A caravana de Lula teve escolta policial

Elio Gáspari (*)

Nos primeiros dias de sua caravana pelo Rio Grande do Sul, Lula passou por algo que jamais lhe tinha acontecido. Em Bagé a estrada foi bloqueada e, de um guindaste, pendia um Pixuleco encarcerado. Em Santa Maria reuniram-se manifestantes para hostilizá-lo. Para chegar a São Borja, com escolta policial, teve que tomar uma estrada de terra porque a rodovia estava bloqueada. Em São Vicente do Sul um grafite dizia “Lula ladrão”.

O percurso do ex-presidente foi semelhante ao que ele fez em 1994, quando disputou a Presidência contra Fernando Henrique Cardoso e o real. Ele atravessou o Rio Grande do Sul num ônibus sem que houvesse um só incidente. Tinha a proteção discreta e suave de dois faz-tudo petistas. Um chamava-se Freud. O outro, Espinoza, media 2m02cm e pesava 112 quilos.

Lula chegava a uma cidade, às vezes reunia-se com fazendeiros ou empresários, ia para a praça e discursava. Em Rosário do Sul, desceu do palanque para entrevistar populares. Se o público não esquentava, dizia que lugar de político ladrão é a cadeia. Se fosse pouco, recorria a um infalível pedido de confisco dos bens do ex-presidente Fernando Collor. Esse era um tempo em que ele ainda falava “cidadões” (em Livramento), e o PT pedia nota fiscal de todas as suas despesas.

Mudaram Lula, o Brasil e seus adversários. O comissariado diz que os manifestantes hostis são uma “milícia fascista”, mas a partir de um certo momento a caravana foi protegida por uma patrulha do MST. Durante o consulado petista, o governo não patrocinou nenhum ato de violência, mas Lula chegou a ameaçar com o que seria o “exército do Stédile”, referindo-se a João Pedro, donatário do movimento dos sem-terra desde o século passado.

É de justiça lembrar que, em julho de 2003, um grupo de 15 militantes do PSTU foi protestar diante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo contra uma visita do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e a reforma da Previdência de Lula. Apanharam, e o técnico judiciário Antônio Carlos Correia acabou com o nariz quebrado. Acusou os “pit bulls petistas”. Palocci está na cadeia, e o PT lutou contra a reforma de Temer.

Lula e seus adversários mudaram para pior. O Brasil, quem sabe.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

Castelos de cartas

Percival Puggina (*)

«Qualquer idiota com mãos firmes e um par de pulmões funcionando pode construir um castelo de cartas e depois soprar para derrubá-lo.»

O que aconteceu na Boate Kiss teve muito a ver com as afirmações dessa frase de Stephen King. Aquele local de lazer era um castelo de cartas à espera do sopro fatal.

Muitos brasileiros que emigram para o assim dito Primeiro Mundo passam por um período de adaptação. Para uns, é rápido. Para outros, porém, é um tempo de frustração que se encerra com a decisão de retornar às origens.

Na essência da adaptação ao cotidiano dos países mais bem organizados, marcando-a de modo decisivo, está a absorção da seguinte regra geral de convivência: as leis valem para todos e não são inconsequentemente desrespeitadas. Isso costuma ser um choque. A ordem que produz costuma ser vista como enfadonha. Para muitos de nós, o respeito às leis, às regras de condomínio, aos preceitos de um contrato, aos costumes locais, cria uma atmosfera irrespirável.

No entanto, o Primeiro Mundo é o que é, em grande parte, por causa disso. Em virtude de tão fundamental norma alguns países europeus estão fechando presídios. Há cada vez menos pessoas dispostas a aceitar os riscos inerentes à tentativa de prosperar no mundo agindo no submundo.

Em virtude dessa regra certos imigrantes preferem retornar à zorra nacional, aqui onde as leis são feitas para luzirem no papel e não para, de fato, sinalizarem as condutas.

No Brasil, o costumeiro desrespeito às leis, regras e costumes vai construindo castelos de carta em toda parte.

Interligne vertical 14Há castelos institucionais que vemos ser soprados pela falta de racionalidade, desde dentro e desde fora, comprometendo o funcionamento da República. Há castelos de carta estatísticos e contábeis, feitos para iludir, construídos por governos prestidigitadores.

Há castelos de carta empresariais, concebidos para encher o peito de vaidades, de dinheiro os bolsos de alguns, e de problemas a vida de muitos.

Há castelos de carta em políticas públicas, ineficientes ante a realidade para a qual foram concebidas.

