Vacina pra quem pode?

José Horta Manzano

O Brasil é realmente um lugar estranho. No mundo civilizado, a epidemia de covid foi encarada em cada país como problema nacional. Como tal, foi enfrentada pelo poder público.

Na Europa, pelas informações que tenho, a vacinação anticovid foi encampada em todos os países pelo governo central. Em todos eles, a compra, a distribuição e a aplicação da vacina foram atribuição exclusiva do sistema público de saúde.

Me surpreende a notícia de que o presidente Bolsonaro deve assinar, nos próximos dias, uma medida provisória liberando a vacinação privada contra a covid.

Ao entregar a vacinação à iniciativa privada, nosso governo está abrindo mão de sua prerrogativa de coordenador da saúde pública. Por que razão faz isso? Que interesses estarão por detrás da decisão governamental? Não ficou claro.

O efeito colateral é a reafirmação da desigualdade entre cidadãos. Quem puder desembolsar R$ 300 para a picada, receberá vacina de primeira linha. Os outros? Que se danem. Todo o mundo tem que morrer mesmo.

Genocida, não!

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 janeiro 2022

A validade de um estudo científico só é autenticada depois de ele ter sido avaliado e abonado por um conjunto de reconhecidos cientistas da mesma área. É o que os ingleses chamam ‘peer review’.

Costuma-se traduzir essa expressão como ‘revisão por pares’, ‘revisão paritária’ ou até, um tanto desajeitadamente, ‘arbitragem’. A tradução flutuante vem do fato de não ser comum, entre nós, designar de “pares” os que exercem a mesma função ou os que pertencem à mesma categoria. Assim, qualquer tradução literal periga sair meio manca. Mas, pela atual tendência de integração de conceitos estrangeiros a nossa língua, a solução já foi encontrada: mantém-se a expressão inglesa, com casca e tudo.

A organização MedRxiv, cujo estranho nome se deve pronunciar “med-archive” (‘arquivo médico’) é um repositório online de preprints da área médica, clínica e de saúde. Preprint, como o nome sugere, é a publicação prévia de artigo científico ainda não validado pelos pares.

Agora vamos aos fatos. Alguns dias antes do fim de dezembro 2021, uma dezena de cientistas brasileiros assinaram, sob forma de preprint, um alentado estudo sobre a correlação entre vacinação, hospitalização e morte de maiores de 60 anos. A primeira constatação, como se imaginava, é de que a taxa de óbitos decresce à medida que a vacinação se generaliza.

Em seguida, os signatários do estudo valeram-se de fórmulas complicadas demais para serem descritas por não-iniciados como este escriba. O que interessa são as conclusões. E elas são comprometedoras para o governo brasileiro. O incrustado negacionismo gerado pela ignorância presidencial custou caro ao país. Em vidas humanas.

O estudo estima que milhares de idosos brasileiros foram salvos pela vacinação: um total de 75 mil, só no ano de 2021. Não fosse a vacina, esse contingente já não estaria mais entre nós. Essa é a parte decente da história. Em paralelo, há um lado bem mais sombrio.

Todos se lembram dos esforços envidados pelo capitão para frustrar – ou, pelo menos, retardar – a compra de vacinas anticovid. Baseados em análise dos dados e em cálculos atuariais, os cientistas chegam à conclusão de que, se a vacinação tivesse começado 8 semanas antes, 48 mil mortes poderiam ter sido evitadas. Quarenta e oito mil mortes! Para efeito de comparação, essa hecatombe equivale à queda de 185 Boeings modelo 767 lotados, com 260 passageiros cada um, sem nenhum sobrevivente pra contar a história. Ou 4.800 desastres como o de Capitólio (MG), que ocupou as manchetes com suas 10 vítimas – um Capitólio por dia, durante 40 meses sem parar. Estamos falando apenas das mortes evitadas.

Muitos chamam Bolsonaro de genocida. Estão errados. Genocídio é palavra relativamente recente, criada nos anos 40 e oficializada por convenção da ONU de 1948. A definição é rigorosa: exterminação sistemática de um grupo humano por motivos de raça, língua, nacionalidade ou religião. É, portanto, limpeza étnica – um ato extremado levado a cabo por motivos religiosos ou por loucura.

Os atos de Bolsonaro não correspondem à definição. Sabe-se que ele não gosta de pobre, mas a negação da pandemia não causou morte só de pobres. Sabe-se que ele tem medo de “comunista”, mas o atraso na compra das vacinas não mandou só “comunistas” pro cemitério. Sabe-se que ele é misógino, mas a louvação da cloroquina não matou só mulheres.

Bolsonaro tem alguns parafusos soltos. Sua loucura é apimentada por ignorância, poltronice e preguiça – condimentos explosivos, mas que não chegam a configurar um genocida que se preze. Genocidas verdadeiros, não houve tantos assim. O século XX conheceu alguns dos grandes, tais como Hitler (Alemanha), Pol Pot (Cambodja) e Stalin (URSS). Há outros menos conhecidos. Por mais que tenha feito, nosso capitão não entra nessa categoria.

Genocídio requer método e planejamento, conceitos que não frequentam o universo mental de Bolsonaro. Ele não passa de um ser perturbado, atrasado, sem instrução, paranoico, que chegou à Presidência numa esquina da história que não se repetirá. Está mais pra patacão que pra genocida.

