Lula em Genebra

José Horta Manzano

O distinto leitor há de se lembrar que, pouco antes das eleições de 2018, Lula da Silva solicitou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que desse parecer sobre a possibilidade de ele – então preso em Curitiba – se candidatar. Numa liminar, o Comitê recomendou ao governo brasileiro que deixasse o Lula ser candidato. Nosso governo repeliu a recomendação, numa decisão, a meu ver, acertada. Aceitar a injunção teria ofendido a soberania do Brasil e de seu Judiciário.

Aproveitando seu atual giro turístico em terras europeias, o ex-presidente desembarcou em Genebra faz dois dias. Veio pressionar pessoalmente o Comitê. Seu objetivo deixou de ser a candidatura às últimas eleições; essas são águas passadas. Quer agora que a entidade lhe conceda uma espécie de salvo-conduto, de absolvição ampla e irrestrita – uma carta branca que apague e anule os erros do passado, as condenações, as penas e suas consequências.

Genebra (Suíça), seu lago e seu jato d’água

A empreitada não é simples. Sem querer prejulgar o processo, é difícil imaginar o egrégio Comitê de Direitos Humanos da ONU afrontando a Justiça brasileira em decisão colegiada e final. Lula já foi condenado em três instâncias. Não dá mais pra falar em perseguição contra sua inflada pessoa unicamente por obra de doutor Moro.

Quanto ao resultado da solicitação, quem viver verá. Pelo momento, fico imaginando que o Lula deve ter economizado um bocado pra poder se oferecer o luxo desta viagem. Paris e Genebra são conhecidas pelo elevadíssimo custo de vida. Como é que ele faz pra pagar viagem, hotel, refeições e tutti quanti? O homem deve estar com dinheiro saindo pelo ladrão. (Sem alusões.) Sua bênção, padrinho!

Lula em Paris

José Horta Manzano

Já contei aqui que Lula da Silva esteve em Paris, segunda-feira passada, convidado pela prefeita Anne Hidalgo para receber o título de cidadão honorário da cidade. Considerando que o antigo sindicalista já coleciona duas dezenas de diplomas de doutor ‘honoris causa’, concedidos por universidades ao redor do planeta, um título a mais ou a menos não deveria fazer diferença. Acontece que a notícia causou rebuliço na França e, por motivos diferentes, também no Brasil.

A prefeita de Paris é filiada ao Partido Socialista. Parlamentares do campo político oposto ao dela acusaram madame de promover confusão entre o público e o privado. Censuram Madame Hidalgo – que é candidata à reeleição – por gastar dinheiro dos parisienses para promoção pessoal e fins eleitorais. Ela nega.

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No Brasil, o vice-líder do governo na Câmara, deputado Marco Feliciano, foi outro que não apreciou nadinha a passagem do Lula por Paris. Fiel ao estilo escrachado de doutor Bolsonaro, trepou-se nas tamancas e mandou a equipe preparar ofício dirigido ao presidente da Casa. Em linguagem barroca, com palavras pescadas em dicionário arcaico, a carta sugere que um certo Monsieur Cassandri seja homenageado pela Câmara, em protesto contra a distinção concedida ao Lula.

A lembrança me deixou surpreso. O deputado Feliciano tem excelentes assessores. Monsieur Jacques Cassandri foi o autor intelectual do ‘casse du siècle’ – assalto milionário e espetacular perpetrado em 1976 contra um banco de Nice. Já contei a história num artigo de 2018. Foi cinematográfico. Para recordar, clique aqui.

Por seu lado, achei que o deputado Feliciano está desperdiçando dinheiro nosso. Entre bolar, pesquisar, preparar, escrever, enviar ao destinatário e publicar o ofício nas redes, horas de trabalho foram gastas nessa brincadeira. Os assessores deixaram de fazer coisa mais útil. Não devem ter grande coisa que fazer.

Para encerrar, quero relatar o trecho de entrevista que o Lula concedeu ontem, 4 de março, à rádio pública francesa. Por aqui, ninguém está muito interessado em saber se ele roubou ou corrompeu. O que preocupa os europeus é o descaso com que o Brasil cuida da Amazônia.

Na hora de enfrentar jornalistas, o Lula tem mais jogo de cintura que doutor Bolsonaro. Fez um rápido discurso em favor de maior empenho no desenvolvimento sustentável da Amazônia. E foi nesse ponto que cometeu um ato falho(*).

Declarou que a conservação da Amazônia era importante «para o bem da imunidade». Corrigiu-se em seguida, mas, para mim, já era tarde. Por sorte, a tradução simultânea passou por cima da escorregadela; assim, pouca gente se deu conta.

Fiquei com impressão de que o desejo mais ardente do Lula é conseguir imunidade parlamentar ou presidencial. Ele ainda teme ser levado de novo ao cárcere. Como se sabe, a imunidade o livraria do enrosco.

Ato falho
Segundo o Houaiss, é o «aparecimento, na linguagem falada ou escrita, de termos inapropriados que supostamente remetem para conteúdos ou desejos recalcados referentes ao objeto, à pessoa ou ao fato em questão».

Guerra de religiões

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 fevereiro 2020.

Fosse mineiro, doutor Bolsonaro teria aprendido, desde criança, que mingau quente se come pelas bordas. Está evidente que não aprendeu. Em repetidos ataques, o homem mira sempre o topo da hierarquia. Desde os tempos em que era candidato, já assestou golpes pesados à China (nosso maior parceiro comercial), à França (nosso único fornecedor de submarinos), à Argentina (nosso vizinho mais significativo), ao Congresso (que, na hora do aperto, será o garante da continuidade de seu mandato), à CNBB (congregação maior da Igreja no Brasil). O homem é desastrado. Esses ataques frontais têm alto potencial destrutivo. De ricochete, o próprio presidente sai um pouco chamuscado em cada episódio. E, por extensão, o Brasil e o povo perdem.

Em 2022, nem chineses, nem franceses, nem argentinos votarão em nossa eleição presidencial. Portanto, não há por que perder tempo a acariciá-los. Mas os brasileiros católicos, ainda majoritários no país, sim, votarão. Muitos deles estão se sentindo incomodados com a deferência que doutor Bolsonaro tem demonstrado para com as denominações neopentecostais. Essa tendência ficou ainda mais clara quando ele propôs alívio fiscal à conta de luz de templos; quando declarou desejar ministro ‘terrivelmente evangélico’ para o STF; quando se deixou filmar de joelhos, em posição de submissão, diante de um pastor paramentado.

Não se espera que o presidente de todos os brasileiros abrace uma raça, uma origem ou uma religião em detrimento das demais. Ao passar por cima dessa regra de bom senso, doutor Bolsonaro aciona perigosa armadilha que pode fechar-se em volta dele mesmo. Decerto avisado por seu entourage, mandou que a ministra Damares entrasse em contacto com dignitários católicos pra apagar o incêndio. Talvez dê certo, mas desagravo emitido pessoalmente pelo presidente teria mais força.