E há castelos de carta como a Boate Kiss, à espera do sopro quente da morte, à espera da ignição lançada ao ar na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Irving D. Yalom, no livro “O dia em que Nietzsche chorou”, afirma que, se subirmos suficientemente alto, chegaremos a um nível a partir do qual as tragédias deixam de parecer trágicas. Ele estava errado.

Não há nível a partir do qual deixe de ser pungente o diuturno sacrifício humano nas estradas e ruas do país, nos becos das drogas, nos presídios que o Estado já delegou ao comando dos próprios reclusos, nas filas de espera do SUS, na indigente atenção à saúde pública, no mau agouro enfermiço da falta de saneamento básico. Não há altura nem distância a partir das quais o incêndio da Boate Kiss deixe de nos queimar a todos.

Ele é uma consequência doída, ardida na alma, de uma outra tragédia, que quase não vemos: nosso hábito de dar um jeitinho e driblar a lei. Até que o país nos caia na cabeça.

(*) Arquiteto, empresário e escritor. Edita o site puggina.org

E o porteiro não foi preso!

José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 abril 2013

Cada estado traz seu aporte à União. É a regra. Cada um entra com um óbulo condizente com sua população e suas posses. Há estados, no entanto, cuja contribuição tem sido relativamente mais importante que a de outros. Um deles é o Rio Grande do Sul.

Alguns fatos que marcaram a História do Brasil têm origem no estado sulino ou guardam alguma relação com ele. De lá nos veio Getúlio Vargas, fundador da única ditadura de um homem só que o País já conheceu. João Goulart, último presidente a ser apeado por golpe de estado, era gaúcho também. Durante a era militar, aquele que certamente foi o presidente mais esclarecido e mais equilibrado chamou-se Ernesto Geisel. Era gaúcho. O estado pampiano nos deu também Elis Regina, a cantora maior.

Ultimamente, a contribuição do Rio Grande tem incitado o Brasil a dar passos importantes no processo civilizatório. Com decisões ousadas, seus juízes foram os primeiros a equiparar uniões homossexuais a enlaces tradicionais. Suas resoluções podem ter causado algum frisson, mas provocaram as primeiras fissuras no gesso que emprisionava o melindroso assunto.

Faz dois meses, o Brasil e o mundo foram sacudidos por uma notícia pavorosa. O incêndio de uma boate de Santa Maria havia ceifado a vida de 250 jovens e arruinado a razão de existir de milhares de pais, irmãos, namoradas. Foi a tragédia mais mortífera dos últimos decênios. A mídia do mundo inteiro repercutiu a trágica informação.

Brasil

Escaldados com o desenrolar habitual da Justiça brasileira ― que à vezes lembra um jogo de dados viciados ― nenhum de nós esperava que as diligências jurídico-policiais dessem grande resultado. Em casos assim, sabe-se que a tática dos poderosos é: protelar, procrastinar, engavetar, entravar e torcer para que o povo esqueça. Na pior das hipóteses, prende-se o porteiro ou a mulher do café.

Surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Era trágico demais, e os brios gaúchos não estavam dispostos a permitir que jeitinho e malemolência contaminassem o processo. Foram em frente.

O comandante regional do Corpo de Bombeiros foi afastado pelo governador em pessoa. Num primeiro momento, 28 pessoas foram responsabilizadas no inquérito. Entre elas, 19 agentes públicos, bombeiros, secretários. Até o prefeito municipal foi arrolado.

Como se costuma dizer, nada do que for feito trará de volta os que partiram no alvorecer de sua jornada terrena. Mas da desgraça surge a luz. O desastre de Santa Maria terá servido para confirmar, se ainda fosse preciso, que nosso País está mudando aceleradamente. E não só na área econômica, que, a computar-se o espaço desproporcional que ocupa na mídia, parece ser a única preocupação nacional.

Não são as leis nem os decretos que forjam a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que, por meio de seus representantes, faz que novas leis sejam votadas e que novos decretos sejam assinados. Leis, regras e regulamentos apenas formalizam o que já tiver sido sopesado e decidido pelo tecido social.

Dentro de 10 ou 20 anos, o Brasil será um país muito diferente do que conhecemos hoje. A troca de ideias e a interação intensa que internet propicia é indomável. Hoje em dia, tudo se sabe, boas e más notícias se alastram feito fogo de palha. Está cada dia mais difícil ocultar certos crimes e «malfeitos» que antes passavam ignorados.

O ultracomentado processo do mensalão ― e principalmente seu desfecho ― teria sido visto como obra de ficção apenas dez anos atrás. Seus atores jamais imaginaram, nem em pesadelo, que um dia pudessem ser julgados e condenados a anos de prisão. Caíram na armadilha que o progresso tecnológico lhes preparou.

