mesma formação. Com o passar dos anos, a seleção se faz naturalmente. Uma pequena parte se encaminhará a estudos superiores, enquanto a maioria se dispersará numa miríade de profissões, conforme o gosto de cada um.

Quando um jovem se interessa em prosseguir estudos aprofundados mas provém de família modesta e sem condições de lhe garantir o sustento, candidata-se a uma bolsa. Se for considerado capaz, o Estado investirá em sua formação.

Faz três meses, no Dia da Mulher, vereadores paulistanos se comprometeram a equilibrar, entre os dois sexos, a quantidade de homenagens da Câmara a pessoas de destaque na história do município. Uma pesquisa indica que 84% dos logradouros levam nome de homens.

E daí? ‒ pergunto eu. «Equilibrar», nesse caso, não faz o menor sentido. Dos 37 presidentes que o Brasil já teve, 36 foram homens. Como fazer pra «equilibrar»? Contando os efetivos, os temporários, os interventores e os suplentes, o município de São Paulo já teve mais de 50 prefeitos, entre os quais apenas duas mulheres. Como fazer pra «equilibrar»?

O pronunciamento dos vereadores é um disparate feito para impressionar a galeria. Melhor mesmo seria evitar dar nome de gente a logradouros, uma impressionante falta de imaginação. Que se dê nome de planta, de árvore, de bicho, de país, de poesia, de episódio histórico, de rio, de estrela, de livro, de objeto. Há um mundo a explorar.

Preto no branco

José Horta Manzano

Às vezes a gente tem a impressão de que a repartição do Brasil em contingentes raciais, prática que vem sendo incentivada estes últimos doze anos, gera efeito contrário ao esperado.

Raça 1Pouco a pouco, a mente dos jovens brasileiros está sendo moldada a enxergar nosso povo como uma superposição de «etnias», «classes», «raças», «grupos», «comunidades» estanques e perfeitamente delimitadas. Ainda não chegamos lá, mas estamos no caminho.

É tremendo contrassenso que isso aconteça justamente no país mais miscigenado do mundo. Embora não seja aceitável, é compreensível que isso tenha acontecido na antiga República Sul-Africana e em antigas colônias que potências europeias mantinham em terras d’África e alhures.

Embora seja chocante, é também compreensível que isso continue acontecendo em lugares onde casamentos interraciais são quase inexistentes. França, Alemanha, Itália, Grécia, Espanha são exemplos de países em que a imigração maciça e recente de pessoas provenientes de outros horizontes vem criando tensões ligadas à formação de estratos de população que, como água e óleo, não se misturam.

A agência noticiosa AFP traz hoje um exemplo perfeito da visão que se tem no estrangeiro sobre a convivência de raças diferentes num mesmo território. Cito uma passagem da reportagem:

Interligne vertical 11a«Noire, pauvre, alphabétisée à 16 ans, récolteuse de latex et domestique à l’adolescence: la candidate écologiste à l’élection présidentielle brésilienne Marina Silva a le curriculum parfait pour devenir la première dirigeante noire du pays le plus métissé au monde.

Mais à la différence de Barack Obama, qui a obtenu 93% des voix des Noirs des Etats-Unis pour sa réélection en 2012, la co-favorite dans la course à la présidence du plus grand pays d’Amérique latine ne parvient pas à fédérer massivement noirs et métis brésiliens.

Ces derniers sont même plus enclins à voter pour la présidence sortante de gauche Dilma Rousseff, une blanche issue de la classe moyenne, et son Parti des travailleurs (PT) au pouvoir depuis 2003, dont les politiques sociales et de discrimination positive ont plus œuvré en leur faveur que quiconque depuis l’abolition de l’esclavage en 1888.»

Interligne vertical 11«Negra, pobre, alfabetizada aos 16 anos, seringueira e doméstica na adolescência: Marina Silva, a candidata ecologista à eleição presidencial brasileira, tem o currículo perfeito para tornar-se a primeira mandatária negra do país mais mestiçado do mundo.

No entanto, diferentemente de Barack Obama, que obteve o voto de 93% dos negros dos EUA quando de sua reeleição em 2012, a cofavorita na corrida à presidência do maior país da América Latina não logra obter apoio maciço dos negros e dos mestiços brasileiros.