Por seu lado, o esperto (e agora experto) Lula da Silva já pressentiu o trunfo que se lhe apresenta. Nas trevas que envolvem a atual presidência, descobriu um fiapo de luz que pode ajudá-lo a subir de volta ao palco iluminado. O raciocínio é simples: se Bolsonaro for para um lado, ele tem de ir para o outro; tem de captar a simpatia dos abandonados por Bolsonaro. Tendo em vista o bate-cabeça que corre solto pelos corredores do Planalto – e que desagrada a muita gente –, a estratégia do Lula não tem nada de adoidada. Paparicar o novo governo argentino pode dar manchete, mas não traz votos. Há caminho mais direto.

Na onda do aceno que, ainda na cadeia, tinha recebido do papa Francisco, Lula fez questão de visitar Sua Santidade. Obra do acaso ou não, a viagem caiu bem no dia em que o ex-presidente tinha de comparecer a uma audiência judicial. Conseguiu adiamento e embarcou. E a notícia saiu em todos os jornais, tevês e portais. Protestantes, judeus e maometanos terão ficado indiferentes. Evangélicos terão feito muxoxo. Já católicos terão visto com alívio um importante personagem que, embora caído, dá mostras de estar bem com a Igreja. Faz um ano que os fiéis da religião majoritária no país se encontram reféns do estranho estrabismo que afeta o presidente, distorção que o faz considerar que adeptos de denominações neopentecostais valem mais do que os demais brasileiros.

Se, um quarto de século atrás, um futurólogo profetizasse que o Brasil destes anos 20 estaria armando a bomba-relógio de um conflito religioso interno, seria tachado de embusteiro. Naquela época, ninguém se dava conta de que o país era percorrido por tão profundas linhas de fratura, só à espera de um estopim. De lá pra cá, a estratégia do nós x eles fez grande estrago. Agora cada cidadão se equilibra entre laços de pertencimento de ordem étnica, sexual e, agora se vê, religiosa. Conflitos religiosos são a marca de países atrasados. Na Europa, num passado distante, guerras de religião chegaram a durar séculos. Hoje, estão extintas. Só faltava agora este florão da América, iluminado ao sol do Novo Mundo, seguir por esse caminho de pedra e retroceder às trevas medievais.

Da infidelidade

José Horta Manzano

Da fidelidade, o dicionário diz que é «característica do que é fiel, do que demonstra zelo, respeito por alguém ou algo». Tem razão, mas falta ainda explicar de onde vem esse zelo, quanto dura e por que acaba. Cada caso é um caso.

Quebra de fidelidade amorosa, praticamente todos sabemos o que é. É raro encontrar quem nunca tenha sido autor, vítima ou coadjuvante. Além disso, zilhões de manuais de autoajuda autopsiam a infidelidade.

Fora do círculo amoroso, numerosos outros tipos de infidelidade correm por aí. A maior parte das pessoas depende de alguma atividade para ganhar a vida. É exatamente onde despendem mais tempo – oito horas por dia ou mais. É natural que as mostras mais frequentes de infidelidade ocorram nesse ambiente.

Na área política, os atores costumam estar particularmente excitados. Quanto mais alta a função, tanto mais exacerbado será o nível de infidelidade. Eleitos que abandonam partidos são multidão. Incontáveis são os que, uma vez empossados, ‘se esquecem’ de promessas de campanha. Viração de casaca é corriqueira. Na presidência da República, então, o fenômeno é especialmente agudo.

Não é coisa nova. Nos tempos do imperador, a infidelidade já estava na moda. A deposição de D. Pedro II, por exemplo, foi resultado de tremenda infidelidade dos galonados que haviam jurado defender o chefe de Estado e a Constituição. Presidentes infiéis para com o eleitorado, sempre houve. Ultimamente, no entanto, o problema parece agravar-se.

Logo em seguida à entrada do novo século, Lula da Silva, alavancado pela promessa de ‘acabar com a miséria’, chegou lá. Ainda há quem acredite que ele compriu o prometido. Não é minha análise. O desempenho do ex-sindicalista foi marcado por senso de oportunismo e soberbo desprezo à palavra dada. Ficou com os milhões e entregou migalhas. Seu programa de transferência de renda não passa de assistencialismo – um curral com entrada e sem saída, que transforma os assistidos em dependentes eternos. O Lula foi infiel às ideias e às esperanças dos que o puseram lá em cima. O resultado foi pífio pra tanta empáfia.

O presidente atual não fez melhor. De natureza paranoica, bombardeia todos os que possam representar ameaça – real ou imaginária. Já metralhou muita gente fina, companheiros de longa data, pessoas que o ajudaram a chegar lá. Todos os dias, o Brasil desperta inquieto e curioso pra saber se nova cabeça rolou.

Taí uma parecença entre as duas figuras mais impactantes deste começo de século: a constância na infidelidade. Se é que é permitido exprimir-se assim. Mas é permitido constatar que ambos têm feito um mal danado ao povo sofrido que tinha depositado esperança neles.

Beicinho

José Horta Manzano

Como se ainda precisasse, doutor Bolsonaro deu mais uma prova de não ter entendido em que consiste sua função. Para o bem ou para o mal, ele representa nosso país perante as demais nações do planeta. Nossa Constituição estipula que, além de chefe do governo, ele é chefe do Estado brasileiro – realidade que ainda não lhe entrou na cabeça. São dois bonés. A cada momento, precisa saber qual deles enfiar no cocuruto.

A função de chefe de Estado é honra suprema. Governos são efêmeros, o Estado fica. Mas nossa Constituição determina que assim seja; não há nada que se possa fazer, a não ser mudar a Lei Maior. Enquanto isso não acontece, temos de ir levando o barco com os remos que temos.

O chefe de Estado é o representante maior do povo brasileiro. Em relações exteriores, principalmente, não convém misturar as duas funções. Governo, com suas futricas, intrigas e conchavos, é uma coisa; Estado é bem diferente.

Faz algumas semanas, señor Fernández foi eleito presidente da Argentina, país vizinho e hermano. É praxe que se prestigie a tomada de posse de todo novo dirigente de país vizinho e hermano. Não se espera que doutor Bolsonaro compareça pessoalmente à cerimônia de entronização de todos os presidentes do mundo. Fizesse isso, passaria o tempo todo viajando, coisa que, em princípio, não é conveniente. Para nós, no entanto, a Argentina não é um país qualquer. Terceiro parceiro comercial do Brasil, sócio no Mercosul, vizinho de parede. O par Brasil – Argentina corresponde ao casal França – Alemanha: vizinhos, rivais tradicionais, sócios, parceiros inseparáveis.

Ao ser informado de que Lula da Silva e Evo Morales perigam aparecer na hora da festa, doutor Bolsonaro fez beicinho e bateu o pé: «Eu não vou, nem ninguém do governo vai.»

O que é isso, santo Deus? Tomada de posse de presidente não é festa de família, em que parentes brigados não comparecem, com medo de dar de cara. Doutor Bolsonaro não se dá conta de que, ao se comportar dessa maneira, dá recado errado. É como se o Brasil inteiro estivesse menosprezando o chefe do Estado vizinho. O Brasil inteiro fazendo beicinho e batendo o pé. Isso é coisa de adolescente espinhudo que ainda não consegue entender o mundo em que vive.