A solidão de Bolsonaro

José Horta Manzano

Rodeado de áulicos e todo tipo de interesseiros que só sabem aplaudir, o capitão não se dá conta da realidade. Ele se esquece que, no duro mesmo, o que conta é o voto popular. Não adianta subornar militares nem comprar o Congresso pra formar uma coalizão de aparência sólida. Ao fim e ao cabo, quem manda são os eleitores. Se não derem apoio a Bolsonaro nas urnas, assistiremos ao fim da comédia.

Na medida que continuar se enfraquecendo nas pesquisas, o presidente vai assistir à debandada dos que só lá estão por interesse. Ninguém tem vontade de associar o próprio nome ao de um perdedor.

Não sei se o capitão está a par de que, no exterior, seus melhores amigos – mais espertos que ele – estão trilhando outras veredas. Enquanto ele continua a dar murro em ponta de faca com seu negacionismo vacinal, dois de seus raros apoios estrangeiros já viraram a casaca.

Nas vésperas do Natal, o governo de Israel anunciou que passaria a propor uma quarta dose de vacina aos maiores de 60 anos, assim como ao pessoal médico e paramédico, que são os mais expostos ao contágio.

Aliás (não sei se o distinto leitor tem a mesma impressão), me parece que a profusão de bandeiras israelenses que os bolsonaristas arvoravam nas manifestações andam meio sumidas, não? Talvez aquilo explique isto, ou seja, o não-negacionismo explícito do governo israelense entra em colisão com o negacionismo primitivo de nossos aprendizes de extrema-direita.

Portanto, a amizade tipo unha e carne que parecia ter se cristalizado entre Brasília e Tel-Aviv virou fumaça. De fato, não dá pra conciliar o intenso programa vacinal israelense com a indignação de um Bolsonaro que chegou a dizer “Não entendo essa gana por vacina”. Ah, tem tanta coisa que ele não entende…

Outro amigo de infância que se distanciou do capitão foi Donald Trump. Esse, então, deu uma cambalhota. Faz uns dias, perto da virada do ano, no momento em que a onda de ômicron começava a se alastrar pelos EUA, o ex-presidente bilionário ressurgiu como defensor da vacinação, um inesperado arauto na luta contra a desinformação sanitária (!).

Algumas semanas atrás, num comício no Alabama – um dos estados com índice de vacinação mais baixo –, Trump foi claro: “Recomendo a vocês que se vacinem. Eu me vacinei. É bom. Vacinem-se!”. Algumas vaias se alevantaram, e o astuto orador mudou de assunto. Mas não desdisse o que havia dito.

Mais adiante, em 19 de dezembro, o antigo presidente reincidiu. Chegou a desestabilizar apoiadores e analistas ao defender a vacinação em diversas ocasiões, de modo aberto e inequívoco. Em Dallas (Texas), diante de uma multidão de simpatizantes, voltou a bater na mesma tecla. Aproveitou para se vangloriar de que as vacinas tinham sido desenvolvidas durante sua gestão. Asseverou que a vacinação vem salvando dezenas de milhões de vidas no mundo, e que é uma terapêutica fantástica. Levou vaias de novo.

Incansável, retomou o fio numa entrevista na tevê, dias mais tarde, quando dialogava com Candace Owens, apresentadora e porta-bandeira dos antivax. Bastou a moça insinuar que as vacinas não têm nenhum interesse, para Trump cortar-lhe a palavra, brusco: “É uma das grandes conquistas da humanidade. A vacina funciona.” E concluiu o raciocínio dizendo que “as pessoas não morrem [de covid] quando estão vacinadas”. Mais claro, impossível.

Os grandes apoios internacionais de Bolsonaro se dissolvem a olhos vistos. Minguando nessa velocidade, tanto interna quanto externamente, o que é que sobrará do capitão em outubro?

A pressa é inimiga da perfeição?

Myrthes Suplicy Vieira (*)


A pressa é inimiga da perfeição?


Depende. Se você for um burocrata distraído e, principalmente se trabalha com números, é muito provável que a pressa seja mesmo inimiga da perfeição. Com quase toda certeza, se você for um neurocirurgião de ponta operando um AVC hemorrágico posicionado numa região cerebral muito delicada ou inacessível, sua necessária atenção aos mínimos detalhes pode também ser comprometida pela sensação de urgência. Por outro lado, se você for um socorrista do SAMU atendendo a um acidente de trânsito grave com muitas vítimas, piloto de helicóptero da PM, motorista de ambulância ou bombeiro atendendo a um incêndio em um asilo de idosos ou na UTI neonatal de um grande hospital, a pressa pode muito bem ser entendida como um estímulo à perfeição.

O desafio é sempre, em todos os casos, equilibrar a entrega do trabalho dentro do menor prazo possível e com o maior padrão de excelência/qualidade disponível. A isso se dá o nome de competência e, para atingi-la, é preciso contar com uma equipe multidisciplinar altamente capacitada para acompanhar cada etapa do processo e comunicar rapidamente aos demais envolvidos a necessidade de providências extraordinárias.

Doutor Queiroga não entendeu bem, no início, onde o presidente queria chegar ao pedir que ele impedisse – ou, em caso de insucesso por falta de argumentos técnico-científicos convincentes, que atrasasse ao máximo – a vacinação infantil. Mas anuiu mesmo assim. Depois que lhe explicaram que seu chefe ainda oferecia muita resistência ao projeto e estava inseguro quanto à ocorrência de eventuais efeitos colaterais graves nesse público que poderiam cair nas suas costas, ele finalmente vislumbrou uma solução: discutir o tema com todos os órgãos intermediários de controle e com a sociedade civil organizada, antes da tomada final de posição do Ministério da Saúde. Não contava, porém, com a agilidade dos técnicos da Anvisa para aprovar por unanimidade a vacinação para esse segmento etário e o beneplácito de um sem-número de associações de pediatria, imunologia e infectologia.

