O ornitorrinco chamado Brasil

Eduardo Affonso (*)

O Brasil se presta a muitas comparações. Nos anos 1970, Edmar Bacha nos chamou de Belíndia: leis e riqueza de Bélgica, desigualdade de Índia. Delfim Netto sugeriu Ingana: impostos de Inglaterra, serviços públicos de Gana. Evoluímos para um Dubaiti: privilégios e extravagâncias da cidade de Dubai, vácuo de Estado nas favelas e periferias, à moda do Haiti. Parecemos um ornitorrinco, aquele mostruário de excentricidades, prova viva de que a fidelidade não foi seguida à risca na arca de Noé.

Como o mamífero que, na contramão da sua subclasse, bota ovo, o Brasil é uma mistura de surreal com atraso e pitadas de velhas ideologias. Quase metade da população sobrevive sem acesso a saneamento básico, mas o governo está mais interessado em proteger as empresas estatais que em garantir esgoto e água potável.

Como o mamífero que não tem mamilos, o Brasil é um país rico com cerca de um terço da população abaixo da linha da pobreza. A riqueza existe, mas os canais para sua distribuição não são lá muito ortodoxos.

Assim como o ornitorrinco tem bico de pato, pé de pato e cloaca de pato – mas está longe de ser um pato –, o Brasil tem iniciativa privada e propriedade privada, mas o protecionismo, a burocracia e o patrimonialismo estatal fazem o possível para que não seja uma economia de mercado.

Nas fotos, o ornitorrinco dá a impressão de ser enorme, mas não passa de dois palmos de comprimento. O Brasil é o quinto maior país em área, o sétimo em população e a nona economia – mas continua um tampinha diplomático, um nanico cultural.

Observe o Ornithorhynchus anatinus e a Terra brasilis. O primeiro é um bicho aparentemente fofinho, com esporões conectados a glândulas de veneno. A segunda, lar de um povo que adora memes e inventou o brigadeiro, o pão de queijo, o xaxado, o chorinho, a caipirinha, o chorinho da caipirinha – e deu transcendência ao diminutivo; que chama desconhecidos de “querido”, mistura pizza com abacaxi e dá nó em ChatGPT. Mas tem a oitava maior taxa de violência no mundo: com 2,7% da população do planeta, responde por 20,4% dos homicídios, segundo o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime. Ao contrário do que dizia a personagem da Kate Lyra, o brasileiro (assim como o ornitorrinco) não é tão bonzinho.

Outra boa metáfora é a ex-presidenta Dilma Rousseff. Ela fala um inglês macarrônico e intraduzível, mas dispensa o intérprete. (O Brasil tem educação precária – na formação profissional e na de crianças e adolescentes, está em último lugar no Pisa –, mas engata marcha a ré nos avanços propostos pelo Novo Ensino Médio.)

Ela quase quebrou um país e se acha em condições de presidir o banco criado para auxiliar o crescimento e o desenvolvimento de cinco grandes economias. O Brasil sofre derrotas diárias na guerra ao tráfico, às milícias, à dengue, à evasão fiscal, ao desmatamento e ao garimpo ilegais e quer dar pitaco na guerra na Ucrânia.

Como Dilma, bastava ao país ler o que está escrito – seja na Constituição, nos artigos científicos, nos livros de economia – para que tudo desse certo. Mas insiste no improviso e se embanana todo.

Como exotismo pouco é bobagem, talvez nossa melhor metáfora seja um dilmorrinco.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

À espera do Messias em frente ao quartel ou à PF em Curitiba

Eduardo Affonso (*)

Nos anos 80, ocupavam a Cinelândia, no Centro do Rio. Resistiram algumas décadas – hoje não há mais vestígios do que um dia foi a aguerrida Brizolândia. Em 2018, começaram uma vigília em frente à Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Por 580 manhãs, renovavam sua fé gritando: “Bom dia, presidente Lula!”. Desde o segundo turno das eleições de 2022, estão acampados diante de quartéis ou bloqueando estradas.

Muda a cor das roupas e bandeiras – sai o vermelho, entram o verde e o amarelo. Mudam as palavras de ordem: “Lula livre!”, “Intervenção militar!” e… (o que é mesmo que queriam os brizolistas, além de lutar contra as “perdas internacionais”?). Em comum, a inabalável fé num messias. E a negação – do resultado de eleições, da condenação ou do ocaso do seu líder, do seu capitão, do seu salvador. Nunca chegam a formar multidões – talvez daí o empenho em fazer tanto barulho.

São pessoas que se desconectaram de si mesmas e embarcaram num delírio coletivo. Não necessariamente por desinformação ou déficit cognitivo, mas para se congregar no seio de uma ficção compartilhada. Para ter a sensação de pertencimento, de estar do lado do Bem. E suprir sua grande carência – e de todo ser humano: a de amparo. Funciona para qualquer seita, religiosa ou ideológica.

Em linguagem de autoajuda: deixam de ser gota para se sentir oceano. Mal sabem que, nessa mudança, passam de sujeito a objeto, tornando-se cada vez mais manipuláveis: a permanência no grupo implica investimento psíquico incessante. Paga-se um boi para entrar e uma boiada e meia para tentar sair do rebanho.

