Tabus religiosos

José Horta Manzano

Faz pouco tempo, ficamos sabendo que um hospital da capital paulista se recusa a oferecer procedimentos médicos que visem à limitação de filhos. Alegando seguir à risca os preceitos da doutrina católica, não inserem DIU nem fazem vasectomia. Quem quiser que procure outro estabelecimento, lá não.

Embora me pareça uma linha de conduta de outras eras, posso até aceitar que, em se tratando de hospital particular, tenham lá suas idiossincrasias. O que me incomoda é o fato de, para esse estabelecimento de saúde, o tabu sexual-religioso se limitar a dois únicos procedimentos médicos: DIU e vasectomia.

A lista das proibições, pela lógica, não deveria se limitar a essas duas intervenções. Há outras condições humanas que a Santa Madre Igreja sempre condenou e continua condenando. Por coerência, o pudibundo estabelecimento deveria aplicar os tabus da Igreja em sua totalidade. Vamos ver.

A doutrina católica, embora torça o nariz para o divórcio, costuma olhar para o lado e fingir que não vê; assim, não proíbe a seus fiéis a separação de corpos. Já o recasamento, ó horror!, são outros quinhentos. Nenhum católico tem o direito de se casar em segundas núpcias. Se o fizer, terá de se limitar a fazê-lo no civil, sem véu nem grinalda.

Portanto, nosso pudico hospital, para estar nos conformes com a doutrina, não poderia aceitar pacientes casados em segundas núpcias, dado que vivem no pecado. No limite, podem até ser atendidos em caso de urgência, naturalmente. Para evitar quiproquó, a pergunta sobre eventual concubinato teria de ser feita antes de qualquer internação. É desagradável expulsar pacientes no meio do corredor, a caminho da sala de operação.

A Igreja Católica, que às vezes parece ter empacado no século XIX, põe atos homossexuais no catálogo das aberrações contra a natureza. Repare que, até hoje, não estendem o sacramento do matrimônio a casais do mesmo sexo. No máximo, uma bençãozinha na sacristia, mais nada.

O mesmo rigor, portanto, deveria guiar o comportamento do hospital paulistano. Antes da admissão, a pergunta teria de ser feita a todo futuro paciente: “Vive em concubinato com pessoa do mesmo sexo?”. Em caso de resposta positiva, o cidadão (ou a cidadã) deveria ser gentilmente encaminhado(a) a outro estabelecimento.

Quando se adota a doutrina de determinada fé, deve-se adotá-la por inteiro, com suas larguezas, mas também com suas proibições e seus tabus.

Nota
A recusa de efetuar procedimentos de limitação de filhos combinava com o Brasil de 100 anos atrás, vazio, despovoado, uma imensidão que precisava de braços para a lavoura e a indústria balbuciante. Uma natalidade abundante era desejável e desejada. Hoje o quadro mudou.

Com o país povoado por duzentos milhões de conterrâneos, a política natalista saiu de moda. Temos gente suficiente. O que falta é dar saúde e educação a todos a fim de mitigar o abismo entre os que têm e os que não têm nada.

Na contramão do que está fazendo o hospital paulista, procedimentos de limitação de nascimentos deveriam, sim, ser incentivados. E por propaganda institucional.

Rua com nome de mulher

José Horta Manzano

Os que me acompanham sabem que sou radicalmente contrário a todo sistema de quotas. Embora entenda as boas intenções dos que são favoráveis a esse método, acredito que ele é contraproducente. Em vez de oferecer oportunidades iguais, a implantação de quotas acaba por sacramentar desigualdade.

As «reservas de mercado» garantidas a membros deste ou daquele grupo social instituem privilégios que são, no fundo, a exata negação do objetivo perseguido. Decretar que uma porcentagem de determinado grupo social, étnico, racial ou religioso passe à frente dos demais é uma aberração, um contrassenso. Não é possível impulsionar ascensão social por intermédio de um atalho. Cotas são solução simplista para um problema bem mais profundo. É como se o médico administrasse analgésico sem se preocupar com a origem da dor. A foto sai bonita mas dissimula a origem do mal.

Contra certas fatalidades não se pode lutar. Quando a velhice, a doença ou desastres atingem o cidadão e lhe diminuem a capacidade de acertar o passo com os demais, é natural que se lhe facilite a existência. Ceder assento no ônibus a anciãos ou a gestantes, permitir que indivíduos fisicamente diminuídos sejam atendidos com prioridade, proporcionar escolaridade especial a incapacitados físicos ou mentais são práticas meritórias, que devem ser incentivadas.

Reservar quotas em virtude de raça (se é que «raça» tenha algum significado num país colorido como o nosso), de sexo ou de origem pode parecer demonstração de bondade. O quadro é enganoso. A meu ver, agir assim é tapar o sol com peneira. A origem do mal é bem anterior e é lá que deve ser atacada.

Se jovens negros, pardos, vermelhos ou azuis precisam de um jeitinho especial para ter acesso a estudo superior, por exemplo, garantir-lhes um lugar por decreto deixa a amarga impressão de serem menos inteligentes que os demais, o que é insultante e está longe de ser verdadeiro. Como fazer então? O caminho é um só: tratar o mal pela raiz. Investimento pesado em Instrução Pública é o nome do jogo.

Em países adiantados da Europa, não viria à cabeça de ninguém escolarizar os filhos fora da escola pública. Todos recebem a mesma formação. Com o passar dos anos, a seleção se faz naturalmente. Uma pequena parte se encaminhará a estudos superiores, enquanto a maioria se dispersará numa miríade de profissões, conforme o gosto de cada um.

Quando um jovem se interessa em prosseguir estudos aprofundados mas provém de família modesta e sem condições de lhe garantir o sustento, candidata-se a uma bolsa. Se for considerado capaz, o Estado investirá em sua formação.

Faz três meses, no Dia da Mulher, vereadores paulistanos se comprometeram a equilibrar, entre os dois sexos, a quantidade de homenagens da Câmara a pessoas de destaque na história do município. Uma pesquisa indica que 84% dos logradouros levam nome de homens.

E daí? ‒ pergunto eu. «Equilibrar», nesse caso, não faz o menor sentido. Dos 37 presidentes que o Brasil já teve, 36 foram homens. Como fazer pra «equilibrar»? Contando os efetivos, os temporários, os interventores e os suplentes, o município de São Paulo já teve mais de 50 prefeitos, entre os quais apenas duas mulheres. Como fazer pra «equilibrar»?

O pronunciamento dos vereadores é um disparate feito para impressionar a galeria. Melhor mesmo seria evitar dar nome de gente a logradouros, uma impressionante falta de imaginação. Que se dê nome de planta, de árvore, de bicho, de país, de poesia, de episódio histórico, de rio, de estrela, de livro, de objeto. Há um mundo a explorar.