No afã de mostrar serviço e agradar à chefia, sem comprometer sua permanência no cargo, ele no entanto acabou trocando as bolas: entendeu que sua missão era a de entregar a pior qualidade possível (no sentido da urgência do pedido de compra de novas doses e da logística de distribuição aos estados) dentro do prazo mais dilatado autorizado pelo STF. E foi isso o que ele fez, com total denodo. Contrariando todas as expectativas até mesmo de pais e mestres, ele imaginou ter feito um pronunciamento médico respeitável, durante o qual tentou disfarçar seu servilismo acrítico e sua incompetência atrás da alegação cor-de-rosa de que está comprometido com a segurança dos pequeninos brasileiros. Seria comovente se não fosse pela inevitável comparação com o desempenho tétrico de seu antecessor.

Um antigo colega consultor de empresas desenvolveu um conceito revolucionário para explicar às chefias as causas de frequentes erros em áreas sensíveis da organização capitaneadas por um gestor imaturo, autoritário ou inexperiente, que me encanta desde sempre: o da Síndrome da Anuência Precoce. Sabe aquele garoto assustado, acostumado a ser maltratado por um pai arrogante, perfeccionista e ditatorial, que não consegue ouvir até o fim a mais nova exigência de cumprimento de uma tarefa que lhe é apresentada aos berros? Então, dada sua enorme ansiedade e medo de falhar, a criança não consegue interromper a fala do pai para pedir esclarecimentos adicionais, contra-argumentar com dados realísticos ou tentar negociar um prazo mais elástico. Atira-se de cabeça na tarefa e, afundado na angústia da provável surra que vai levar se não obedecer aos conformes do combinado, não se organiza, atropela as fases do processo, ignora a necessidade de revisão da eficácia dos procedimentos adotados em cada passo e descuida do acabamento, terminando por falhar miseravelmente outra vez. À culpa vem se somar a crença de que é burro, desajeitado e não talhado para se destacar no mundo profissional. Pronto, está criado mais um jovem neurótico, especializado na arte de responsabilizar as contingências de sua vida, botar a culpa em terceiros e se alienar de toda e qualquer iniciativa no futuro.

Mesmo um observador não-treinado pode afirmar com toda a segurança que o fenômeno atinge pesadamente todos os integrantes do ministério bolsonarista. Da educação e cultura (inserida curiosamente, para vergonha nossa diante dos espantados olhares de estrangeiros, na estrutura do ministério do turismo), passando pelo Itamaraty e pelas Forças Armadas, até os criativos ministérios da economia e do meio-ambiente (que não se cansam de apresentar em fóruns internacionais um Brasil que desconhecemos integralmente), não há um só dia em que não sejamos convidados a interpretar as estatísticas nacionais sob o prisma de Alice no País das Maravilhas, elaboradas por orgulhosos portadores crônicos da Síndrome de Anuência Precoce.

Mas não se preocupe, prezado concidadão. Tudo isso deve acabar em breve. Deve ser apenas um efeito colateral indesejado da prevalência de militares em cargos civis de grande especialização técnica. E, para um militar, contrariar a voz de comando é uma insensatez inaceitável. Quem diria que um ex-capitão reformado por indisciplina agregaria tanto poder e influência para fazer calar generais e humilhar em público os mais prestigiados cientistas e instituições nacionais?

Que falta faz um estadista! Cuidado redobrado com quem você vai eleger no ano que vem.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Vacina para crianças

José Horta Manzano

Para futuros turistas que se preparam pra visitar determinados países ou regiões, recomenda-se tomar (ou exige-se que tomem) vacina contra doenças como tifo, febre amarela, raiva, hepatite A, poliomielite.

Para crianças, independentemente de qualquer viagem turística, a vacinação é obrigatória ou recomendada para proteger contra bom número de doenças: difteria, tétano, coqueluche, varíola, polio, hepatite B, pneumococos, sarampo, caxumba, rubéola.

Como se sabe, a vacinação dos pequerruchos é coisa corriqueira, sabida e aceita por todos. Não há mãe que deixe de levar seu filho ao médico ou ao posto de saúde pra ser imunizado.

Os mais antigos se lembram de um tempo em que essa proteção simplesmente não existia. Dá impressão de que vivemos hoje num mundo abençoado. Há quem diga que não passa de impressão. Mas essa é uma outra discussão.

Fico abismado – e meus leitores habituais sabem disso – com essa gente que recusa a vacina anticovid. Na Europa, espantosamente, são muitos. É verdade que, no Brasil, são poucos. Felizmente.

Fico boquiaberto com certos cidadãos de miolo mole, em geral apoiadores do capitão, que combatem a liberação da vacina anticovid para crianças. Como é que pode? Levam o filho para tomar vacina contra difteria, tétano, coqueluche, varíola, polio, hepatite B, pneumococos, sarampo, caxumba, rubéola, mas, na hora da vacina contra a maior pandemia que castigou a Terra nos últimos séculos, se afinam. Expõem os próprios filhos – e o resto da família – só pra obedecer à mente doentia do capitão. Não pode ser gente normal.