São gente como a gente – só que, no momento, impermeável a argumentos. Como os amigos que me entopem a caixa postal com notícias falsas, falsos alarmes, teorias conspiratórias. Aponto o erro, encaminho o desmentido – em vão. Daí a pouco recomeça tudo, numa amnésia voluntária. Foi assim na época do impítimã (“É golpe!”); é agora no pós-eleições (“É fraude!”). Pessoas até outro dia bastante sensatas, mas que marcam território com bandeiras na janela (de casa ou do carro), cantam o Hino Nacional no portão de algum quartel (felizmente, não em torno de pneus) e clamam pelo fim do Estado de Direito (pelo menos não com o celular na cabeça pedindo socorro a extraterrestres). Não refletem, agem reativamente. Ao domínio cultural tirânico das esquerdas e à patrulha vingativa das minorias, respondem com o orgulho da tosquice, a celebração anticiência.

Lula elegeu Bolsonaro, Bolsonaro reelegeu Lula. Sem uma terceira via à vista, é possível que esse “Dia da Marmota” ainda dure muitos anos.

Os brizolistas conseguiam, no máximo, atravancar a passagem de pedestres na Cinelândia. Os lulistas, que penaram no frio de Curitiba, perturbaram apenas o sossego do pacato bairro de Santa Cândida. Os “patriotas” infernizam a vida de quem precisa viajar ou transportar sua carga e podem causar estragos à economia, ao convívio civilizado, à democracia.

Vai ser um desafio trazê-los de volta ao diálogo. É longo e penoso o luto de um messias.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Perdeu, mané

Eduardo Affonso (*)

Preocupado com a saúde mental do país, O GLOBO levou o Brasil a quatro renomados psicanalistas. Os diagnósticos estão lá, na página 29 da edição de domingo passado (13 de novembro): psicose, luto, autossabotagem, idealização, desilusão.

O Brasil ouviu, elaborou, racionalizou, introjetou, fechou uma gestalt, teve um insight e resolveu ouvir uma quinta opinião. Procurou Pai Dudu da Gamboa, que incorpora Freud, Jung, Reich e Lacan em seu terreiro – e volta e meia faz previsões imprevisíveis aqui, nesta coluna.

Acomodado no divã depois de um rápido banho de descarrego (não por falta do que descarregar, mas premido pelo tempo lógico), o Brasil desandou a falar de seu maior complexo: a irrefreável vocação para matar o pai, Portugal (começando pela língua) e se amasiar com a mãe África (uma relação ambígua de orgulho e preconceito). E, claro, do trauma recente:

– Tenho medo do desamparo, de passar o resto da vida como um sem-teto.

– Sem teto de gastos… – interpreta Freud.

– Sim. Foram quatro anos ao relento, e tudo indica que os próximos quatro também serão a céu aberto.

Reich sugere que o Brasil se solte mais, deixe de lado essa obsessão com censura e controle da mídia, invista no desbloqueio das armaduras psíquicas e das estradas.

– É que eu estou numa fase de transição. Não de gênero, mas de um mito para outro.

Jung lembra que foi para o Brasil que ele desenvolveu, postumamente, o conceito de “inconsequente coletivo”. Algo que se manifesta nas camadas mais epidérmicas da psique – quando milhões de pessoas se enrolam na bandeira para pedir que uma ditadura venha salvar a democracia. Ou outras tantas concordam em dar um cheque em branco a um notório perdulário para que ele as proteja da bancarrota.

– Impulsos sadomasoquistas – pontifica Freud. Vamos fazer associações livres…

– Ok. Faz o L, alea jacta est, jactância, Lava-Jato, Vaza-Jato, compra de jatos suecos, jato da FAB com cocaína, jet ski, viagem em jatinho de empresário condenado…

Freud faz anotações. Lacan faz um trocadilho. Darwin baixa, do nada, sente o clima e avisa que volta quando a situação tiver evoluído.

– Tenho tido pesadelos, doutor: eu sou um navio, e vem um iceberg desgovernado na minha direção. Ou uma Ponte Rio-Niterói, não sei bem. Os filhos do capitão brincam com o leme, achando que aquilo é um manete de videogame.

– Esse pesadelo vai acabar, já já…

– Sei que vai, mas já comecei a ter outro: agora eu sou um avião, e a mulher do piloto quer um lugar na cabine de comando. Sem contar que vivo me debatendo em falsos dilemas. Dividir o bolo ou esperar o bolo crescer? Economia ou saúde? Responsabilidade fiscal ou social?

– Você precisa fortalecer seu Ego liberal, equilibrando as demandas do Id de esquerda e as imposições do Superego de direita.

– É que metade de mim está em negação, se recusando a aceitar a mudança. A outra metade quer mudar, mas para voltar a ser o que já foi. Doutores, será que eu perdi o rumo, o bonde, o juízo?

Reich e Jung se entreolham, desolados. Lacan murmura algo incompreensível. Freud explica:

– Perdeu, mané.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Os avatares e o hino

Eduardo Affonso (*)

Segundo sua lógica peculiar, os avatares amarelos e embandeirados estão lutando por democracia enquanto clamam por um golpe contra o Estado Democrático.

Cantam o hino nacional como se fosse uma canção do Carlinhos Brown, sem dar bola para a letra.

  • Se iluminam com “o sol da liberdade, em raios fúlgidos“, ao mesmo tempo que “autorizam” uma ditadura.
  • Exaltam “o penhor dessa igualdade”, querendo impor sua vontade à maioria.
  • Falam “de amor e de esperança” e dá-lhe violência para bloquear estradas e tentar disseminar o caos.
  • Passam por “nossos bosques têm mais vida” como se nada tivessem a ver com desmatamento, garimpo ilegal, desmonte do Inpe.
  • Não se vexam de entoar “se ergues da justiça a clava forte” enquanto erguem a clava forte contra a Justiça.
  • E pulam a “paz no futuro” para focar numa suposta “glória no passado”.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro. O presente texto é parte de artigo de 5 nov° 2022.