Estes últimos estão, na verdade, mais propensos a votar em Dilma Rousseff, a atual presidente esquerdista – mulher branca proveniente da classe média – e em seu Partido dos Trabalhadores, no poder desde 2003, cujas políticas sociais e de discriminação positiva fizeram mais por eles do que tudo o que tinha sido feito desde a abolição da escravidão em 1888.»

Como meus perspicazes leitores podem se dar conta, há uma flagrante esquizofrenia tanto na visão que os brasileiros têm de seu próprio povo, como na que estrangeiros têm do povo brasileiro.

Para um estrangeiro, ainda que o Brasil seja o «país mais miscigenado do mundo», o voto será necessariamente comunitário. Para eles, é incompreensível que povo em maioria mestiço não vote em peso na candidata que, mestiça e pobre, deveria atrair seus iguais.

Quanto à maioria de nós, para desagrado da ideologia oficial, não enxergamos a coisa assim. Se negro e mestiço só votasse em negro e mestiço, não precisava nem votar. Dona Marina, que etnicamente se identifica com a maioria da população, já estaria eleita.

Felizmente, o esforço oficial destes últimos anos (ainda) não conseguiu inculcar mentalidade racista no povo brasileiro. Levantemos os braços aos céus em agradecimento, irmãos! E vamos torcer para que esse perigoso fomento de compartimentação étnica e racial seja abandonado. Quanto mais cedo, melhor.

Machado de Itararé, Barão de Assis

Deonísio da Silva (*)

Quando junho vier, antes de outubro chegar, milhões de leitores serão enganados por um falso Machado de Assis.

O alienista 3É que serão distribuídos seiscentos mil exemplares (600.000; você não leu errado!) de uma edição falsificada de «O alienista», uma história de loucos, isto é, de médico e louco, dos quais todos nós temos um pouco, mas não na dose a ser administrada ao distinto público nas próximas semanas.

Machado de Assis foi o maior escritor brasileiro de todos os tempos. De seu livro roubado e mutilado foi produzida essa montanha de equívocos, com o seu, o meu, o nosso dinheiro, por meio de um recurso fabuloso, a renúncia fiscal, que, entretanto, tem resultado em projetos culturais tão louváveis, bonitos e importantes! Mas que vem se prestando também a algumas falcatruas.

A vida do Bruxo do Cosme Velho, como o chamou Carlos Drummond de Andrade, não foi fácil, mas, se ele vivesse no Brasil de hoje, seria ainda pior. Poucos entendem seus livros nos circuitos escolares, e a razão é muito simples. Basta olhar nossos indicadores de educação no mundo!

Mas o motivo é outro, segundo nos esclarece Patrícia Secco, a autora da «adaptação».

O alienista 1«De onde menos se espera, daí é que não sai nada», profetizou o lendário humorista gaúcho Barão de Itararé. «Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis», disse Patrícia Secco ao jornalista Chico Felitti. «Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso.»

Escreve o jornalista: «Ela simplifica mesmo: Patrícia lançará em junho uma versão de ‘O alienista’, obra de Machado lançada em 1882, em que as frases estão mais diretas e palavras são trocadas por sinônimos mais comuns (um ‘sagacidade’ virou ‘esperteza’, por exemplo).» (…) «A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil.»

Machado era órfão de mãe (de pai é uma coisa, de mãe é outra, o abandono é ainda maior!), descendente de negros, pobre, gago, epiléptico, casou com uma solteirona portuguesa que tinha comido a merenda antes do recreio, e não tiveram filhos para não transmitir a ninguém o legado da doença. Mas deixou-nos uma obra imortal!

Mais que gênio, oxigênio de nossas letras, Machado venceu preconceitos de raça, de cor, de dinheiro, de tudo. Mas não passou pela senhora dona Patrícia Secco, em breve «coberta de ouro e prata (600.000 exemplares!)», mas que «descubra seu rosto», «queremos ver a sua cara».

Augusto Meyer disse que «quase toda a obra de Machado de Assis é um pretexto para o improviso de borboleteios maliciosos, digressões e parênteses felizes».