E tem mais. Não se está impondo nenhuma obrigação de vacinar crianças. O que se propõe é a autorização de vacinar. Ao fim e ao cabo, só vacinará seu filho quem quiser.

Vamos ver como está a situação além-fronteiras. Dia 25 de novembro, a Agência do Medicamento Europeia (que corresponde a nossa Anvisa) autorizou a vacina para crianças na faixa de 5 a 11 anos. Desde então, a Dinamarca e a Áustria já organizaram a campanha de vacina para os pequeninos. Na Alemanha, que é um país federal, como o Brasil, Berlim e a Baviera (Munique) já entraram para o time.

A Hungria – dirigida por Viktor Orbán, colega extremo-direitista de Bolsonaro – vai lançar sua campanha para a vacinação dos 5-11 anos quarta-feira. Na Grécia, os pais de 20 mil pequerruchos já inscreveram os rebentos para a picada, que também começa a partir de quarta-feira.

A Espanha, que está na categoria dos bons alunos no quesito vacinação, também já abriu sua campanha para vacinar os 5-11 anos. Portugal já planificou a imunização dos pequenos: começa esta semana e vai até 13 de março, os de 11 anos primeiro, e pouco a pouco baixando até chegar aos de 5 anos.

A Itália, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Polônia (dirigida por colegas de Bolsonaro), a Eslováquia, a Tchéquia e a Suíça vão dar partida na campanha de vacinação infantil contra a covid estes próximos dias.

Enquanto isso, no Brasil… nosso respeitado capitão subiu a serra quando ficou sabendo que a Anvisa tinha conferido à criançada o direito de também ser imunizada contra a pandemia. Prometeu publicar, para execração pública, o nome dos diretores e funcionários que autorizaram “essa barbaridade”. O ministro da Saúde Pública, um sabujo interesseiro, repetiu como papagaio o discurso do presidente.

Destoando da covardia que os propósitos absurdos e cruéis de Bolsonaro costumam suscitar, a Anvisa soltou uma nota dura, indignada, inflexível.

Ai, que saudades do tempo em que nossos governantes se empenhavam em amparar os brasileiros, não em os assassinar.

O estado e o cacete

José Horta Manzano

Os insultos que o capitão dirige aos que contrariam seus caprichos não surtem efeito. No começo, faziam as manchetes; hoje ninguém liga mais.

“Teu estado é o cacete!” – vomitou ele, elegantemente, quando informado de que o governador de São Paulo planejava reforçar o controle de estrangeiros que desembarcam em seu estado.

Ao pronunciar a requintada frase, o nobre líder quis reafirmar que continua se opondo firmemente a oferecer proteção ao povo brasileiro contra novas cepas de covid provenientes do exterior. Que todos enfrentem o vírus, pô! Peito aberto, sem medo e sem vacina! Todo o mundo tem de morrer mesmo!

Ainda bem que ele é, que eu saiba, o único dirigente do mundo a pensar assim. Se não, a humanidade estaria sendo dizimada.

No Brasil, ainda temos a sorte de viver numa federação, tipo de organização do Estado que dá aos governadores autonomia para decidir nos respectivos estados; é isso que nos tem salvado. Em outras partes do mundo, quem manda é o governo central, sem possibilidade de discussão. Imagine o Bolsonaro presidindo um país desses! Morticínio garantido.

Cresce a lista de países que apertam o cerco em volta dos que recusam a se vacinar. Aqui estão alguns exemplos:

Turquia
Desde agosto, prova de vacinação é exigida dos profissionais de alguns setores de atividade, entre os quais, professores.

Ucrânia
Desde outubro, a vacinação é obrigatória para funcionários públicos, incluindo professores. Além disso, os não-vacinados não têm acesso a restaurantes, locais esportivos e eventos em geral.

Polônia
A partir de março próximo, professores, funcionários do setor de segurança e agentes policiais serão obrigados a apresentar certificado de vacinação.

Letônia
Desde 12 de novembro, parlamentares não-vacinados estão impedidos de participar de debates e de votar. Além disso, não receberão salário enquanto não se vacinarem.

Itália
Desde outubro, o passaporte covid é exigido de todos que trabalham: funcionários, empregados, operários, professores, policiais, militares. Ninguém escapa.

Dinamarca
Lei votada em novembro autoriza empregadores a não aceitar a presença de funcionários não-vacinados.

Costa Rica
Desde setembro, a vacinação é obrigatória para todos os funcionários públicos.

Croácia
Desde 15 de novembro, tanto funcionários públicos quanto cidadãos que precisam de serviços públicos têm de mostrar o passaporte covid digital.

Áustria
A partir de fevereiro 2022, a vacinação anticovid será obrigatória para todos os adultos. Quem não obedecer será multado em 600 euros (3800 reais). A multa será renovada a cada três meses. Fazendo as continhas, uma família de 4 pessoas que recusar terminantemente a vacina vai pagar, em um ano, a impressionante soma de 9.600 euros (mais de 60 mil reais). Pra bater pé firme na recusa, só sendo abastado.

Alemanha
A Alemanha está em plena mudança de governo. Mas a obrigatoriedade está em estudo e deve ser anunciada brevemente.

Grécia
A partir de 16 de janeiro, os idosos (60 anos ou mais) que tiverem recusado a vacina estarão sujeitos a multa de 100 euros (630 reais) por mês.