As falsas assimetrias

Eduardo Affonso (*)

Digam o que disserem antropólogos, sociólogos e cientistas políticos, ninguém conhece melhor a alma de um povo do que seus artistas. Eles são “a antena da raça”, na definição do poeta Ezra Pound. Antena, radar, sonar, telescópio, microscópio, tradutor, oráculo, o artista atira no que sente e acerta no que talvez apenas pressinta. Mesmo quando fala de uma dor de corno ou de cotovelo, pode estar retratando o relacionamento tóxico de um povo consigo mesmo e com suas escolhas.

Esses moços, pobres moços (…)
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz

cantou Lupicínio Rodrigues com o pensamento nos que buscam os altos voos do amor se atirando no precipício da paixão. Mais ou menos o que temos feito na vida política.

Com Mário Covas, Ulysses Guimarães e Roberto Freire na disputa, elegemos Fernando Collor. Agora abrimos mão de Simone Tebet, Ciro Gomes e Luiz Felipe d’Avila para encarar uma escolha de Sofia entre o que deu errado e o que não tem como dar certo.

Mantidas as tendências apontadas nas pesquisas de opinião, Bolsonaro (em ascensão) poderia alcançar Lula (estabilizado). Mas isso foi antes das entrevistas no JN e dos debates, em que Lula leva vantagem.

Como o impossível sempre nos acontece, resta torcer por gafes, revelações bombásticas, plot twists e armadilhas do destino. Não havendo, entretanto, fato novo que nos faça dar uma chance ao bom senso, algumas previsões podem ser feitas, com probabilidade de 150% de virem a se cumprir:

O novo presidente não pacificará o país – ao contrário, ampliará o fosso. Terá contra si, se não o ódio, pelo menos o ranço de metade da população. Não respeitará o teto de gastos. Adotará medidas que já não funcionaram em governos anteriores.

Será alguém que não nutre simpatia pela imprensa livre. Que se sente perseguido, injustiçado e sonha com uma cobertura chapa branca – devidamente recompensada.

Será um iliberal. Que não esconde uma queda por regimes autoritários. O representante de um anacronismo – a velha esquerda antiamericana (ops, agora é antiestadunidense) com camiseta de Che Guevara, ou a velha direita reacionária, com bandeira do Império e mentalidade das capitanias hereditárias.

Alguém com um passivo de conivência com a corrupção, esteja o balcão de negócios no MEC, na Saúde, nos Transportes ou na Previdência dos Correios; sejam as jocosamente diminutivas rachadinhas ou os superlativos petrolão e mensalão. E que não se arrepende dos malfeitos, nem garante que não voltará a cometê-los.

Alguém que odeia a Lava-Jato – e pelos motivos errados. Que não se compromete com a lista tríplice para a escolha do PGR. Que terá deixado um país pior para o sucessor, ainda que atribua a maldição à herança recebida. Alguém incapaz de metáforas – no máximo, analogias rasas com casamento e futebol.

Será o governo de um tigrão nos cercadinhos e uma tchutchuca diante do Centrão. E de quem não admite ser comparado a seu suposto antípoda.

Sobre essa nossa sina, já cantava Lupicínio:

Se deixo de alguém por falta de carinho
Por brigar e outras coisas mais
Quem aparece no meu caminho
Tem os defeitos iguais.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

31 de agosto, 1960

Eduardo Affonso (*)

– Você vai à parada do dia 7 tocando bumbo – garantiu o obstetra à minha mãe.

Não deu.

E ela gostava tanto de setembro. Casou-se em setembro. Um de seus filmes favoritos – ao lado de “As neves do Kilimanjaro” e “Candelabro italiano” – era “Quanto setembro vier”.

Quando setembro viesse, viria o segundo filho. De preferência, uma filha.

Esperara um ano antes pela Rita de Cássia, e vim eu. Desta vez, em setembro, Rita de Cássia haveria de vir.

Mas no dia 31 do mês do agouro, dos ventos e dos cachorros loucos, sentiu que o tempo virava – lá fora e dentro de si.

Entrou em trabalho de parto enquanto o céu começava a desabar – ou o céu desabou quando ela começou a sentir as dores, não é mais possível saber, e não faz diferença, pois não há relação de causa e efeito. Ou há?

Imaginemos que à primeira contração correspondeu um relâmpago, à segunda um trovão, às seguintes as janelas fechadas às pressas, e então as telhas voaram, e a água desceu pelas paredes, pelo bocal da lâmpada, até que se pôde ver o céu faiscando por entre as frestas do forro de madeira, e o quarto foi inundado.

Minha vó acudiu com rezas e panos. Meu avô abriu um guarda-chuva sobre a cama, para proteger a parturiente – avô, avó, cama, todos com água já pelas canelas.

Minha mãe queria que tudo acabasse logo – o vendaval, as dores – mas queria também que desse logo meia-noite e fosse setembro. E nem setembro chegava, nem o temporal se ia.

Às 11 e tanto, ainda sob a tempestade e o guarda-chuva, envolvida pelas ave-marias e salve-rainhas que tentavam subir aos céus se esgueirando por entre os raios e trovões, foi mãe de novo.

No quarto inundado, fez ela mesma o batismo com o resto de água benta guardada no armário, antes que o teto viesse a desabar e o bebê morresse pagão.

E o batizou de novo, para o caso de os estrondos terem abafado sua voz; e uma terceira vez, por garantia, e talvez porque ainda tivesse forças e houvesse água benta – ou quem sabe já fosse água da bica.