O próprio Bolsonaro já fez coisa parecida, se não pior. Quando tomou posse, todos hão de se lembrar que o convidado de honra era Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, pessoa detestada por meio mundo. Que se saiba, nenhum convidado deixou de comparecer em virtude da antipatia do hóspede incômodo. É sempre possível evitar aparecer na mesma foto que um desafeto. Presidentes dispõem de um exército de assessores justamente pra cuidar dessa parte.

Pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por Lula da Silva nem por Evo Morales. Mas, gostemos ou não, ambos foram presidentes. Por muitos anos. Não me parece anormal que sejam convidados para a cerimônia em Buenos Aires.

Mas não adianta. Ainda que passasse anos no Planalto, doutor Bolsonaro dificilmente se compenetraria do alcance de suas palavras e da solenidade de suas funções. Ele não consegue desgrudar do chão e alçar voo majestoso para mostrar que está acima dessas platitudes. Um presidente que faz beicinho para o vizinho… Mas vejam só. Só faltava essa.

Pior a emenda

(Adendo acrescentado em 10 dez° 2019)

Depois de levar uma cotovelada de alguém de bom senso, doutor Bolsonaro resolveu mandar o vice-presidente como representante do Brasil na cerimônia de tomada de posse de señor Fernández. Seria mal menor, mas o estrago já estava feito. Não tivesse feito beicinho e batido o pé, até seria uma saída honrosa mandar o segundo personagem do Estado. Mas… honra é artigo raro na prateleira de qualidades presidenciais. Fazer o quê?

Palacio Quemado

José Horta Manzano

Não é qualquer país que tem o governo funcionando num palacete chamado “Palacio Quemado”. Pois é o caso de La Paz, Bolivia – cidade que não tem feito jus ao nome, nestes dias de tumulto. Paz não há. Desconheço a origem do nome do palácio. À primeira vista, trata-se de edifício que já foi vítima, no passado, de incêndio. Pelo histórico do país hermano, não espantaria que a queima do edifício não tenha sido acidental, mas provocada.

Os incêndios continuam. Residências de dignitários de alto coturno vêm sendo queimadas. Francamente, a destruição pelo fogo parece fixação nacional. Pressionados pelos eventos, pelas manifestações e, principalmente, pela deserção do exército e da polícia, o governo acabou caindo. Acuados, os dirigentes tinham subido ao telhado quando, espertamente, as forças armadas e a população descontente retiraram a escada. Não houve jeito. Tiveram de pedir arrego e arreglo.

Chegou o capítulo final da longa novela que ali se desenrola há quase 14 anos, desde a eleição de Morales, ainda nos tempos de nosso jurássico mensalão. Imagine o distinto leitor que, quando señor Evo Morales foi eleito pela primeira vez, Chávez ainda encantava Lula da Silva com a lorota dos dólares do petróleo. Foi quando um Morales recém-eleito nacionalizou uma usina da brasileira Petrobrás, cujo maior acionista é o governo brasileiro. Um aparvalhado Lula deixou por isso mesmo.

Evo Morales
by Darío Castillejos, desenhista mexicano

O presidente da Bolívia é um recordista de longevidade. Nos 26 anos que correm de 1980 a 2006, ano de sua primeira eleição, nada menos que 19 presidentes governaram o país, boa parte deles ditadores militares. Isso dá média de um ano e quatro meses para cada mandato. Desde os tempos de Simón Bolívar (que, além de dar nome ao país, presidiu-o por 139 dias), nunca se havia visto presidência tão longa.

Señor Evo Morales um dia teve apoio e ajuda de Cuba, Venezuela, Equador, Nicarágua, Argentina e, mais que todos, do imenso Brasil do PT. Sem o Brasil, a Bolívia é país economicamente inviável. Quem compraria o gaz, de que o país é flatuloso?

Como é fácil de imaginar, Cuba, Venezuela, Argentina e Rússia – cada um por motivo próprio – protestaram contra a renúncia de Morales, que classificam como golpe de Estado. Pode até ser. Mas não há que passar em branco as manobras pouco republicanas que o resiliente presidente boliviano empreendeu para agarrar-se ao Palacio Quemado. Se há golpe hoje contra ele, golpes já houve de autoria do próprio. A coisa vai, um dia a coisa volta.

Mais pragmático, o governo mexicano oferece asilo tanto a Evo quanto aos que lhe são chegados. Boas-vindas ao novo governo do país hermano, que é o vizinho com o qual o Brasil tem, de longe, sua mais longa fronteira: quase 3500km. Vamos torcer para que, desta vez, consiga presidir civilizadamente o país. Ah, e que nenhuma propriedade brasileira seja encampada!

Presidente sem partido

José Horta Manzano

Até quem tem bons olhos, às vezes atira no que vê e acerta o que não tinha visto. Quem vive na escuridão, então, é useiro e vezeiro desse tropeço. Que nenhum cego nem nenhum militante pacifista se ofenda, nem me entenda mal: estou falando por metáforas. Nesta fábula, todos veem, ninguém atira e (quase) ninguém tropeça.

Doutor Bolsonaro – personagem central da historinha – está entre os que vivem na escuridão. E olhe que minha fala não está carregada de preconceito de classe. Nosso presidente, apesar de ter origens humildes, está há 30 (trinta) anos na política. É uma existência! Imagine o que uma pessoa esforçada teria aprendido em trinta anos de boa-vida, bom salário, trabalho sem patrão, horário praticamente livre, apartamento funcional, mordomias e todo o resto. Em vez disso, nada: o homem continua encruado como se tivesse saído mês passado de uma (péssima) escola primária.

É por isso que ele, embora fale pelos cotovelos, parece não dizer coisa com coisa. Só tem a casca: terno, gravata, cabelo (mal) cortado, ar sério e carrancudo. Mas falta o miolo. De aparência, convenhamos, é melhor que um Lula da Silva. Mas é só. Ambos falam sem conteúdo. O presidente anterior, hoje cumprindo pena em Curitiba, tinha seguido caminho semelhante. De origem humilde, conciliou a vida boa de líder sindicalista com a boa-vida de deputado federal. Apesar disso, trinta anos mais tarde, continuava acreditando que a terra era plana.

Estou me perdendo. Comecei falando de Bolsonaro e, lá pelas tantas, me dei conta de que ele e o Lula têm percurso comparável. Origem humilde, trinta anos de bem-bom, verborragia descontrolada. Placar final: pouca instrução, muito palpite, muita opinião pessoal, mas pouco miolo. Mas o Lula não tem nada que entrar nesta fábula. Xô!

Minha intenção é comentar uma frase que doutor Bolsonaro pronunciou ontem, frase que, apesar da aparência desconexa, encobre uma verdade. «Eu posso ser um presidente sem partido» – foi o que o homem disse, entre uma xícara de chá verde e um confeito de gengibre. A frase, todos perceberam, tem a ver com a operação de desmanche do PSL, partido pelo qual ele se elegeu. Sem ousar admitir, ele já deixou subentendido que perderá o apoio desse partido e que provavelmente jamais será acolhido com reverência em nenhum outro.