Araripe Júnior também foi outro que se enganou: «Filho das próprias obras, ele (Machado) não deve o que é, nem o nome que tem, senão ao trabalho e a uma contínua preocupação de cultura literária».

O alienista 2Astrojildo Pereira enganou-se ainda mais: «Machado de Assis é o mais universal dos nossos escritores; (…) ele é também o mais nacional, o mais brasileiro de todos».

O francês Roger Bastide, destacando a paisagem carioca que poucos viam em Machado, concluiu: «Escrevi estas páginas de protesto contra os críticos literários que lhe negam essa qualidade: humilde homenagem de um estrangeiro a um mestre da literatura universal».

Paro por aqui. A senhora dona Patrícia Secco não tem o direito de fazer o que fez. A obra de Machado de Assis não é dela. É patrimônio do povo brasileiro.

(*) Deonísio da Silva é escritor e filólogo.

Os dois tabus

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jan° 2014

Desde que o mundo é mundo, a humanidade cultiva dois temas sensíveis: raça e religião. Lidar com eles requer prudência e tacto. Evitar acidentes é dever de todos.

Embora a razão de ser de toda religião seja a crença na continuação da vida após a morte física, a diversidade de ritos, dogmas, preceitos, obrigações, proibições é notável. Cada credo tem seu catálogo de regras. O assunto, delicado, é daqueles que se hão de tratar com luvas e pinça. Muita guerra já se travou e muita gente já morreu por divergências religiosas.

O Brasil teve sorte. As práticas animistas dos habitantes originários e o aporte de tradições africanas atenuaram a rigidez e o dogmatismo de colonizadores e de imigrantes. Embora nem sempre nos apercebamos disso, é de reconhecer que não padecemos de conflitos religiosos. Vão longe os tempos da Controvérsia de Valladolid, da Inquisição e das conversões forçadas. O afluxo de gente de vários quadrantes incutiu tolerância à índole nacional.

Visto assim do alto, esse traço de nosso caráter pode até parecer banal. Pois não é. Há pontos no globo onde ainda se luta por divergências de fé. Como prova, estão aí a Irlanda do Norte, o Egito, o Sudão, o Tibete. Até na Europa Ocidental, fricções de ordem religiosa obrigam parlamentos a legislar sobre vestimenta feminina ― o porte da burca ou do véu islâmico, por exemplo. Em nossas terras, a sunga e o fio dental já cuidaram de banir esses rigores. Nosso problema está resolvido.

Stop racismo! Crédito: harrycutting.com

Stop racismo!
Crédito: harrycutting.com

O racismo, outro tema sensível, planta raízes nos estratos mais primitivos do subconsciente. É a manifestação da desconfiança que dedicamos aos que não pertencem a nosso clã. Na prática, esse sentimento se exprime através da repulsa aos que têm cor de pele diferente da nossa, que não falam nossa língua, que não se comportam como nós. Em resumo: rejeitamos o que foge à norma.

Países onde coexistem etnias diferentes costumam ser palco de fricções. Um nada pode provocar conflitos. Essa intolerância está na raiz de atritos crônicos na Palestina, na Síria, no Iraque, na Índia, na Rússia. Na mesma linha, rebeliões nas periferias francesas e surtos de violência nos EUA nos lembram que a paz racial está longe de ser conquista planetária.

Múltiplos fatores forjaram o Brasil. Temos qualidades de fazer inveja: clima agradável, gente afável, ambiente tolerante, povo acolhedor. Mas arrastamos problemas pesados: corrupção, paternalismo, baixa instrução crônica, gritantes disparidades econômicas.

«Deus é brasileiro», dizemos às vezes. Pois olhe, ainda que não passe de um dito jocoso, o fato é que, até hoje, conseguimos escapar da armadilha dos dois grandes tabus. Costumamos encarar com bonomia a diversidade religiosa de nosso povo. Tem até gente que professa duas religiões! A fé ― ou a descrença ― de cada um não constitui obstáculo à convivência. Na esfera racial, a intensa miscigenação do povo brasileiro é a prova maior de que a tolerância e a flexibilidade são a regra, não a exceção. E é melhor assim.