Sobreviveram todos – ela, o bebê, meus avós, os móveis, eu (possivelmente aos berros no colo de alguém), as tesouras do telhado, parte das telhas, o teto.

Ela queria tanto uma menina, que viria quando setembro viesse.

Foi mais um menino.

E ainda era agosto.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Não há ateus na política

Eduardo Affonso (*)

Demonstrações oportunistas de fé no Altíssimo e apreço à baixa gastronomia são tão tradicionais nas campanhas políticas quanto a troca de ofensas entre os novos adversários e de afagos entre os ofendidos na eleição passada.

Deus é testemunha de que, no Estado laico em que vivemos, campanha que se preze tem de ter candidato comendo pastel de feira e/ou em pose contrita – sempre de joelhos, se possível de mãos postas –, invocando a intercessão divina para ganhar mais voto do que peso. Pode até haver ateus em aviões que despencam – na propaganda eleitoral, jamais.

Tecnicamente, Estado e Igreja estão separados no Brasil desde 1891. Mas a atual Constituição foi promulgada “sob a proteção de Deus”. Nas cédulas, há a recomendação de que “Deus seja louvado”. O presidente de turno chegou ao poder com o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. É um Deus nos acuda em tempo integral.

Para fazer jus à cidadania brasileira, o Todo-Poderoso teve de se licenciar de suas inefáveis funções e virar cabo eleitoral na peleja de 2022. Ele se sentirá em casa por estar, desde a queda de Lúcifer, engajado nessa luta do Bem contra o Mal. A diferença é que, aqui, o Mal tem o dom da bilocação – está ao mesmo tempo nos dois cantos do ringue.

Michelle Bolsonaro tem dito que “o Brasil é do Senhor”, que “Deus tem promessas para o Brasil”, que “aquele lugar [o Palácio do Planalto] era consagrado a demônios”. Como o inferno são os outros, para Lula, “se há alguém possuído pelo demônio, é esse Bolsonaro”.

O petista atacou o uso da religião por parte de seu oponente: “É heresia falar o nome de Deus em vão como fala esse cidadão (…) que está mais para fariseu que para cristão”. Contudo se permitiu pregar: “A gente tem que olhar a Bíblia e ela tem que ser cumprida”. A que preceitos bíblicos estará se referindo? Aos que punem a homossexualidade e mandam apedrejar mulheres que não chegam virgens ao casamento? Aos mandamentos que condenam o roubo, o falso testemunho? Deve-se obediência coletiva a livros sagrados apenas nas teocracias – o que não é o caso. Porém levantamento feito pelo GLOBO revela que são 902 os candidatos que se declararam sacerdotes ou integrantes de ordem ou seita religiosa – um quarto a mais que em 2018. Majoritariamente evangélicos, vêm reforçar a bancada do dízimo – conservadora e pouco sensível a questões ligadas à laicidade do Estado ou à tolerância para com a fé alheia.

Rezam as feiquenius difundidas por bolsonaristas que, em caso de vitória do PT, “brasileiros serão impedidos de falar em Deus” (restrição que viria a calhar em relação aos que exercem cargos públicos) e que “templos serão fechados”. Interditar estabelecimentos caça-níqueis, que enriquecem os empresários da fé com “doações” obtidas mediante fraude, venda de caneta ungida (para passar em concurso) e de grão de feijão que cura Covid-19 seria uma ação legítima contra o estelionato. Mas, para dar cabo dos vendilhões do templo, só Jesus na causa.

Quando se faz o diabo para conseguir votos, lambuzar-se na gordurama do pastel de feira por puro populismo chega a ser um pecado menor.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Patrulha julga atos do passado com régua moral de hoje

Eduardo Affonso (*)

O telescópio James Webb apresentou um grave defeito antes mesmo de ser lançado ao espaço. Não nas lentes e espelhos (que funcionaram magnificamente), mas no nome. O homenageado é um ex-diretor da Nasa, nascido em 1906, acusado de perseguição à comunidade LGBTQIAP+ nas décadas de 1950 e 1960.

Sim, não basta não ser homofóbico hoje, quando a homofobia é entendida como violação de um direito humano fundamental. É preciso não o ter sido no passado, sob a vigência de outra régua moral. Algo como receber multa retroativa por haver circulado numa rua cuja mão foi invertida. Você não estava na contramão em 1960, mas isso é irrelevante – perde pontos na carteira assim mesmo.

A Nasa ignorou os protestos do movimento #RenameJWST – ou abriria um flanco para o rebatismo de boa parte de seu equipamento. Antibelicistas poderiam exigir um novo nome na fuselagem do Hubble. Afinal, graças aos estudos do astrônomo Edwin P. Hubble na divisão de balística do Exército americano, bombas e foguetes tornaram-se mais eficazes – vale dizer, mais mortíferos. Kepler (1571-1630) tampouco seria poupado: filho de pai mercenário e mãe curandeira, não se dedicou apenas à matemática e à astronomia, mas também à astrologia – uma crendice, segundo a ciência moderna. Sem falar na indignação de ateus militantes e cristãos fundamentalistas diante de artefatos que evocam divindades como Júpiter, Saturno e Apolo.

Não adianta lançar esses nomes ao círculo do inferno destinado aos hereges: nada nos garante que os novos agraciados (progressistas, descolados, desconstruídos) não estejam sujeitos a pecados ainda por inventar. Quando os veganos dominarem o planeta, quem quer que tenha traçado uma picanha ou pedido um misto-quente na padaria (com uma média de café com leite) estará automaticamente no índex dos canceláveis.