Lá no começo, eu disse que Bolsonaro costuma atirar no que vê e acertar o que não tinha visto. Neste caso, atirou no que estava vendo: o derretimento do partido que lhe dava sustento. Mas acertou ao dizer que um presidente pode sobreviver «sem partido». Eu diria até que, mais que poder, tem o dever de se afastar da politicagem partidária. Pelo menos, em aparência e em público. No paralelo, cada um é livre de trocar dólar como quiser.

O cargo de presidente do Brasil é função dupla. Ao mesmo tempo, o sujeito é chefe do Estado brasileiro e chefe do governo da República. São funções distintas que, fora das Américas, costumam ser atribuídas a pessoas distintas. Se acrescentarmos a essa carga a liderança de um partido, teremos um homem sobrecarregado. Ninguém é super-homem. Quem tenta exercer três funções pesadas ao mesmo tempo vai acabar executando mal o trabalho, ainda que seja bom de bola – o que não é necessariamente o caso de doutor Bolsonaro.

No momento em que veste o terno e sobe a rampa, o entronizado se torna presidente de todos os brasileiros. Nada o impede de continuar filiado a um partido, mas o bom senso o aconselha a fazer política partidária o mais discretamente possível. Justamente para não melindrar os que não aderem a esse partido, mas que são súditos do mesmo Estado, à cabeça do qual está o mesmo presidente.

No fundo, um presidente «sem partido» não é ideia absurda. Há outras maneiras de conseguir apoio no Congresso; e doutor Bolsonaro, que já foi congressista por 7 (sete!) legislaturas consecutivas, sabe muito bem disso.

L’État c’est moi

José Horta Manzano

Monsieur Jean-Luc Mélenchon é um político francês. Candidato às últimas eleições presidenciais, seus 19,6% de votos não foram suficientes pra impedir que Emmanuel Macron (24%) e Marine Le Pen (21,3%) fossem alavancados ao segundo turno e o deixassem a comer poeira.

Suas origens espanholas vêm à tona no verbo inflamado. O homem tem cultura sólida, atestada por dois diplomas: Letras e Filosofia. Excelente orador, sua aparição em debates é garantia de animação. Ninguém cochila enquanto ele discursa. Desde a adolescência sua simpatia foi para a esquerda. Milita desde os tempos de estudante.

Faz alguns anos, fundou partido próprio: La France Insoumise – A França Insubmissa, situado à extrema-esquerda do espectro político. Entre os seguidores, muitos são jovens que cuidam de defender a classe trabalhadora. Na realidade, em virtude da acentuada desindustrialização, o operariado tradicional anda rarefeito, em via de extinção. Mas o dom de oratória de Monsieur Mélenchon é magnético. Seu discurso é tão persuasivo que a gente fica com a impressão de que tudo o que ele diz há de ser verdade.

Mélenchon em Curitiba – 5 set° 2019

A justiça francesa não é necessariamente da mesma opinião. Desconfiada de irregularidades cometidas pelo partido dele na prestação de contas da última campanha presidencial, mandou uma equipe em missão de busca e apreensão na sede do partido. Aos berros, um furioso Mélenchon resistiu à ação de procuradores e policiais. Gesticulou, insultou, tentou arrombar uma porta, empurrou gente e até derrubou dois agentes. A um dado momento, em meio a impropérios, lançou: «La République c’est moi! – A República sou eu!».

Pegou mal. Principalmente porque evocou a frase «L’État c’est moi! – O Estado sou eu!», que o rei Luís XIV teria pronunciado faz quase 400 anos. O monarca tinha direito a dizer o que dizem que disse. Afinal, reinava absoluto, e sua palavra era a lei. Quanto a Mélenchon, a tirada soou um tanto grotesca. É muita pretensão pretender encarnar a República.

Ontem, 5 de setembro, o político francês esteve de visita a Curitiba. Foi tomar a bênção de Lula da Silva, político brasileiro que muita gente fina acredita ser de esquerda. Ao sair da sede da PF, onde o ex-presidente está instalado, Mélenchon revelou ter vindo «tomar forças» com o encarcerado.

Embora remota, a possibilidade existe de o tribuno francês ir parar na cadeia, o que explica ter vindo aconselhar-se com o Lula, mestre na matéria.

O barraco armado por Mélenchon quando da chegada dos policiais em missão de busca e apreensão está aqui.

As declarações do francês à saída da PF de Curitiba estão aqui e também aqui.

Outubro de 2021

José Horta Manzano

Pelo sacolejar da carroça, Lula da Silva estará logo livre. Pra determinar a soltura, o STF terá de agir em três tempos: cassar o julgamento do ex-presidente, anular a confirmação da segunda instância e invalidar a reconfirmação do STJ. Dito assim, parece muita anulação de processo, mas nosso tribunal maior tem mostrado desenvoltura no trato de esquisitices.

Se esse for o figurino, o(s) processo(s) volta(m) para a primeira instância e o Lula volta pra casa. Como qualquer cidadão, terá o direito de concorrer a eleições. Não o imagino candidatando-se a prefeito de Garanhuns, sua terra natal. Acredito que vá direto registrar candidatura para a Presidência. Na época da eleição, em outubro de 2021, nosso guia já estará com 76 anos. Seu bom aspecto, no entanto, parece indicar que está em boa saúde. Idade, em si, não é doença.

Supondo que o presidente atual aguente de pé até o fim do mandato, teremos uma situação curiosa. De um lado estará doutor Bolsonaro, que já declarou intenção de candidatar-se à própria sucessão. Do outro, Lula da Silva, concorrendo pela sexta vez.

Vamos agora fazer continha de chegar. Suponhamos que tanto o Lula quanto doutor Bolsonaro contem, cada um, com o apoio de um terço do eleitorado. São os ‘ultras’, os incondicionais, os devotos. Se meus números não estiverem muito longe da verdade, pode-se apostar que ambos têm lugar garantido no segundo turno. É aí que começa o dilema para o último terço do eleitorado, aquele que não reza pela cartilha de nenhum dos dois, mas cujo voto vai decidir a eleição. Que rolo, coronel!

Da última vez, ocorreu algo semelhante. Lula da Silva, retido por compromissos inadiáveis em Curitiba, nomeou procurador pra representá-lo. As pesquisas apresentaram doutor Bolsonaro como o único Quixote capaz de vencer o lulopetismo.

Do Lula, sabíamos que havia permitido o assalto aos cofres da nação. Desgostosa, a maioria do eleitorado não queria um repeteco. De doutor Bolsonaro, não se sabia grande coisa. Seus apoiadores ‘de raiz’, somados aos eleitores que não queriam o lulopetismo de volta, formaram maioria. Vai daí, venceu Bolsonaro.

Desta vez, o nó será bem mais apertado. O Lula continua o mesmo, não mudou nem um nadinha. Persiste em negar beatamente a feia realidade que todos conhecemos. Seus protestos de pureza soam falso. De doutor Bolsonaro – a incógnita da última eleição –,temos agora um balaio de informação. Se ainda estamos procurando suas qualidades, conhecemos bem seus abundantes defeitos.