Então, quem dá mais?

Cantem todos comigo: “Teu estado é o cacete!”

Nota 1 – Banco Mundial
Nossa sorte, além do guarda-chuva representado pelos governadores, é que ninguém dá ouvidos ao capitão. Segundo levantamento do Banco Mundial, o Brasil é o país latino-americano com menor rejeição à vacina. Uff!

Nota 2
Cacete – Acepções

Já tivemos presidente cacete.

Já tivemos presidente do cacete.

Já tivemos presidente que foi uma cacetada.

Um grande jogador de rugby francês tem um sugestivo sobrenome: Picamoles. (Lembrando que, em francês, o “s” final não é pronunciado.)

Disclaimer: Toda alusão a qualquer pessoa viva ou falecida terá sido coincidência fortuita e não-intencional.

Credulidade

José Horta Manzano

Com o passar dos anos, a gente vai amadurecendo e perdendo certas ilusões. Perder ilusões é chato. O mundo fica mais terra a terra, pão pão queijo queijo. O lado bom disso tudo é que a gente acaba ficando mais blindado contra algumas armadilhas.

Fico impressionado com a credulidade de tanta gente fina. A historinha que li hoje é divertida. Antes de mais nada, precisa saber que Itu, situada a 100km de São Paulo, é conhecida como a cidade dos exageros. Não sei bem quem foi o iniciador dessa legenda urbana, o fato é que funciona como apelo turístico. Todos sabem que Itu é o lugar onde tudo é grande.

Estes dias, um jovem resolveu fazer uma brincadeira. Postou nas redes uma foto com seu cartão de vacinação. Disse que tinha ido a Itu tomar vacina e que lhe tinham dado um cartão enorme. Na montagem, realmente o documento cobre metade do corpo do rapaz. E não é que muita gente acreditou?

A postagem ‘viralizou’, como se diz. Pelo que conta o jovem, “algumas pessoas disseram até que dava pra ter comprado mais vacina com o valor gasto na impressão da carteira de vacinação”.

Pode um negócio desses? Dá até medo de ver a que ponto o povo acredita em tudo o que contam. É comovente, mas também inquietante. A gente começa a entender a razão pela qual tanta gente bota fé nas lorotas do capitão.

Como é que se faz pra ensinar à juventude que não convém acreditar em tudo o que se vê, nem em tudo o que se ouve ou lê? É urgente encontrar solução.

Do jeito que está, vamos direto pro buraco. Com fábricas de notícias falsas brotando por toda parte (inclusive e principalmente no Planalto), a juventude vai estar cada vez mais desorientada.

Imunidade de rebanho

Imunidade coletiva

José Horta Manzano

Depois que os integrantes de hordas não-bolsonaristas resolveram chamar os integrantes de hordas bolsonaristas de gado, os termos que se referem à pecuária devem ser utilizados com muito cuidado, especialmente quando aplicados a humanos.

Dizer que, com a aceleração da vacinação, a imunidade de rebanho será logo alcançada, pode melindrar espíritos mais sensíveis. Talvez os integrantes das hordas bolsonaristas apreciem o elogio, talvez reclamem da implicância. Quanto aos integrantes das hordas não-bolsonaristas, certamente detestarão a expressão, justamente por não admitirem ser confundidos com gado. Gado, como sabemos, são sempre os outros.

Para não ofender nem uns nem outros, a língua – generosa – oferece diversas opções. Eis algumas:

    • Imunidade de grupo
    • Imunidade gregária
    • Imunidade de comunidade
    • Imunidade coletiva
    • Imunidade de população
    • Imunidade de massa

Está vendo? Pra evitar mal-entendidos, fuja da duvidosa imunidade de rebanho. Quando se fala em eliminar febre aftosa, a expressão que convém é exatamente imunidade de rebanho. Para gente, mais vale evitar polêmica.

Imunidade
A palavra deriva do adjetivo latino immunis (=imune), formado pela partícula in (negação) + munem (de munus = obrigação, dever). Na origem, tinha o sentido que hoje damos a isento. Quando determinados cidadãos estavam desobrigados de pagar uma taxa, por exemplo, dizia-se que estavam imunes.

Até hoje, as bagagens do diplomata passam a alfândega sem inspeção, em virtude da imunidade diplomática. Por seu lado, eleitos do povo são protegidos pela imunidade parlamentar.

O sentido que a palavra imunidade adquiriu em medicina é bem mais recente. Só apareceu no século 19, com a popularização da vacina antivariólica. O primeiro registro é da edição de 1865 do Dicionário Médico Littré-Robin (=immunité). De lá, passou às demais línguas.

Vacinação – 9 maio 2021

José Horta Manzano

Volta e meia, algum dos luminares do governo se vangloria da rapidez do processo de vacinação anticovid, gargarejando que o Brasil é o 6° país que mais vacinou. Bolsonaro – que justiça seja feita! – escapou dessa. Pela simples razão de ele jamais pronunciar a palavra vacina. Por seu lado, ministros e assessores, que são valentes e não têm medo de agulha, deitam falação. Mas distorcem a realidade.

Com mais de 200 milhões de habitantes (grande parte dos quais espremidos em insalubres megalópoles), é natural que o número de vacinados no Brasil seja expressivo. De fato é. O balanço de 9 de maio indica que quase 47 milhões de cidadãos já receberam pelo menos uma dose do imunizante.