Se o Webb perscruta lá fora, com sua nebulosa sexualidade, as origens do Universo, aqui neste planetinha pedregoso os arqueólogos agora discutem não o sexo dos fósseis, mas seu gênero. Pela análise do tamanho e formato dos ossos, é possível determinar se um esqueleto é de um espécime macho ou fêmea. Ativistas argumentam que essa atribuição presta um desserviço à causa, pois não leva em conta a maneira como aquele indivíduo se identificava. Ninguém garante que Lucy (hominídeo que viveu há cerca de 3 milhões de anos onde hoje é a Etiópia) e Luzia (sapiens de aproximadamente 11.500 anos, em Minas Gerais) se reconhecessem como mulheres. Seus nomes deveriam ser mudados, pois perpetuam a cisnormatividade, o colonialismo e a supremacia branca. Esse anacronismo vem de longe, e o céu parece não ser o seu limite.

O Hubble e o James Webb – rebatizados ou não a cada geração de acordo com os novos ideais de pureza ideológica – prosseguirão em sua jornada por onde nenhum homem (ou mulher, ou homem trans ou mulher trans) jamais esteve, desvendando a gênese do Universo. Enquanto isso, seguiremos aqui adaptando nosso próprio passado às conveniências contemporâneas.

Com uma única certeza: ao contrário do que sonhava Fidel Castro, a História não nos absolverá.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

O que o Lobo Mau diria a Bolsonaro

Eduardo Affonso (*)

Sr. presidente (ou candidato — nunca sei ao certo),

Invadi o provedor que o Elio Gaspari usa para fazer chegar aos vivos (principalmente aos muito vivos) certas mensagens do Além e valho-me dessa tecnologia de ponta para me dirigir ao colega, daqui do mundo das fábulas, onde bichos falam, e toda história tem uma moral.

Permita que me apresente e justifique a intimidade de tratá-lo de igual para igual: sou o Lobo Mau, aquele que contribuiu para o aumento do déficit habitacional entre os porquinhos, fez disparar a taxa de mortalidade de cordeiros e vovozinhas e lançou mão de feiquenius para tentar devorar Chapeuzinho Vermelho.

Tenho percebido, de sua parte, a apropriação de muitas das minhas estratégias — e não posso me furtar a lhe lembrar que elas nem sempre deram certo.

Como eu, o senhor bufou e mandou pelos ares a casa de palha. Bufou, bufou e derrubou a casa de pau. Animado com o sucesso, bufou, bufou, bufou e… não conseguiu pôr abaixo a casa erguida com cláusulas pétreas. Os porquinhos 01, 02 e 03, meus companheiros de fábula, poderiam ter lhe contado que, bufando, se consegue muita coisa, mas não tudo.

O senhor se travestiu de liberal na economia, assim como eu de vovozinha. Mas as orelhas grandes, que fizeram ouvidos de mercador às demandas pela reforma administrativa e por um modelo fiscal mais justo, ficaram de fora. O nariz grande, que farejou vantagens na manutenção da TV estatal e da empresa do trem-bala, também. O olho grande, que insistiu em intervir na Petrobras e travou as privatizações, idem. Por fim, a boca grande mastigou o equilíbrio fiscal e engoliu o teto de gastos. O senhor vai levar um susto maior que o meu quando o caçador entrar em cena — e olha que eu tinha imunidade por ser espécie em via de extinção.

Sua pinimba com as urnas eletrônicas é plágio descarado daquele meu entrevero, às margens do riacho, com o cordeiro. Nunca foi segredo que eu quisesse porque quisesse comê-lo, mas precisava de uma boa desculpa. Inventei que ele sujava a água que eu bebia. Isso seria impossível, haja vista ele estar 20 passos adiante de mim, no sentido da correnteza. Criei outras narrativas (se não era ele, era o irmão dele etc.), mas sem chegar ao ponto de sugerir que a direção em que corria o riacho não fosse auditável. Um lobo, ainda que mau, tem seus limites lógicos e éticos. Fosse o senhor, mesmo com os goles d’água impressos, um novo pretexto seria fabricado.

Sabemos do triste fim do cordeiro (triste para ele, não para mim, que o comi tão logo desmontou minha terceira ou quarta falácia). Quanto ao senhor, prepare-se: até o mais cordial dos cordeiros já aprendeu que bom cabrito é o que mais berra.

O pastor que gritava “é o lobo, é o lobo!” quando eu nem estava nas imediações teve sérios problemas no dia em que resolvi assuntar o rebanho. Os aldeões já estavam dessensibilizados para a ameaça.

Em outro momento, minha amiga raposa@uva entrará em contato para lhe falar de um golpe que ela tentou aplicar, o “as urnas estão verdes”. Não colou. E leão@rei manda dizer que deu boas gargalhadas com a PEC do senador vitalício.

Um abraço fraterno do

Lobo Mau

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Mais compliance e menos complacência

Eduardo Affonso (*)

A intolerância e a impunidade não vicejaram no Brasil da noite para o dia. Faz tempo que vimos tolerando os intolerantes e tendo pena dos impunes.

O casal que assassinou a atriz Daniella Perez passou menos de sete anos na prisão. Se na Black Friday tudo custa a metade do dobro, pelo Código Penal os descontos são bem mais vantajosos: vão de 60% (crimes hediondos) a 83,33% (crimes comuns).