Sabe-se lá por que, de uns anos para cá, o ideal de igualdade e de unidade que alicerça nossa sociedade vem sendo artificialmente solapado. O elenco de normas oficiais passou a dispensar tratamento diferente a determinadas categorias de cidadãos segundo critérios raciais. Cotas e quilombos ― noções inexistentes até há pouco tempo ― entraram na pauta da modernidade brasileira.

A intenção, apesar de leviana, foi nobre. Já o resultado, a médio prazo, pode escorregar para uma ladeira perigosa e não prevista. «Discriminação positiva» é conceito ambíguo: positiva ou negativa, discriminação será sempre discriminação. Para subir de um lado, a gangorra tem de descer do outro. A cada vez que um grupo de cidadãos for privilegiado, a lógica elementar ensina que outro grupo será obrigatoriamente defraudado.

Stop racismo!

Stop racismo!

Políticas desse jaez trafegam na contramão do processo civilizatório ― são danosas para a consolidação de um sentimento de unidade nacional. Pelo contrário, podem atiçar melindres raciais, semear ressentimentos e abalar a concórdia que costumava reinar entre nós.

Se o nível de instrução pública é baixo, que se faça o necessário para elevá-lo. Dar como favas contadas que alguns são menos instruídos que outros unicamente por terem cor de pele diferente é generalização barata, uma falácia, uma ofensa. Estamos cutucando a onça com vara curta. Cuidado, ela pode se enervar!

Que a aragem leve do novo ano sopre sabedoria a nosso legislador. Mais vale recuar enquanto é tempo. Feliz ano-novo a todos!

História e cultura da África

José Horta Manzano

Quem já não esboçou um sorriso ao ouvir a velha frase «Brasil, capital Buenos Aires»? É como a gente zombava do desconhecimento quase total que estrangeiros tinham do Brasil.

Hoje já é folclore. Pessoalmente, nunca pilhei ninguém trocando Brasília por Buenos Aires. Mais comum ― embora as coisas venham mudando lentamente estes últimos 20 anos ― era a crença de que nossa língua era o espanhol. Muitos, no exterior, ainda imaginam que assim seja. A maioria, no entanto, já se deu conta de que falamos uma outra língua, derivada do português, aqui na Europa geralmente chamada de brasileiro.

No Brasil destes últimos tempos, tornou-se politicamente correto ― obrigatório, eu diria ― classificar nossa população em raças. Ooops, corrijo-me. Falar em raças é um exagero. Nossa população está sendo forçada a se separar em duas facções. De um lado, brancos, orientais e mulatos muito claros. De outro, pretos, mulatos escuros, índios, e qualquer indivíduo visivelmente mestiço. Meus leitores são gente esclarecida. Mas não se pode dizer o mesmo do grosso da população de Pindorama. A grande massa silenciosa certamente não se está dando conta do balaio de gatos que estamos tecendo.

África ― principais famílias linguísticas

África ― principais famílias linguísticas

Muitos países, especialmente aqueles que têm problemas pesados provocados pela convivência forçada de raças, etnias ou religiões diferentes, sempre nos invejaram. Podiam até não saber distinguir entre Brasília e Buenos Aires, mas sempre acreditaram que o Brasil era um país tolerante, sem conflitos raciais, sem briga com vizinhos, sem tensões religiosas. E era mesmo.

Não estou perto de me conformar com o estrago que os atuais ocupantes dos cargos de mando estão causando a nosso País. Posso até acreditar que haja uma dose de boa intenção na cabeça de alguns. Se bem que… tendo mais a crer que essas medidas proativas sejam fruto de meros cálculos eleitoreiros. Enfim seja lá qual for a razão, estamos inventando um problema novo, artificial. Dá muita pena. Já temos dores de cabeça suficientes. Não faz falta fabricar pontos de conflito entre categorias de habitantes.

Toda clivagem é potencial fonte de atritos. Zelite e povão, politicos e eleitores, «nós» e «eles», patrões e empregados, citadinos e camponeses, com-teto e sem-teto, automobilistas e pedestres, empregados e desempregados, trabalhadores com carteira assinada e trabalhadores sem carteira assinada, assalariados e autônomos, cristãos tradicionais e neopentecostais, com-terra e sem-terra. Já temos antagonismos suficientes, não fazia falta criar mais um.