Dito assim, parece enorme. Mas há que relativizar. Esse número milionário representa, na realidade, apenas 22% da população total, ou seja, apenas um em cada cinco habitantes do território nacional recebeu pelo menos uma dose. A imunização avança tímida. Ainda há muito por vir.

Pelo critério de doses aplicadas por 100 habitantes, bem mais realista que números absolutos, o Brasil se classifica em 78° lugar num total de 196 países, com 22,05 doses.

Os primeiros 15 lugares da lista são ocupados por ilhas e pequenos países pouco populosos. Assim mesmo, há alguns “penetras” nessa faixa. Sobressaem Israel, os Emirados Árabes e, surpreendentemente, o Chile, classificado em 12° lugar, com 82,15 doses aplicadas por 100 habitantes.

Reino Unido e EUA, que aparecem antes da 20ª posição, também estão muito bem colocados. Seguem-se os países europeus. Uruguai, onde já foram aplicadas 57,73 doses por 100 habitantes, também merece destaque.

Na faixa em que se situa nosso país – a dos que já aplicaram entre 20 e 30 doses por 100 habitantes –, Turquia, Marrocos, China e Argentina nos fazem companhia.

O que dá angústia é ver países ultrapopulosos como Egito, Congo e Vietnã, cada um com cerca de 100 milhões de habitantes, ainda estacionados nas últimas posições, sem terem aplicado nem uma dose. Perigam tornar-se viveiros de novas cepas, quiçá resistentes às vacinas atuais. Se isso acontecer, o mundo pode ir se preparando para a 4ª onda, a 5ª, a 6ª…

Para quem tiver curiosidade de ver a lista completa, deixei o pdf à disposição aqui, no site deste blogue.

Apontando soluções

by Renato Luiz Campos Aroeira, desenhista carioca

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Como todos sabem, brasileiro é sempre muito bom para apontar os principais problemas do país mas não costuma se esforçar muito para encontrar soluções para cada um.

Tendo em vista o desânimo generalizado com as crises sanitária, econômica, social e política que vêm atrapalhando nosso sono, decidi sugerir algumas alterações no comando dos ministérios que poderiam ajudar a nos tirar do buraco em que nos metemos acidentalmente.

Convido a todos para acrescentarem suas próprias percepções e sugestões. Alerta importante: todas as indicações têm de ser feitas com base na expertise de cada ministro; apenas nomes técnicos serão considerados.

Mãos à obra:

  • Tira o Ernesto Araújo e põe o Pazuello nas Relações Exteriores: Ué, não é uma questão de logística colocar embaixadores em postos estratégicos para convencer os organismos internacionais multilaterais (como a ONU e a OMS) e os líderes do G-20 que o Brasil é exemplo de controle da pandemia? Pode ser que ele confunda a Albânia com a Alemanha (um lapso compreensível, considerando que o nome de ambos os países começa com Al), mas pra tudo dá-se um jeito no final, pode acreditar. Outro benefício é que ninguém vai nem notar a mudança de chefia do Itamaraty; afinal, esses dois países são comunistas e nós não queremos mesmo estreitar relações com essa gente.
  • Tira o Guedes e põe Salles na Economia: Ué, ele não é especialista em passar a boiada enquanto a imprensa está preocupada com o mimimi do negacionismo de Bolsonaro? Aproveita e deixa passar as reformas tributária, administrativa e política.
  • Tira a Damares e põe ela no Meio Ambiente: Ué, mulher sabe cuidar muito melhor das plantinhas.
  • Tira o Milton Ribeiro e põe o Augusto Heleno na Educação: Ué, ele não é especialista em segurança institucional? Quer área mais crítica que a educação para garantir que o futuro do país vai estar mais seguro nas mãos de um militar? Além disso, ele vai saber educar melhor nossa juventude a respeito da oportunidade e funcionalidade da decretação de um novo AI-5.
  • Tira o Marcos Pontes e coloca ele no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos: Ué, ele já foi pro espaço e, portanto, já sabe que a terra é redonda, né? Por isso, ele vai ser muito útil para modernizar as diretrizes do ministério e colocar o Brasil de volta na rota da Renascença, em especial no que tange aos direitos humanos. Além disso, ele vai poder aplicar novas tecnologias na área dos direitos reprodutivos da mulher.
  • Tira a Teresa Cristina e põe ela no Ministério da Saúde: Ué, lá ela vai poder falar com muito mais propriedade sobre os efeitos benéficos dos gases estufa e dos agrotóxicos para fazer avançar os limites das áreas destinadas à pecuária e garantir uma alimentação mais farta e mais diversificada para as populações mais carentes, sem ter de pagar muito por isso. Além disso, ela deve ter muito mais experiência na vacinação em massa…mesmo que de bovinos.

Pronto, aí está. A lista de trocas sugeridas pode não ser exaustiva, mas certamente servirá de inspiração para a indicação de novas alterações ministeriais.

Nota para os pessimistas de plantão: Se nenhuma dessas trocas funcionar tão bem na prática quanto imagino, sugiro que se tire Bolsonaro e se coloque a neozelandesa Jacinda Ardern na presidência. O quê?? Não pode porque ela não foi eleita vice na chapa de 2018? Bobagem! Nada que o STF não dê um jeitinho, né não?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

As milhões

José Horta Manzano

Do latim, herdamos coisas boas, sem sombra de dúvida. Mas junto vieram uns espinhos. Os gêneros gramaticais, por exemplo. Pra que atribuir gênero às coisas? Só Júpiter sabe.  Por que uma porta é feminina enquanto um portal é masculino? São sutilezas que só fazem atrapalhar. Ah, que inveja do inglês, que conseguiu desatar esse nó há séculos. Mas os gêneros gramaticais fazem parte de nossa língua e somos obrigados a lidar com eles.