O dilema, portanto, será pontudo. Todos os que não forem lulistas de carteirinha nem bolsonaristas de coração estarão numa sinuca complicada. Não queremos que nenhum deles seja presidente do país. Mas teremos de escolher ‘entre a peste e a cólera’, como dizem os franceses. Não vai ser fácil. Preparem-se.

Reunião na cadeia

José Horta Manzano

Artigo do jornal argentino Clarín relata a visita feita por Alberto Fernández a Lula da Silva, em Curitiba. Señor Fernández é candidato ao cargo de presidente da Argentina. Sua chapa tem, como vice, ninguém menos que Cristina Kirchner. A ex-presidente, figurinha carimbada da política do país hermano, está atualmente enrolada com a justiça por suspeita de corrupção. Seu processo só não avança devido ao fato de ela ser senadora, cargo que lhe garante imunidade.

O promotor da viagem e mestre-sala do candidato em Curitiba foi o inoxidável Celso Amorim, responsável pela bizarra orientação da política externa brasileira durante os dois mandatos de Lula da Silva.

A frase soltada pelo candidato à presidência argentina, mencionada no início deste escrito, faz sentido. Doutor Bolsonaro é visto com desconfiança pelos argentinos. Mauricio Macri, atual presidente e candidato à reeleição, anda mal das pernas, maltratado pelas pesquisas. Bolsonaro tem dado apoio explícito a Macri. Ao fim e ao cabo, visto que apoiador e apoiado estão na berlinda, cada elogio do apoiador reforça a síndrome do abraço de afogados. Nessa briga, quem sai ganhando mesmo é o candidato Fernández – que leva Cristina a tiracolo. Daí o comentário debochado reproduzido na entrada deste artigo.

Curitiba: o candidato Fernández e o inoxidável Amorim

É consternante notar que, entre os dirigentes latino-americanos, desapareceu toda cautela para evitar acidente diplomático. A própria noção de incidente diplomático está em recesso.

Desde que os governos petistas se puseram a apoiar explicitamente candidatos nas eleições do Equador, da Bolívia, da Venezuela e de outros países ‘amigos’, liberou geral. Atitudes inimáginaveis, pelos cânones da diplomacia tradicional, tornaram-se corriqueiras.

Apoio declarado à reeleição de Trump é o pão nosso de cada dia do entourage de nosso presidente. O próprio doutor Bolsonaro declarou com todas as letras que, caso a dupla Fernández/Kirchner vença as eleições argentinas, o país vai virar uma Venezuela. O troco veio rápido. Em visita a nosso território, o candidato ofendido se permite debochar de nosso presidente. E tudo bem. Admirável mundo novo!

Hacker

José Horta Manzano

No original, o verbo inglês to hack significa cortar grosseiramente. O nome hacker, portanto, designa o sujeito que passa o dia com a faca na mão a cortar, decepar, romper ou rachar. Dado que cortadores profissionais não são multidão, deduz-se que esse substantivo não há de ter sido muito usado nos séculos de antigamente.

A segunda metade do século 20 assistiu a lento movimento de popularização do computador. Alguém teve a ideia de pescar no vocabulário inglês o termo hacker pra designar o perito em segurança informática. No início, o termo indicava o profissional ‘do bem’, que exercia suas funções sem causar dano a ninguém.

Com o passar dos anos e a crescente democratização dos computadores, o número de especialistas mal-intencionados aumentou. Muito agressivo, este novo tipo de hacker age por curiosidade, por pura má-fé, por consciência política ou por interesse financeiro. Diante de um leque tão amplo de motivações, todos nós estamos ameaçados de hackeamento.

O cidadão comum, que não faz parte dos círculos do poder, não precisa temer que sua privacidade seja invadida por razões políticas. Assim mesmo, é aconselhável proteger-se contra ataques movidos por hackers de má-fé, que nunca se sabe – tem muita gente perturbada por aí.

Já os que navegam nas esferas mais elevadas – políticos, magistrados, milionários, grandes empresários – têm de ser espertos. Por óbvio, estão em permanência no olho do furacão, na mira de muitos interesses. Não há problema em usarem o telefone pra dar bom-dia ou pra marcar encontro. O embaraço começa quando têm de manter conversa confidencial, seja verbal ou escrita.

Pra garantir privacidade total, só há um meio: utilizar telefone criptografado(*), daqueles cuja inviolabilidade é garantida. Assim mesmo, o utilizador, seja ele magistrado, político ou empresário, deveria procurar assistência de um perito que o iniciasse nas artes de bloquear tentativas de invasão.

Pode parecer complicado, mas é indispensável. Mentir, mentimos todos. Bobagens, proferimos todos. Atalhos pouco republicanos, tomamos todos. Pra resumir: ninguém é santo. Portanto, mais vale prevenir antes que nossos podres sejam expostos em praça pública.

Antes de fechar, uma reflexão: todas essas revelações não fazem Lula da Silva inocente. Nem Eduardo Cunha. Nem Sergio Cabral Filho. Nem o resto da turma.

(*) Criptografado não me parece palavra adequada a esse caso. O segundo elemento (grafado) desorienta. Melhor seria dizer “telefone criptado”. Acontece que o verbo criptar ainda não está dicionarizado. Um dia, quem sabe.

Birra
Sei que não tem jeito – hacker, hackear e hackeamento vieram pra ficar. Ainda assim, continuo preferindo pirata, palavra muito mais flexível. Dá pra usar: piratagem, pirateamento, piratear, piratinha (já imaginaram “hackinho”?). E mais: piratesco, piratada, piratíssimo. O resto fica por conta da criatividade de cada um.

A bomba e o Bessias

José Horta Manzano

Outro dia, um jovem desequilibrado vestiu agasalho com capuz, saiu da periferia de Lyon (França), foi até o centro da cidade de bicicleta, depositou discretamente, numa rua frequentada, uma bomba fabricada na cozinha de casa e acionou o detonador a distância. A explosão feriu meia dúzia de pessoas. Dois dias depois, o rapaz estava atrás das grades.

Em 2016, ficou famosa uma misteriosa conversa telefônica entre a então presidente Dilma Rousseff e o já ex-presidente Lula da Silva. Era aquela em que a doutora prometia ao chefe mandar o ‘Bessias’ com o ‘papel assinado’ – o título de ministro da Casa Civil, que livraria o demiurgo das agruras da Justiça comum que, como todos sabem, foi feita para o populacho e não para criminosos de categoria. Bastou um curto espaço de tempo pra o Brasil inteiro tomar conhecimento do caso. Com todos os detalhes, hilariantes ou tenebrosos.

Estes dias, o Brasil ficou sabendo de alentada troca de mensagens entre integrantes da força-tarefa da Lava a Jato e doutor Moro, hoje ministro da República. Em praça pública, pra quem quiser ver, estão disponíveis as conversas, tim-tim por tim-tim. E por escrito, o que não deixa de ser melhor que o episódio do ‘Bessias’ da doutora.