Era só o que faltava: o Brasil tornar-se um país cujos cidadãos se distinguem uns dos outros por critérios raciais… O fim do mundo deve estar próximo.

Li nos jornais que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ― excelente iniciativa que não existia no meu tempo, diga-se de passagem ― incluiu um número elevado de perguntas sobre a história e a cultura da África.

Não quero entrar aqui na polêmica sobre se o número de questões é baixo, médio ou alto. O que me atrapalha é outra coisa. As autoridades brasileiras encarregadas da Instrução Pública parecem estar seguindo o mesmo caminho que desorienta europeus e americanos. Não faz sentido falar em «cultura da África».

África ― religiões principais

África ― religiões principais

O continente africano conta com superfície quase 4 vezes superior à do Brasil, é povoado por mais de um bilhão (yes!) de habitantes, distribuídos por 52 países independentes. Entre línguas e dialetos, mais de 2000 falares são recenseados no continente. As diferenças culturais e religiosas são muito acentuadas. Há árabes e tuaregues maometanos. Há pretos maometanos também. Há egípcios cristãos, assim como há pretos cristãos. Há negros animistas e há brancos protestantes. Há pretos evangélicos. Em alguns países se fala árabe. Em outros, o francês o inglês ou o português é língua oficial ― o que não impede que seus habitantes utilizem dezenas de línguas diferentes. A África do Sul, sozinha, tem 11 línguas oficiais!

«Cultura da África» é expressão redutora. Seria como pretender contar a «História da Ásia». Não faz sentido. Desconfio que a intenção das autoridades brasileiras encarregadas da Educação Pública não seja exatamente ensinar geopolítica nem História a nossos jovens. Eu não duvido que, por detrás dessa bondade, se esconda um cálculo indecente de fidelização de eleitores pelo viés da valorização do orgulho racial.

É claro que posso me enganar. Mas seria mais prudente não brincar com fogo.

Ainda dá tempo

José Horta Manzano

Religião e raça são assuntos potencialmente explosivos, a manipular com extrema precaução. São temas que compõem a individualidade de cada um. Carece abordar com muita delicadeza e sensibilidade, que, em matéria íntima, todo cuidado é pouco.

Apartheid

Apartheid

Nos dias atuais, a informação circula mais rapidamente, o que tem o condão de limitar escaramuças e prevenir enfrentamentos. Mas nem sempre foi assim. Muita guerra já se travou e muito massacre já se perpetrou em nome da religião ou da raça.

Mesmo no mundo atual, volta e meia ainda se tem notícia de alguma conflagração aqui e ali. A pior ocorrência dos últimos 20 anos se deu em Ruanda, onde milhões de seres foram massacrados no âmbito de um conflito étnico. A fragmentação da antiga Iugoslávia, nos anos 90, também detonou uma terrível guerra etnorreligiosa que matou muita gente e arrasou cidades e vilarejos. Mais recentemente, tivemos a tempestade de poeira levantada pelas caricaturas de Maomé publicadas pelo periódico dinamarquês Jyllands-Posten(*).

Se a infeliz aventura do apartheid sul-africano não terminou num banho de sangue ― como todos imaginavam que fosse acabar ―, isso deveu-se ao carisma de Nelson Mandela, a quem a humanidade deve muito.

Apartheid

Apartheid

Estes últimos anos, com o objetivo de cooptar setores inteiros da sociedade, nosso governo tem instituído políticas estranhas. Algumas, inócuas, visam a congelar o statu quo. É o caso da chamada bolsa família, versão moderna do mesmo paternalismo que vem segurando a evolução de nossa sociedade faz 500 anos. Essa transferência de ganhos da classe média para os mais pobres não tem sido arrematada com investimento na instrução pública. Como resultado, criou dependentes crônicos. Distribuíram-se peixes, mas não se formaram pescadores.

Outra política estranha ― e bem mais perigosa ― é a tentativa de cooptação dos cidadãos de sangue misturado, aqueles que contam, entre seus ascendentes, europeus e africanos. Foram arbitrariamente classificados como «afrodescendentes», denominação falaciosa, dado que praticamente todos os seus integrantes são igualmente eurodescendentes. Por que fechar o olho para um ramo da origem desses cidadãos e considerar somente o lado que, neste momento, interessa?