A desastrosa inação do governo federal gerou uma situação de angústia em que a vacinação ocupa o lugar central. Assisti ao Jornal Nacional, coisa que não fazia havia décadas. Por acaso, descobri que as edições antigas ficam disponíveis no YouTube. Na deste sábado, notícias relativas à vacinação preenchem metade do tempo; a outra metade é dedicada às trapalhadas do presidente e a notícias variadas. Imagino que, pouco mais pouco menos, sejam essas as proporções todos os dias.

Não só o jornal da tevê fala de vacina. O assunto está em todas as bocas e a mídia acompanha. Já vi várias vezes algum escriba se exprimir assim: “as 30 milhões de doses foram prometidas”; e também assim: “são dadas como certas 42 milhões de doses”.

Há que distinguir entre fala coloquial e artigo de jornal. Na fala de todos os dias, é permitido omitir um plural aqui e ali, tomar um atalho e esquecer o verbo, estropiar algum gênero gramatical. Ninguém vai olhar feio. Já na escrita séria, são caminhos a evitar. Um escorregão pode, às vezes, comprometer a seriedade de todo um artigo.

Por sua natureza substantiva, o numeral milhão é percebido como masculino. Ninguém dirá “uma milhão”, não é? Pois a regra que vale para “um milhão” vale para qualquer outra quantidade expressa em milhões. Ao fim e ao cabo, milhão será sempre percebido e tratado como se ao gênero masculino pertencesse.

Admito que soa esquisito escrever que os 30 milhões de doses foram prometidas”, mas assim são as coisas; se milhão pede o artigo no masculino, não há jeito de escapar. Reestruturar o trecho é uma solução. Para deixar a frase menos bizarra, o jeito é reescrevê-la. Pode-se reformular, por exemplo, assim: “as doses prometidas, que deverão ser da ordem de 30 milhões”. Pronto, o recado foi dado sem agressão à concordância.

Coragem, gente! Um pouco de criatividade não faz mal a ninguém.

Avanço da vacinação

José Horta Manzano

Eu gostaria muito que 300 milhões de doses de vacina chegassem semana que vem ao Brasil e que, antes da Páscoa, todos os habitantes estivessem imunizados.

Mas o que se vê na Europa é inquietante e não permite excesso de otimismo. Até mesmo países que foram prudentes e encomendaram vacinas com grande antecedência estão recebendo a conta-gotas.

O gargalo está na produção. Pelo que se vê, os laboratórios não dão conta da monstruosa demanda. Os primeiros a encomendar são os primeiros a ser atendidos, diz a prática comercial.

Se essa lógica for realmente seguida, o Brasil, que bobeou e só começou a encomendar agora, vai ter de ser paciente. Quando 2021 terminar, só uma (pequena) parte da população terá sido vacinada. Os demais vão ter de esperar 2022.

 

Avanço da vacinação no mundo
(Situação em 21 janeiro 2021)

Israel, o campeão da rapidez, encabeça a lista: já vacinou 37% da população. Seguem-se pequenos países, como Emirados Árabes, Gibraltar, Seychelles, Samoa, que já imunizaram mais de 10% da população.

Os primeiros países importantes vêm a seguir: República Tcheca e Reino Unido, ambos com 7,5%. Logo após, aparecem os EUA, que já vacinaram 5,4% dos habitantes.

Daí para baixo, a porcentagem vai diminuindo. Alguns exemplos:

Espanha    2,2%
Itália     2,1%
Canadá     1,9%
Alemanha   1,6%
Suíça      1,3%
França     1,2%
Portugal   1,0%
Argentina  0,6%
Chile      0,3%

O Brasil aparece no finzinho da lista, com 0,07% da população imunizada. Falta um bocado.

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ânimo!

Tuíte – 18

José Horta Manzano
Nenhum país deseja importar doentes nem doenças contagiosas. A importação de turistas doentes periga sobrecarregar o sistema nacional de saúde. Pior ainda, o forasteiro doente é foco de transmissão da enfermidade, que pode se alastrar pela população local.

Dito isso, vai aqui uma recomendação aos céticos, aos antivax e aos outros hesitantes: vacinem-se! Se e quando o imunizante estiver disponível no Brasil, naturalmente.

É bem possível que, dentro em breve, numerosos países comecem a exigir de todo visitante estrangeiro que prove ter sido vacinado contra a covid. Portanto, seja para dançar um tango em Buenos Aires ou andar de xícara na Disneylândia, é mais que provável que exijam prova de vacinação.

E não faça essa cara de espanto. Já hoje há muitos países onde não se entra sem ter sido vacinado contra a febre amarela, pois não? E isso não escandaliza ninguém.

Incompreensível

José Horta Manzano

Por que é que Bolsonaro é contra a vacinação anticovid?

Ele mesmo tem repetido, desde que a pandemia se instalou no país, que o bom desempenho da economia é essencial para ele conquistar um segundo mandato. Com a doença se alastrando, é inevitável que medidas de contenção continuem em vigor: confinamento, distanciação social, teletrabalho, entre outras. São medidas que, somadas aos hospitais transbordantes, freiam o bom andamento econômico do país. E o presidente sabe disso.