Qual é o fio condutor que liga essas três historietas? É a abolição – lenta e gradual, mas inexorável – da privacidade. Golpes diários vêm ferindo de morte a vida particular de cada cidadão. Não dá mais pra escapar. Nem o terrorista de Lyon, nem a doutora, nem o Lula, nem o ministro Moro, nem a turma da Lava a Jato se deram conta de que o mundo mudou.

Telefonema e troca de mensagens são pirateados com facilidade desconcertante. Todo deslocamento físico de quem quer que seja é flagrado por câmeras instaladas por toda parte neste mundaréu que Deus fez. Está cada dia mais difícil refugiar-se na discrição. A devassa perpassa todas as atividades humanas.

Assim, de cabeça, só me ocorre um jeito de comunicar em total discrição: é a velha carta. Para nossos padrões, correspondência epistolar – ô palavra chique! – é um bocado lenta. Mas não dá pra ter tudo. Tivesse a doutora mandado uma carta ao Lula, era bem possível que ele tivesse escapado à Justiça do povão. Tivessem o MP e doutor Moro trocado epístolas, nenhum pirata teria ficado sabendo. Nem mesmo o Capitão Gancho.

Quanto ao perturbado que fabricou a bomba, ah, pra esse, carta não resolve. Ainda bem.

Falam de nós – 28

José Horta Manzano

Neymar, jogador de futebol, é figurinha conhecida no mundo todo. Mais que os demais países, o Brasil e a França o consideram como alguém de casa. O Brasil, naturalmente, porque o moço nasceu e cresceu aqui. E a França, porque ele está contratado pelo time de Paris – que, de parisiense, tem cada vez menos, dado que é propriedade pessoal de um príncipe do Catar; mas isso não vem ao caso.

No Brasil e na França, as vicissitudes do turbulento rapaz têm ocupado lugar de destaque na mídia. O esbanjamento típico de novo-rico, como o deslumbrante solar em que ele vive nos arredores de Paris, encantam alguns, mas deixam muita gente irritada. A agressividade que o jovem demonstrou outro dia contra um torcedor não ajudou a melhorar sua imagem perante a opinião pública.

Essa história um tanto indecorosa do desentendimento entre ele e a moça mandada vir do Brasil para fins de namoro rápido anda dando pano pra mangas. Na minha visão pessoal, esse assunto é do foro íntimo dos dois amantes e deveria ser resolvido entre eles. Mas cada um dá às próprias mazelas o tratamento que lhe parece mais adequado.

by Moisés de Macedo Coutinho (1972-), desenhista paulista

Meio boquiaberta, a imprensa francesa tomou conhecimento de que, no caso do pretenso estupro, o presidente do Brasil apoia Neymar. Pátria dos direitos humanos, a França faz questão de repetir, a quem interessar possa, que respeita a presunção de inocência. Ninguém será considerado culpado antes de ser julgado e condenado. Daí o espanto geral ao ver que nosso mandatário-mor não só respalda o acusado, como também vai de visita ao hospital onde ele está internado e ainda tira selfie. O presidente escolheu seu campo antes mesmo de qualquer decisão da Justiça. No entender dele, seja o que tiver acontecido entre os pombinhos, a culpada é a moça. É uma aposta arriscada.

Pra quem não sabe direito o que caracteriza um político populista, aí está mais um elemento de informação. Repetindo o que Lula da Silva fez durante sua longa gestão, doutor Bolsonaro fatura em cima do futebolista brasileiro mais em voga. Até aí nada demais. O que ele não devia fazer é dar apoio ao acusado de um crime que ainda está em fase de investigação. Suponhamos que Neymar seja considerado culpado e acabe sendo condenado – como é que fica? Doutor Bolsonaro vai continuar apadrinhando um criminoso? A imprudência periga custar-lhe caro.

Eco na mídia francesa:
BFM – Canal de televisão
La Croix – Jornal impresso e online
Orange – Portal esportivo

Falam de nós – 27

José Horta Manzano

De modo discreto, o Itamaraty destricota a trama trançada por Lula da Silva quando ocupava o trono do Planalto. Naqueles anos de desvario, os olhos gulosos de nosso guia enxergavam longe, bem pra lá da Presidência. O posto de secretário-geral da ONU seria um coroamento digno, uma prova incontestável de que o homem tinha chegado lá. Como proceder? – era a pergunta.

O melhor caminho era angariar a simpatia do maior número de pequenos países, pra conseguir apoio deles na hora decisiva. No que tange às ditaduras africanas, era fácil: bastava conquistar o «dono» de cada país, problema que dinheiro resolve facilmente. Quanto a pequenos Estados democráticos, onde governos mudam ao sabor das eleições, um jeito de agradar era abrindo embaixada lá. Uma representação do Brasil é sempre bem-vinda porque eleva a importância de pequenos países.

Embaixada do Brasil em Bridgetown, Barbados
(país insular caribenho de 278 mil habitantes)

O lulopetismo adotou essa solução. Abriu uma rede de embaixadas nossas em ilhotas do Caribe, países que poucos seriam capazes de localizar no mapa e dos quais pouca gente já ouviu falar. Acontece que embaixada dá despesa. Virada a página do lulopetismo e afastada a ideia de o presidente do Brasil se tornar secretário-geral da ONU, as embaixadas em países microscópicos tornaram-se sorvedouro de dinheiro sem retorno nenhum.

Li a notícia no portal russo Sputnik: o Itamaraty está fechando algumas dessas representações. As embaixadas na Dominica (Roseau) e em Antígua e Barbuda (Saint John’s) já fecharam as portas. As próximas a cessar atividades são as de Granada (Saint George), São Cristóvao e Neves (Basseterre) e São Vicente e Granadinas (Kingstown). Considerando o volume de negócios entre o Brasil e esses pequenos países, as embaixadas não farão falta a ninguém. Apesar dos cortes, ainda há muita embaixada cuja existência é difícil justificar.

Quem diz o que quer

José Horta Manzano

Tem gente que não aprende. Lula da Silva, considerado por alguns como dotado de superior inteligência e de fino faro político, não me parece tão esperto assim. Entra nessa categoria daqueles que têm certeza de que já nasceram sabendo tudo e que, portanto, não precisam aprender mais nada. Nem os quase quatorze meses passados na cadeia foram suficientes pra livrá-lo do torpor e pra afinar-lhe a astúcia.

A prudência é qualidade supimpa. Quanto mais um indivíduo se encontra em situação delicada, mais deve medir o alcance dos próprios atos e gestos. Não convém destratar aqueles de quem se pode vir a precisar no futuro. Atropelar essa regra é tolice pura.

Chico Buarque – que é amigo do peito de Lula da Silva, batalhou contra a destituição de Dilma e defendeu a fracassada candidatura de Haddad à Presidência – foi agraciado com o Prêmio Camões. Nada mais justo, que o moço é verdadeiro ourives da língua pátria. Concorde-se ou não com suas posições políticas, há que reconhecer sua excelência no trato das palavras.

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Lula da Silva resolveu escrever uma cartinha ao amigo Chico. Não satisfeito em apenas dar-lhe os parabéns, aproveitou a carta aberta pra alfinetar a rede Globo de rádio e televisão. Contou ter ficado muito feliz porque «a Globo teve que colocar você no ar em horário nobre, pela primeira vez vi sua cara na Globo (sic)».