A expressão mais visível dessa peculiar obra governamental é a política de quotas para admissão em escolas de ensino superior. Com base em critérios raciais, certos cidadãos são privilegiados em detrimento de outros. Oficializou-se que a origem e a cor da pele sobrepujam o mérito. Isso é um precedente gravíssimo. Com intenções mesquinhas de perpetuação no poder, o atual governo está reabrindo uma questão que se imaginava encerrada e enterrada desde o dia 13 de maio de 1888.

Abramović ― Sistema de quotas

Abramović ― Sistema de quotas

Em princípio, ninguém é discriminado por não ser louro de olhos azuis. Quando um profissional é realmente competente, pouco importa a cor de sua pele ― será bem sucedido. Ao contrario, um incapaz não terá sucesso, ainda que seja empurrado pelo mais generoso sistema de quotas. Não são os privilégios outorgados pelas quotas que erguerão o nível de nossos futuros profissionais.

Outro dia, o jornal O Globo informou que um moço claro de pele e de olhos tinha se apresentado como candidato ao curso de diplomacia do Instituto Rio Branco. O detalhe picante é que Abramović, o postulante, se declarou «afrodescendente». Pleiteou ― e obteve ― uma vaga pelo sistema de quotas. Mais dia, menos dia, tinha de acontecer.

Estamos começando a resvalar. A irresponsabilidade dos luminares que abriram essa caixa de pandora está-nos dirigindo direto contra o muro. Se a moda pega, muito cidadão vai acabar se autodeclarando «afrodescendente» unicamente para ter direito a usufruir o sistema de quotas. E aí, que fazemos?

Soluções existem, basta recuar 80 anos. Na Alemanha dos anos 30 e nos países ocupados pelos nazistas durante a Segunda Guerra, os cidadãos de determinadas raças carregavam no peito, bem visível, um sinal distintivo. Seus papéis de identidade também traziam, bem clara, a menção da raça.

Se a moda da autodeclaração errônea pegar, repito, vão sobrar duas soluções:

1) A primeira é voltar às trevas do nazifascismo e delegar ao Estado a função de determinar a raça de cada indivíduo. Para maior garantia, todo cidadão receberá seu certificado de pureza racial, uma tatuagem ou um chip implantado sob a pele.

Estrela amarela sinal distintivo

Estrela amarela
sinal distintivo

2) A segunda é reconhecer o erro e voltar atrás. Quem nunca errou? Que se abandone o mais rápido possível essa estúpida e temerária divisão racial da sociedade. E que seja feito investimento maciço visando a elevar o nível de instrução de todos os brasileiros. Brancos, pretos, azuis, verdes. Ou furta-cor.

Ainda dá tempo.

Interligne 18f

(*) Não tem nada que ver com o assunto. Por curiosidade, fui dar uma espiada na edição online do dinamarquês Jyllands-Posten. Entre as manchetes de capa, traz um artigo sobre o combate que os venezuelanos travam contra a falta de papel higiênico. Quem quiser conferir, clique aqui.

Senzalas francesas

José Horta Manzano

Quando, em 1830, os franceses se apossaram do território norte-africano que hoje se chama Argélia, estavam selando o destino da França. Ad vitam æternam.

Quando, a partir do século XVI, os brasileiros(*) e outros plantadores de cana decidiram ir buscar mão de obra gratuita na África, estavam selando o destino do Brasil. Ad vitam æternam.Interligne 3d

A independência da Argélia, reconhecida em 1962, provocou uma descolonização a toque de caixa. Um milhão de franceses oriundos da metrópole tiveram de ser repatriados em regime de urgência, deixando para trás tudo o que possuíam.Torre Eiffel

Essa chegada súbita e maciça dos retornados não teve grande impacto na metrópole. Os anos 60, 70 e 80 foram, na Europa ocidental, décadas de prosperidade. Fechavam-se as últimas cicatrizes da guerra e construía-se e reconstruía-se em ritmo acelerado. Centrais nucleares, aviões supersônicos, construção civil, estradas ― tudo isso exigia mão de obra.

