José Horta Manzano
Querem uma prova de como a gente sai formatado da escola? Aprendemos todos que, em 22 de abril de 1500, Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. E aprendemos também que oito anos antes, em 12 de outubro de 1492, Cristóvão Colombo tinha descoberto a América.
Fatos excludentes não podem coexistir. Se um for verdadeiro, o outro não o será. Se a América já tinha sido ‘descoberta’, o Brasil não podia usufruir de descobertazinha particular, só pra ele. A não ser que não faça parte da América. E vice-versa. Se o Brasil foi realmente descoberto em 1500, a descoberta do genovês Colombo se restringiu à Ilha Hispaniola, que abriga hoje o Haiti e a República Dominicana. Portanto, não se lhe deve atribuir o achamento da América.
Não me recordo que alguém tenha apontado essa flagrante incongruência nas aulas de História de então. Foi só alguns anos depois que a contradição me pareceu evidente. Já era tarde demais pra questionar a professora. Ignoro se a perspicácia dos estudantes de hoje é mais aguda.
Na segunda série do antigo ginásio ‒ que mudou de nome e hoje corresponde ao sexto ano de estudo ‒ o ensino da História era dividido em duas matérias, lecionadas por professores diferentes. Um dava História Geral enquanto outro ensinava História da América. Nas aulas de um, dava-se uma perpassada na história da civilização europeia e médio-oriental, dos Sumérios à Revolução Francesa. Nas do outro, adquiria-se uma visão geral do Novo Mundo, que começava com os ameríndios, passava por Colombo, pelos peregrinos do Mayflower, mencionava as façanhas de Bolívar e de San Martín, mostrava pinceladas da Guerra de Secessão e chegava até a independência de Cuba, última colônia ibérica na América.
Naquela época, enxergávamos a América como um todo do qual o Brasil fazia parte. Aliás, está aí nosso hino que eleva o país ao pedestal de «florão da América»(*). De uns decênios pra cá, a noção tem-se esvaído. Embora não tenha sido o iniciador dessa tendência, o lulopetismo deu-lhe boa acelerada. Em virtude de virtual amputação, a América desmembrou-se entre América Latina e as antigas colônias britânicas do norte. Antigas possessões francesas e holandesas ficaram no meio do caminho, sem estatuto definido.
Ficou esquisito. De um lado, temos hoje a América Latina, formada essencialmente pelas terras colonizadas pelos ibéricos. De outro, a América (tout court, sem adjetivo), formada pelas ex-colônias inglesas. A gente fica sem entender por que isso foi feito. Será por ideologia? Mas… de que ideologia estamos tratando? Será por rejeição da língua inglesa? Mas… se é a primeira língua que todo latino-americano anseia aprender. Será por afinidade? Mas… por que o Brasil estaria mais afinado com Honduras e com a República Dominicana do que com os EUA ou com o Canadá?
Um doce pra quem apontar a razão dessa bizarrice.
(*) No sentido próprio, florão é o ornamento em forma de flor que se destaca na fachada de catedrais góticas. O termo é mais usado em sentido figurado ‒ como em nosso hino ‒ com o significado de joia, coisa preciosa. Portanto, florão da América = joia da América.
O motivo, para mim, é que muitos (colonizadores, historiadores, cartógrafos, etc.) nunca se conformaram de que o único país (tanto da América do Sul quanto Central) em que não se fala o espanhol seja, por coincidência, o maior de todos. Não dava, portanto, para encontrar um nome coletivo que não fosse América Latina. Já o fato de a América do Norte ser chamada apenas de América me parece ser só mais um exemplo da sensação de superioridade de quem fala inglês. Pode ser loucura minha, mas faz sentido, não faz?
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América Latina é nome mal escolhido. Ibero-América teria sido mais apropriado. Que fazemos do Québec e da Luisiânia, territórios colonizados pelos franceses? Em rigor, seus habitantes teriam de contar como latino-americanos.
Na Espanha, se alguém disser que é americano, todos vão entender que vem de algum país da América ‒ de qualquer um indistintamente. Para se referir aos do norte, dirão estadounidense ou norteamericano. Não viria à cabeça de nenhum hispano-americano chamar os EUA de «America». Isso só acontece no Brasil.
Portanto, não estou seguro de que o fato de chamar EUA de «America» seja exemplo de sensação de superioridade de quem fala inglês. Essa renúncia ao próprio gentílico demonstra, antes, nossa sensação de inferioridade.
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Quem chama os EUA de América são os próprios americanos (do norte). É como se eles tivessem se apropriado do continente como um todo – por isso, falei em sensação de superioridade. Se brasileiros adotaram essa maneira de falar, deve ser realmente decorrência e nosso complexo de vira-latas.
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