Magnânimo, o conglomerado carioca de mídia teve a clemência de responder. Retrucou que, nos últimos nove anos, Chico Buarque já apareceu 28 vezes no horário nobre da televisão. O Lula, que, em matéria de tevê, já confessou interessar-se unicamente por novela, certamente perdeu as aparições do amigo. Quem diz o que quer acaba ouvindo o que não quer.

Não é inteligente alfinetar a maior empresa de televisão do país. Quem tem esperança de um dia voltar à política não deveria fazer isso. Não digo que o demiurgo devesse ter-se prostrado diante da emissora – bastava ter mantido recato. O silêncio, que não pede esforço nenhum, nessas horas vale ouro.

Desde que o velho Tancredo saiu de cena, a política brasileira tem sentido muita falta de um presidente sagaz. Perspicácia é artigo que há décadas anda em falta no Planalto.

Spensierato

José Horta Manzano

Imprudente, desacautelado, desajuizado, inconsiderado, irrefletido – essas são palavras que traduzem o italiano spensierato, adjetivo que se aplica a quem age sem refletir.

Nossa política está coalhada de velhos profissionais, parlamentares dos quais é difícil colher uma confidência ou surpreender nem que fosse um gesto fora do script. São experientes e sabem que um escorregão, por mais leve que seja, pode ter consequências graves e indesejadas. Assim, refreiam-se. Comparado a essa gente, doutor Bolsonaro faz figura de calouro. A gente se pergunta o que é que ele andou fazendo nos 28 anos que passou como deputado. Não aprendeu a se policiar?

Tudo indica que não. Em fala do dia 8 de maio, declarou: «Temos que facilitar a vida de quem quer produzir e de quem ainda tem coragem de investir no Brasil, o que é um esporte de altíssimo risco dada a situação que temos agora». Como assim? Esporte de altíssimo risco? Coragem de investir no Brasil? Ouvir isso é um pesadelo. Fosse especulação de alguma publicação econômica internacional, seria chato, mas até certo ponto compreensível. Vindo do presidente do país, é alucinante.

Passados mais de quatro meses, fica evidente que doutor Bolsonaro ainda não vestiu o terno de presidente. Decerto está folgado demais para ele. A não ser que tome geleia de mocotó e encorpe, talvez não venha a vestir nunca o traje. A cadeira de chefe do Estado brasileiro vai continuar ocupada por alguém pequeno demais para ela.

Não é um assombro. Com Lula da Silva, um de seus predecessores, aconteceu a mesma coisa. Presidiu a nação por oito anos sem se ter nunca encaixado no figurino. Entre baciadas de vexames históricos, ficou famoso o que deu diante do primeiro-ministro britânico quando disse que a crise era culpa de gente branca de olhos azuis. Também deixou o presidente dos EUA constrangido quando aludiu, diante de câmeras e microfones, ao ponto G – gracejo que não deveria ultrapassar os limites do círculo de amigos íntimos.

Acontece que, nos tempos do Lula, o descalabro presidencial era compensado por um mar de brigadeiro na frente externa. O planeta vivia excepcional período de bonança, daqueles que só ocorrem uma ou duas vezes por século. Hoje são outros quinhentos. O mar já não está pra peixe e ainda me vem o presidente com uma conversa agourenta dessas!

Fica evidente que ele não se dá conta do peso que tem a palavra presidencial. Não percebe que, nos minutos que se seguiram ao desastrado pronunciamento sobre a «coragem de investir no Brasil», a nata dos investidores internacionais já estava a par. Devem estar todos com um pé atrás. Se o próprio presidente está dizendo isso…

A economia do país precisa desesperadamente de investimento estrangeiro. Enquanto isso, um desastrado doutor Bolsonaro afugenta todo o mundo. Ah, spensierato!

Debatendo com criminosos

José Horta Manzano

Há alguns anos, escrevi o artigo Os amigos de meus amigos. Conta o percurso acidentado de doutor José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal de 2005 a 2011. O bem-apessoado homem político coleciona percalços. A universidade que lhe deu o título de engenheiro foi fechada por falhas na pedagogia e também por ‘malfeitos’ éticos e administrativos. Embora os que lá se formaram não tenham culpa direta disso, enfrentam problemas de legitimidade.

Em provável busca de compensação, doutor Sócrates defendeu tese de mestrado num instituto de Paris. Em 2013, após deixar o cargo de primeiro-ministro, lançou um livro sobre a tortura na democracia, baseado na tese que havia defendido na França. Seu ‘ghost writer’ – o professor universitário que realmente escreveu o livro – confessou ao MP português ter sido remunerado com dezenas de milhares de euros para redigir não só o livro, mas também a tese de José Sócrates. O prefácio do livro é assinado por Lula da Silva. Não é proibido especular que o texto tenha sido redigido pelo mesmo escritor-fantasma que cuidou do livro.

Embora não esteja comprovado, diz-se, à boca pequena, que 98% dos exemplares da primeira edição do livro teriam sido comprados pelo próprio autor, com verbas desviadas de estatais. A manobra teria garantido sucesso editorial e imediata impressão da segunda edição. A história, se não for verdadeira, é bem bolada.

Pouco depois do lançamento do livro, doutor José Sócrates foi preso preventivamente. Não por ter escrito o livro, mas por ser alvo da Operação Marquês, processo complexo ainda em fase de instrução. De lá pra cá, já deixou a cadeia, mas está de tornozeleira, à disposição da Justiça. Sócrates é acusado por 31 crimes e delitos de corrupção e malversações diversas de dinheiro do contribuinte português. Por enquanto, ainda que tudo o acuse, a presunção de inocência impede que se lhe aplique etiqueta de culpado.

Semana passada doutor Sergio Moro, nosso ministro da Justiça, esteve em Portugal. Quando de uma entrevista, respondendo à pergunta de um repórter, citou a Operação Marquês – aquela em que José Sócrates é acusado – como exemplo das dificuldades de avançar da Operação Lava a Jato. Incomodado com a menção da operação em que é visado, o ex-primeiro-ministro tratou Moro de «ativista político disfarçado de juiz». Futriqueiros, os jornalistas correram levar o xingamento ao ministro Moro só pra ver a reação. Moro então perdeu as estribeiras e disse com todas as letras: «Eu não debato com criminosos pela televisão. Então, não vou fazer mais comentários.»

O prefaciador e o escritor, ambos enrolados com a Justiça.
O primeiro, condenado e preso; o segundo, de tornozeleira

Nosso ministro, de costume tão sossegado e comedido, devia estar num mau dia. Escorregou feio. Esquecido de que é ministro da Justiça do Brasil, desceu a lenha no réu de um processo em terra estrangeira e, mais que tudo, tratou Sócrates de «criminoso», passando por cima do fato de ele ainda não ter sido condenado. É imperdoável, principalmente na boca de um ex-juiz. Pegou muito mal. O revide do ex-primeiro-ministro veio rápido. Numa entrevista na televisão, pontificou: «Moro só é ministro por ter metido o Lula na cadeia».