O antigo juiz trabalhista conhecido como Lalau foi condenado, já faz alguns anos, a meio século de prisão em regime fechado. No entanto, a benevolência que costumamos conceder aos poderosos não lhe causou mais que um pequeno desconforto: teve de trocar férias permanentes em suntuoso apartamento de Miami por dias tranquilos em sua mansão paulista. A desculpa, acolhida pela Justiça, tinha sido a idade avançada do condenado, como se a culpa desbotasse com os anos. Como prova de que o olhar da sociedade está em processo acelerado de mudança, Lalau foi levado estes dias a uma penitenciária.

Está cada vez mais próximo o dia em que os pequeninos poderão exercer sua função sem recear inculpação automática em caso de problema no andar de cima.

Em Santa Maria, pelo que noticiaram os jornais, o porteiro da boate não foi preso. Nem a mulher do café.

Arrombada a porta, põe-se a tranca

José Horta Manzano

Nos idos de 1967, eu estava trabalhando na Suécia. Travei conhecimento com uma senhora muito simpática. Poliglota e inteligente, teria ali pelos 40 anos. Tinha nascido no Brasil, mas, casada com um sueco, vivia em Malmö fazia já vários anos. Vamos chamá-la senhora Almgrén, mas não posso garantir que fosse esse o nome. Passou muito tempo e já não tenho certeza.

Uma música francesa, gravada por Sacha Distel (1933-2004), estava nas paradas de sucesso, como se dizia na época. Na crista da onda, muito popular. Era ― como explicar? ― um «samba europeu». Um ritmo um tanto desengonçado que grande parte do povo do Velho Continente acreditava ser música brasileira. Aliás, muitos ainda acreditam, acreditem.

O compasso da canção, divertida e bem animada, hesitava entre cumbia, conga e rumba. Chamava-se «L’incendie à Rio», o incêndio no Rio. Meu conhecimento de francês, precário à época, não me permitia entender a letra.

Comentei com a senhora Almgrén que eu gostava muito daquela música. Maliciosamente, ela me replicou que, se eu entendesse a letra, por certo gostaria menos. Fiquei um tanto perplexo. “Ué” ― pensei ― “e por quê?”

Sacha Distel

Sacha Distel

Indulgente, minha amiga explicou que a letra relatava um incêndio imaginário numa torrefação de café no Rio de Janeiro. E descrevia a atrapalhação dos bombeiros que não encontravam as mangueiras, nem o esguicho, nem a escada. Somente no final da noite, quando todo o quarteirão estava reduzido a cinzas, os petrechos foram encontrados. Assim mesmo, os bombeiros continuavam não podendo sair do quartel porque o caminhão estava enguiçado e ninguém sabia onde estava a manivela para dar partida no motor.

Uma zombaria total, como se vê. Retratava nosso País como era visto pelos europeus, um lugar muito alegre e animado, mas totalmente bagunçado. Quem quiser recordar (ou conhecer) L’incendie à Rio, pode dar uma espiada aqui. Vem com vídeo, música e letra.

O bem informado blogue de Sonia Racy, alojado no Estadão, nos informa neste 30 de janeiro que a Câmara Federal do Brasil não tem brigadistas de incêndio. Pior que isso, a Casa não dispõe sequer de servidores treinados para casos de incêndio(!). Não acredita? Pois confira aqui.

Quando a canção de Sacha Distel fez sucesso, fazia 3 ou 4 anos que se encerrara a «Guerra da Lagosta», um daqueles conflitos sem batalha e sem sangue. Foi nessa época, dizem, que De Gaulle teria pronunciado a célebre frase «o Brasil não é um país sério». Dizem outros que jamais o general teria cometido tal afronta. Ele nunca confirmou. Tampouco desmentiu. Vamos deixar para voltar ao assunto noutra ocasião.

Neste finzinho de janeiro, passados alguns dias do pavoroso drama de Santa Maria, aparecem outros podres, aos borbotões: casas de espetáculo funcionando sem alvará, proteção contra incêndio inexistente, pessoal não treinado. Em resumo: é a ganância de braço dado com a irresponsabilidade. Se nem a Câmara ― a casa dos representantes do povo brasileiro! ― escapa do descaso, imagine o resto. Nossos 513 deputados devem, realmente, estar totalmente ocupados com outros assuntos.

É urgente que os poderosos que mandam no Brasil tomem um banho de integridade e de probidade. Queira o destino que o inconcebível drama gaúcho tenha sido a última tragédia decorrente de desleixo aliado ao descaso e à cupidez. Já está na hora levar as coisas a sério.

Que o clichê sublinhado pelo irreverente Incendie à Rio possa ser atirado à lata de lixo do passado. Para nunca mais voltar.