Grandes contingentes de norte-africanos, especialmente argelinos, foram trazidos. Faziam o trabalho mais humilde, justamente aquele que os franceses não queriam mais fazer.

Embora fossem remunerados ― uma situação bem diferente da dos africanos levados à força para o Brasil ―, foram propositadamente apartados do resto da população. Grandes conjuntos de imóveis especialmente destinados aos imigrantes argelinos, tunisinos e marroquinos foram construídos na periferia das cidades.

Cada conjunto dispunha de comércio de base, como as superquadras da Brasília dos anos 60. A intenção era conter os novos imigrantes dentro do espaço que lhes era destinado, concentrá-los, coibir sua interpenetração com a boa sociedade. Os conjuntos habitacionais exerciam ― exercem até hoje ― o papel da senzala conhecida dos brasileiros. Todos juntos, sim, mas… vocês lá e nós cá.Interligne 3d

A vida dá voltas. O boom dos anos dourados arrefeceu. Os descendentes de imigrantes progrediram. Se alguns, é verdade, descambaram para a criminalidade, a droga e outros tráficos, muitos seguiram trilha melhor. Estudaram, se esforçaram, não se conformaram em continuar no baixo patamar social em que haviam nascido.

Abandonados à própria sorte, os habitantes dessas cités não têm a vida fácil. Estigmatizados pela cor de sua pele, pelo aspecto físico ou pelo sobrenome, às vezes até pelo prenome que denota origem norte-africana, são usados, especialmente por partidos de extrema direita, como bodes expiatórios. Todos os males nacionais lhes são atribuídos.

Costuma-se dizer que, entre dois currículos de categoria semelhante, um dos quais tenha sido mandado pelo candidato Mohamed Sahraoui enquanto o outro esteja louvando as qualidades de Jean Martin, o selecionador tenderá a preferir Jean. Talvez nem mesmo chegue a propor entrevista a Mohamed.

Para remediar esse problema, tem-se falado com muita insistência em instituir currículos anônimos. Sem se deixar influenciar por preconceitos de origem étnica, o selecionador julgaria os méritos e as qualidades de seus candidatos e chamaria para entrevista os que lhe parecessem convir. Se o sistema ainda não foi adotado, é por dificuldades práticas. Mais dia, menos dia, será instituído.Interligne 3d

Um editorial do Estadão de domingo 5 de maio nos traz uma boa análise de uma inacreditável situação. O perfil que cada pesquisador mantém no incontornável Currículo Lattes, verdadeira instituição conhecida por todos os cientistas brasileiros e respeitada por todos eles, deverá obrigatoriamente trazer a raça ou a cor de pele de cada acadêmico(!).Moulin rouge

Se não tivesse saído no Estadão, seria de duvidar da veracidade da história. Com que então, os que vêm tomando essas decisões estes últimos tempos acreditam mesmo que a melhor maneira de atenuar preconceito racial é oficializar a compartimentação dos cidadãos em etnias distintas e conferir a cada uma direitos diferentes das demais? Combate-se uma discriminação lançando mão de outra? Para compensar os maus tratos de que foram vítima os tataravós de certos cidadãos, discriminam-se os tataranetos dos algozes de séculos atrás? Tudo isso atropela o bom-senso.

Mas o mundo gira. Por mais que isso atrapalhe os planos dos racistas brasileiros ― que preferem pudicamente ser chamados de racialistas ― a miscigenação da população continuará. Dentro de muito pouco tempo, não brancos (pretos e pardos) serão maioria, se é que isso já não aconteceu. E aí, como ficamos? Estabeleceremos quotas para a minoria eurodescendente?

Ao invés de olhar para o próprio umbigo e dar tiros em seu próprio pé, esses novos racistas deveriam estudar soluções encontradas por outros países que enfrentam o mesmo problema. Não basta ir a Paris só para subir à Tour Eiffel e assistir a um espetáculo no Moulin Rouge. Há que aproveitar para aprender com a experiência dos outros.

Um pouco de humildade não faz mal a ninguém.

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(*) O termo brasileiros é utilizado aqui na sua acepção original de comerciantes de pau-brasil.