Quem diz o que quer ouve o que não quer. Bem feito!

Da cadeia para o mundo

José Horta Manzano

Entre surpreso e incrédulo, o mundo recebeu a notícia de que Lula da Silva tinha dado entrevista à imprensa.

– Entrevista? Como assim? Mas ele não estava preso até outro dia?

– Pois ainda está. Mas o Brasil, sacumé, é um país que às vezes corre fora dos trilhos. Preso pode dar entrevista. Depois do Lula, dá pra imaginar um punhado de grão-condenados fazendo fila pra aparecer diante dos holofotes.

– Vão permitir que outros deem entrevista também?

– Se permitiram a um, não vejo como poderiam negar a outros. Quem se habilitar já pode começar a fazer fila.

Esse diálogo é imaginário. Mas não fantasioso. Fico realmente preocupado ao pensar que Marcola, Eduardo Cunha, Fernandinho Beira-mar e outros meliantes podem exigir o mesmo tratamento. Sempre haverá algum órgão de imprensa interessado em colher a entrevista. Já pensou?

Voltando à entrevista do Lula, foi particularmente edificante o trecho em que ele diz que essepaiz está sendo governado por «um bando de maluco». (Já reparou que Lula da Silva nunca pronuncia o nome dessepaiz? Freud deve poder explicar.) Pessoas sensíveis devem ter se sentido incomodadas com a violência das palavras proferidas por alguém que, afinal, já foi presidente da República. Não é comum. Bom, também não é comum um ex-presidente estar encarcerado por corrupção. Talvez isto explique aquilo.

Pouco comum também foi a resposta do atual presidente. Irritado, doutor Bolsonaro retrucou que mais valia o Brasil estar sendo governado por um bando de loucos do que por um bando de cachaceiros. Touché! Impressionante mesmo é o nível do palavreado dessa gente – tanto os loucos quanto os cachaceiros. Tudo farinha do mesmo saco.

Fiquei curioso em descobrir como a imprensa internacional tinha dado a notícia, em especial como tinham traduzido a expressão ‘bando de maluco’.

Os órgãos de língua francesa foram unânimes: disseram todos que o Brasil era governado por «une bande de fous». É tradução ao pé da letra.

A mídia de língua inglesa foi mais variada. Alguns, como The Guardian, traduziram por «lunatics». Outros, como o Washington Post, preferiram «crazy people». A edição inglesa de France 24 foi mais elaborada. Optou por «gang of madmen» – gangue de gente louca.

Os castelhanos também foram sortidos. TeleSur, a tevê de Maduro, tascou «una banda de locos». O Portal Notimerica foi mais sóbrio: «un puñado de locos». E o argentino Clarín escolheu uma formulação mais coloquial: «una banda de chiflados» – um bando de gente de raciocínio perturbado.

Antes, os cachaceiros. Agora, os loucos. Essepaiz está bem arrumado.

Pasteurização da informação

José Horta Manzano

Terça-feira passada, quando saiu o veredicto do STJ sobre o recurso interposto pela defesa de Lula da Silva, não ocorreu a nenhum jornal brasileiro botar na manchete que o tribunal havia confirmado a condenação do ex-presidente por corrupção. Todos pularam esse “detalhe” e passaram direto ao ajuste da extensão da pena imposta ao condenado. Assim, as manchetes variaram em torno do tema da dita dosimetria. Caciques petistas, por má-fé ou ignorância, chegaram a festejar a decisão como se de vitória se tratasse. Quem não tem cão…

Por que terá acontecido isso? A meu ver, a explicação é uma só. Na cabeça de todos, a confirmação da condenação já eram favas contadas. Sobre esse ponto não havia suspense. Ninguém, em sã consciência, imaginava que o STJ pudesse inocentar o Lula. Condenado estava e condenado continuaria, esse era o entendimento geral. A expectativa estava mesmo em torno da manutenção ou de um ajuste da pena, daí a ênfase dada à adaptação dela.

A imprensa mundial foi contaminada pelo anticlímax. Todos deram a notícia segundo a receita nacional, ou seja, ressaltando que, por unanimidade, o tribunal havia reduzido a duração da pena de prisão de Lula da Silva. A confirmação da sentença sumiu do radar ou ficou em segundo plano.

Gazzetta del Mezzogiorno, Bari (Itália)

Topei com uma única exceção. Trata-se da Gazzetta del Mezzogiorno, pequeno órgão da longínqua cidade de Bari, região da Puglia (ou Apúlia, como preferem os puristas). Para quem olha para o mapa, essa região forma o salto da bota italiana. Sabe-se lá por que prodígio, o jornal deu a manchete: «Alta Corte conferma condanna Lula per corruzione – Corte Superior confirma a condenação de Lula por corrupção». A redução da pena só apareceu no subtítulo.

A dez mil quilômetros de distância, um pequeno jornal provinciano conseguiu escapar da uniformização esparramada pela grande mídia. Parabéns.

Lula da Silva: o que vai sobrar

José Horta Manzano

Por unanimidade, o STJ confirmou a culpa de Lula da Silva. O ex-presidente se transforma assim em condenado em terceira instância. É dureza, meu irmão. São já dois tribunais colegiados a confirmar, por unanimidade, o entendimento da primeira instância. A duração da pena – que atende pelo curioso nome de ‘dosimetria’ – foi reduzida para estabilizar-se ligeiramente abaixo da que tinha sido imposta por doutor Moro. São só sete meses a menos.

É boa notícia essa decisão do STJ? Depende. A resposta não pode ser dada simplesmente com um sim ou um não. O assunto é um pouco mais complexo. Para muitos dos seguidores do Lula, é a grande notícia da temporada, aquela que põe o demiurgo mais próximo de uma afrouxamento da prisão: regime semiaberto ou prisão domiciliar. No outro polo, para muitos dos detratores do ex-presidente, a notícia é decepcionante, exatamente pelas mesmas razões: o Lula fica mais próximo de uma prisão aliviada.

Cada um é que sabe onde lhe aperta o sapato. Para o Brasil, de qualquer modo, a notícia não é nada boa. Não porque o condenado deva cumprir pena mais longa ou mais curta. Isso, para nós que estamos fora da cadeia, é de pouca importância. O que nos deixa a todos amargurados é o fato de o STJ ter confirmado que Lula da Silva é mesmo corrupto.

É uma mancha que, cada dia mais, vai se entranhando e marcando nossa história. A não ser que improvável reviravolta aconteça no STF e que o processo todo seja anulado por algum vício de forma, percebe-se hoje que o Brasil carregará para sempre a vergonha de ter tido um presidente condenado por ser ladrão. E justamente aquele que, eleito e reeleito, se apresentava como diferente dos demais, homem puro, bem-intencionado, disposto a dar a própria camisa pra vestir o próximo. Dos governantes recentes, foi o que melhor enganou o distinto público.

Daqui a muitos anos, quando a poeira tiver baixado e estivermos todos mortos, nossos trinetos vão considerar que esta é uma página negra de nossa história, um acontecimento que a gente gostaria de poder apagar.