A progressão da pena também já beneficiou a moça que mandou executar os pais, a mulher que atirou no marido e o esquartejou, o casal que asfixiou a filha de 5 anos e a jogou pela janela, o goleiro que matou a ex-amante e deu sumiço no corpo. Em breve, entrarão nessa lista a dona de casa que envenenou os filhos do marido, o vereador que espancou até a morte o enteado de 4 anos e mais alguns milhares de feminicidas, infanticidas, parricidas e afins. Entre estes, se condenados, o policial que invadiu uma festa e assassinou o aniversariante (por “provocações políticas” ) e o médico que estuprou sabe-se lá quantas gestantes durante o parto.

O bom senso recomenda não ir ao supermercado quando se está com fome ou querer mudar as leis em momento de comoção (estômago vazio e desejo de vingança são péssimos conselheiros). Mas não há como não sentir certo desconforto com um sistema penal que tão depressa deixa tantos criminosos livres, leves e soltos.

Esse tipo de pensamento é tachado de “cultura do punitivismo”. Mas, se a pena serve para que o Estado reeduque e reinsira na sociedade aqueles que infringiram a lei, qual será o tempo necessário para que um psicopata ou um fanatizado voltem, regenerados, ao convívio social?

Não é de uma hora para a outra que um médico decide pôr em risco a vida da parturiente e do nascituro, com doses excessivas de sedativos, e consumar um estupro – em pleno centro cirúrgico, diante de uma equipe médica. Até adquirir tamanha desenvoltura, houve um longo aprimoramento da técnica. Muitos sinais devem ter sido percebidos – e ignorados.

– Para prender Lula, vai ter que matar gente – ameaçou Gleisi Hoffmann em 2018.

Meses depois, Bolsonaro conclamava os acrianos:

– Vamos fuzilar a petralhada.

Em 2017, Benedita da Silva se amparava na Bíblia para profetizar que “sem derramamento de sangue, não há redenção”. A mesma Bíblia invocada meses antes por Bolsonaro:

– Não existe essa historinha de Estado laico, não. O Estado é cristão. Vamos fazer o Brasil para as maiorias. As minorias se adequam ou simplesmente desaparecem.

Avisos de radicalização não faltaram – e foram relevados. Eram “em sentido figurado” – pelo menos até a semana passada.

A demora da Justiça em perceber que não está fazendo jus ao nome pode levar o pêndulo para o lado oposto da leniência, a demanda por penas severas demais. E termos sido tão condescendentes com a radicalização política, a uma ruptura de consequências imprevisíveis.

Nada que um pouco mais de compliance (conformidade com as leis e padrões éticos) e menos de complacência não ajudassem a resolver.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

A reforma da gramática

Eduardo Affonso (*)

A tentativa de implantar uma linguagem neutra, obrigando 213 milhões de brasileiros a incorporar novos substantivos (amigue, alune, patroe, empregade), pode até não ser uma ideia ruim de todo.

Se essa turma voltar ao poder (e ela está à frente nas pesquisas de intenção de voto), teremos a chance única de pegar carona no fim do machismo tóxico do idioma, aproveitar o inevitável processo de realfabetização e liquidar vários outros problemas da língua.

Com os novos adjetivos (progressiste, gorde, fasciste, golpiste), podíamos dar um jeito nos verbos irregulares.

Não há criança que não diga “eu fazi” antes de ser repreendida e adestrada a dizer “eu fiz” – que não faz nenhum sentido e vem sem qualquer explicação.

“Fazi” é, intuitivamente, o certo – e o cérebro (principalmente o infantil) é inteligente o bastante para entender conceitos, generalizá-los e colocá-los em prática. Cada verbo irregular é obstáculo ao aprendizado, uma freada brusca nas sinapses, um “volte duas casas” na compreensão de como funciona essa abstração maravilhosa que é a linguagem.

Se a criança diz “eu comi, eu li, eu corri”, por que haveria de estar errada ao dizer “eu queri, eu sabi, eu trazi ou eu cabi”? Acabemos com o falocentrismo do masculino genérico e com as irregularidades verbais, de uma tacada só.

Como vamos ter novos pronomes inclusivos (elu, minhe, nenhume, outre, cuje), que tal eliminar os privilégios ortográficos? Poderíamos começar pela palavra “exceção”, que costuma ser escrita das mais variadas formas – excepcionalmente, até da forma correta.

Pronomes neutros e tratamento igualitário à grafia – isso, sim, é uma pauta democrática. Se o som é de S, só o S deve ter lugar de fala (ops, de escrita). Não à apropriação fonética feita por Ç, SS, SC ou X. Exceção vira “esesão” – e, assim, até ministros do atual governo serão capazes de escrever palavras difíceis como “acesso” e “impressionante” (doravante, tudo com S). O mesmo valerá para o que soe como Z ou como J. Quem corrige prova do Enem poderá se ater apenas ao conteúdo, sem uma síncope a cada batatada ortográfica.

Com particípios também passados a limpo (eleite, derrotade, auditade, ressentide), será hora de abolir o hífen. Por que guarda-chuva tem hífen e mandachuva não tem? Por que não tem hífen em camisa de força e tem em água-de-colônia? “Fora, hífen!” viria se juntar às faixas de “Fora FHC!”, “Fora Temer!”, “Fora Bolsonaro!” e “Fora ____!” (preencher com o nome do próximo presidente que não for de esquerda). Vírgula separando o vocativo, por favor.

Mas pode-se também partir para a terceira via, que é ensinar a língua como se deve, entendendo que mudanças ocorrem naturalmente e que as supostas imperfeições têm uma história e só tornam o idioma mais belo, mais humano. Que não se obriga ninguém a nada, seja na linguagem, seja na política: conversa-se, articula-se, dialoga-se, trocando o “vencer” pelo “convencer” (etimologicamente, “vencer junto”).