Nesta altura do campeonato, a única providência radical para acabar com a epidemia é a imunização coletiva. Para chegar lá, o caminho mais direto é a vacinação rápida e generalizada. Não é possível que doutor Bolsonaro não entenda isso; o moço é empacado, mas (supõe-se que não chegue) a esse ponto.

O raciocínio é simples e cristalino. Sem vacina, a doença vai continuar por meses e anos a perturbar todas as atividades – transportes, serviços, turismo, produção industrial, exportação. Em resumo, a economia vai continuar semiparalisada. Com vacinação generalizada e levada a toque de caixa, a recuperação poderá até ocorrer antes do fim de 2022. Um trunfo para o candidato à reeleição!

Por que é que Bolsonaro é contra a vacinação anticovid? Não é incongruente? Só vejo uma explicação, embora ela seja tão fora de esquadro que é difícil acreditar: se Sua Excelência age assim, será para contentar sua milícia de devotos.

De fato, entre os fanáticos, há quem acredite que a Terra é plana, há os que juram que o homem nunca pisou na Lua, há ainda os que estão certos de que o clã Bolsonaro é virtuoso e Trump venceu a eleição. Há, naturalmente, ruidosa parcela que tem medo que a vacina os transforme em jacarés. Por essa alucinante hipótese, doutor Bolsonaro estaria se mostrando hostil à vacinação unicamente para contentar seus seguidores e alimentar-lhes a ignorância.

Parece enorme demais pra ser verdade, não? Se minha hipótese for verdadeira, nosso doutor é ainda mais parado do que eu imaginava. Seu comportamento contenta os devotos, é verdade, mas leva ao desespero os demais, que formam a imensa maioria dos eleitores. As eleições estão logo ali na esquina, que não falta tanto assim pra 2022. Na hora de votar, todos se lembrarão do sufoco que passaram quando Bolsonaro bloqueava a vacinação no Brasil enquanto o mundo inteiro se imunizava. Brasileiro tem memória curta, mas nem tanto.

Falando em jacaré, vale lembrar o ditado que se usava antigamente e que cabe aqui como augúrio de ano novo para doutor presidente: «Deixe estar, jacaré, que a lagoa há de secar».

A roupa velha do rei

Marcelo de Moraes (*)

Faz sentido Jair Bolsonaro demonstrar tanta alegria ao participar de um evento que coloca em exposição os trajes usados por ele e pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, no dia da posse. Certamente, ao rever as roupas, o presidente viaja de volta a um tempo em que, recém-consagrado pelas urnas, tinha muito menos preocupações.

Aparentemente, o governo não dimensiona a ansiedade desesperada das pessoas que esperam pela vacinação, depois de nove meses de pandemia e quase 180 mil mortes. Talvez o presidente também não tenha escutado o recado das urnas, que lhe contaram que seu apoio não serviu para impedir a derrota da maioria dos seus aliados. O desgaste sofrido nos dois primeiros anos de administração e o negacionismo em relação ao coronavírus já estão cobrando uma alta conta política.

(*) Marcelo Moraes é jornalista. O texto é excerto de artigo de 8 dez° 2020.

Você tem carteira?

José Horta Manzano

O especialista em relações internacionais Jamil Chade, baseado em Genebra, foi durante anos correspondente do Estadão. Na coluna que assina atualmente no UOL, trouxe hoje informação importante e pra lá de preocupante.

Faz alguns meses que a ONU, diante do descalabro que a pandemia representa especialmente para países menos afortunados, instituiu um programa especial visando a garantir, na medida do possível, que todos os habitantes do planeta tenham acesso à vacina anti-covid. O programa, chamado Covax, tem exigido alentado esforço de coordenação.

Até o presente, o Covax já recebeu a adesão oficial de 95 países. A Europa inteira e até a China confirmaram presença. No começo, o governo brasileiro fez corpo mole. Talvez, sem confessar, contasse com a mão amiga e benevolente de um Trump firme no governo que, em atenção à sólida amizade que tem com nossa primeira famiglia, nos garantiria, a tempo e a hora, acesso às vacinas americanas. Em quantidade ilimitada e ao melhor preço.

O tempo passou, Trump rodou e o plano gorou. Ao fim e ao cabo, o Brasil se encontra hoje em posição precária. O programa Covax oferecia a cada país o direito de comprar vacina suficiente para um mínimo de 10% e um máximo de 50% da respectiva população. O Brasil optou pelo mínimo: 10% dos habitantes. Portanto, a menos que comece a chover vacina nos próximos meses, é magra a chance de o distinto leitor ser beneficiado pelas vacinas do programa Covax: não mais que 1 chance em 10.

Se não conseguir ser atendido (e se a “vacina do Doria” não for suficiente para toda a população brasileira), só resta um caminho: dar uma carteirada pra furar a fila. Falando nisso, você tem carteira?

Observação
Apesar da importância, o assunto tem sido pouco divulgado entre nós. Note-se que é compreensível. Ficaria estranho se a população soubesse que um governo que, além de ser anti-vacina e estar infestado de terraplanistas e negacionistas, se inscreveu na fila dos que querem receber vacina. Pegava mal pra cachorro. A militância era capaz de entrar em greve. E os bots também.

Que clique aqui quem quiser conhecer a história tim-tim por tim-tim.