Emília, a boneca de pano que resolveu reformar a natureza, colocou abóboras em árvores e jabuticabas em plantas rasteiras. Quem leu Monteiro Lobato sabe no que deu.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Soneto premonitório

Eduardo Affonso (*)

Que Nostradamus, que nada! Quem profetizou sobre os eventos neste Brasil do ano da graça de 2022 foi Luís Vaz de Camões, o maior poeta vivo da língua portuguesa (morreu em 1580 apenas para os leitores ingratos).

Está tudo lá, no soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”, publicado há 424 anos sob o disfarce de ser apenas mais um poema a respeito da servidão amorosa.

“Fogo que arde sem se ver” é uma metáfora para Simone Tebet – a senadora sul-mato-grossense que não falta ao trabalho (compareceu a 95% das sessões), não rasga dinheiro público (gastou só cerca de 40% da verba de gabinete e da cota parlamentar), nem responde a processo judicial. Teve atuação firme na CPI da Covid e tem baixa rejeição. Pode crescer e aparecer. A menos que o vice seja o Aécio, porque aí incinera tudo.

“Ferida que dói, e não se sente” é referência a Lula. Responsável pelos maiores escândalos de corrupção da nossa História, há quem acredite que “não tem, nesse país, uma viv’alma mais honesta”. Mas sejamos justos: pelo menos uma vez não faltou com a verdade — foi quando disse que no Congresso havia 300 picaretas. Tanto havia que comprou vários deles, assim que teve oportunidade.

“É um andar solitário entre a gente” remete a Ciro Gomes, que não tem conseguido fazer alianças ou agregar apoios. Com seu destempero e incontinência verbal, parece “querer estar preso por vontade” a uma posição de coadjuvante na disputa.

“É um cuidar que ganha em se perder” alude, obviamente, a Luciano Bivar. Político profissional (não necessariamente na melhor acepção dos termos), neutralizou (e rifou) Sergio Moro e agora pode fazer acordos à direita e à esquerda, acima e abaixo, dentro e fora. Terá R$ 770 milhões para ser fragorosamente derrotado (fará campanha “pró-forma”) e eleger uma megabancada de deputados com poder de barganha. Perde e sai ganhando, seja qual for o futuro presidente.

“É servir a quem vence, o vencedor” descreve João Doria. Levou a melhor nas prévias do PSDB – e só nelas. O partido não o quer e parece que os eleitores também não fazem muita questão. Foi importantíssimo na luta contra a Covid-19, mas a vaidade – como cantou Billy Blanco – põe o bobo no alto e retira a escada.

Em “É ter com quem nos mata, lealdade”, Camões conseguiu retratar, à perfeição, a relação dos bolsonaristas com seu mito. O presidente se opôs à vacinação, ao distanciamento social, ao uso de máscaras – e se a Covid-19 não matou mais foi porque prefeitos, governadores e a população fizeram o que precisava ser feito. Bolsonaro conseguiu ser o pior presidente desde 1889 – o que não é pouca coisa, num país que já teve Sarney, Collor e Dilma.

“Tão contrário a si é o mesmo Amor” fala dos eleitores que tentaram se curar da dilmite tomando Bolsonariol e agora acham que dá para combater bolsonarite com uso de Lulalckmin, um genérico transgênico.

Claro que a profecia camoniana pode ter outras interpretações (quanto mais polissêmica uma previsão, maiores as chances de dar certo). Mas é evidente, ora pois, que Camões (pre)via melhor com um olho só do que Nostradamus com dois.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Novos costumes

Eduardo Affonso (*)

Um dos bichos-papões da minha infância se chamava Nélson Carneiro. Era – diziam – o homem que queria acabar com a família brasileira, instituindo o divórcio. Tive medo dele até o dia em que descobri que o divórcio era só para quem quisesse se divorciar. Meus pais não seriam separados à força. Teriam fim apenas os casamentos falidos, as uniões infelizes. Como, então, alguém poderia ser contra?

Tempos depois, a família esteve novamente ameaçada, com a perspectiva do “casamento gay” – o bicho-papão agora era a Marta Suplicy. Não cheguei a ter pesadelos com a homossexualidade compulsória que, pela reação dos tradicionalistas, seria imposta à população. Tinha aprendido que a lei é para todos – mas que há uma diferença crucial entre “permitido” e “compulsório”.

As pautas progressistas sempre apavoraram os conservadores, como se mudanças naturais nas instituições, nas relações, na sociedade, ao ser incorporadas à legislação, se tornassem mandatórias. Daí o medo irracional que parte do eleitorado tem cada vez que a esquerda se aproxima do poder. Tolice.

A grande ameaça de Lula não é o progressismo, mas o atraso. O PT contou, por 13 anos, com os meios e a oportunidade – e não houve descriminalização de drogas para uso pessoal (experiência já empreendida com sucesso em Portugal, Holanda, Espanha, Canadá e parte dos EUA). Não colocou em pauta a eutanásia (direito sancionado, sob a esquerda, no Chile, na Argentina e no Uruguai, e, sob a centro-direita, na Colômbia). Nem houve a regulamentação do aborto (a interrupção da gravidez em caso de anencefalia fetal foi obra do STF).

Energia limpa? O PT sempre esteve mais interessado em garantir apoio do Centrão (distribuindo “diretoria que fura poço”) do que em fazer evoluir a matriz energética. Ou em tocar obras como Belo Monte, Abreu e Lima e Comperj, de olho nas possibilidades de corrupção – exploradas com maestria.

O perigo da volta do PT está nos crimes que cometeu (e de que não se arrepende), não na agenda liberal, que só apoia pró-forma, para consumo interno. Aborto, drogas e eutanásia assustam – e tiram votos.

No entanto descriminalizar o porte e uso de drogas não quer dizer que elas possam vir a ser vendidas na porta das escolas, mas que haverá regulação estatal (retirando recursos do tráfico, que sustenta o crime organizado) e investimento na redução de danos (não no encarceramento injusto, ineficaz). Legalizar o aborto não é chancelar um morticínio, mas tratar a questão como de saúde pública – com aconselhamento, acolhimento e segurança para a mulher. Aprovar a eutanásia não é promover o extermínio de idosos, mas permitir um fim digno e sem sofrimento para quem assim desejar.

Apesar de Dilma já estar convidando para a posse, ainda é abril, e muita enxurrada passará por baixo (ou por cima) da ponte. Há tempo para que surja uma alternativa liberal, que trate temas controversos (como um dia foram o divórcio ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo) com mais racionalidade do que Bolsonaro e menos hipocrisia do que Lula.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Marinheiros ou ratos

Eduardo Affonso (*)

Não fosse a Argentina estar sob uma ditadura nos anos 1970, talvez Alfredo Astiz tivesse sido apenas mais um militar da Marinha – hoje na reserva, tomando mate com os amigos no Clube Naval. Não fossem o despudor e a corrupção dos governos petistas, talvez Jair Messias Bolsonaro continuasse a ser só um deputado do baixíssimo clero – hoje num churrasco com os filhos na Barra da Tijuca, contando piadas de quinta série e discutindo pequenos golpes contra o Erário. Mas havia uma ditadura no caminho de Astiz, e sua vocação se revelou: torturador e assassino. Havia um PT no caminho de Bolsonaro. A retórica o tirou do pelotão dos candidatos folclóricos, e uma facada o levou ao Palácio do Planalto.

“A ocasião faz o furto; o ladrão já nasce feito”, escreveu Machado de Assis. Feito, mas inconcluso – depende de meios, motivo e oportunidade.

Volodimir Zelenski era, até outro dia, desconhecido fora dos círculos onde se discute geopolítica. Poderia ter sido advogado (é formado em Direito), ter permanecido como ator e diretor (foi um humorista popularíssimo em seu país) – mas fundou um partido e assumiu, na vida real, o papel que interpretava na ficção, o de presidente. No caminho de Zelenski havia uma pedreira: Vladimir Putin. Que, não fosse por uma perestroica em seu caminho, poderia estar aposentado como agente da KGB, tomando vodca numa dacha com os velhos camaradas e falando mal do capitalismo.

“Eu sou eu e minha circunstância e, se não salvo a ela, não me salvo a mim”, escreveu Ortega y Gasset. A circunstância tragou Astiz, que sequestrava e torturava opositores do regime, e os atirava, vivos, ao mar. Deu pedestal a Bolsonaro, que passara a vida ao rés do chão – um pedestal para o qual lhe faltam estatura, compostura, decoro. Abriu caminho para que o Putin burocrata desaguasse no déspota que manda matar quantos ameacem seu poder, no megalomaníaco que pode empurrar o planeta a uma catástrofe nuclear. E fez de Zelenski o líder improvável, o herói inesperado na resistência a uma tirania.

Lula – “é inadmissível que um país se julgue no direito de instalar bases militares em torno de outros países” x “é absolutamente inadmissível que um país reaja invadindo outro país” – e Bolsonaro –“somos solidários à Rússia” x “não vamos tomar partido” – estão cada vez mais próximos um do outro na tibieza e na ambiguidade e mais distantes de se salvar e às suas circunstâncias. Na cola desses dois, o momento tem se encarregado de unir os antiamericanos atávicos e os de ocasião, irmanados no mantra de que é a Otan o grande satã, que na invasão da Ucrânia não há mocinhos nem bandidos, que o caso é “complexo”. Vai mostrar quem acredita na soberania e autodeterminação dos povos, na solução pacífica de conflitos, no respeito às leis internacionais – e quem não.

“É na tempestade em alto-mar que se sabe, de fato, quem é marinheiro, quem é rato”, reza o ditado. A tempestade na Ucrânia é nossa circunstância; nos oferece os meios, os motivos, a oportunidade. E tem nos permitido ver, por inteiro, quem é rato, quem é marinheiro.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

A palmatória retroativa

Eduardo Affonso (*)

O limite de velocidade de uma estrada é reduzido de 100 para 80 km/h, e são notificados todos os que trafegaram, algum dia, acima da velocidade agora permitida. Inverte-se a mão de uma rua, e fica decidido que cometeram infração grave todos os que circularam no sentido estabelecido até então. As multas não param de chegar. Milhares de carteiras de motorista são cassadas.

Faz-se um acordo ortográfico eliminando acentos e alterando grafias, e procede-se à revisão de todas as provas de Português dos últimos 800 anos, tirando ponto de quem um dia acentuou “ideia”, usou trema em “cinquenta” ou hífen em “dia a dia”. Currículos são refeitos; escritores, execrados por seus “erros crassos”.

Absurdo? É mais ou menos assim que os novos inquisidores vêm agindo em relação aos que não tinham bola de cristal e viviam em conformidade com sua época, não com a nossa. Medem os homens do século XVIII com a régua moral do século XXI. Consideram indignos de ser eternizados em bronze aqueles que tiveram escravos num tempo em que ter escravos era tão natural quanto é hoje ter empregados assalariados. E dá-lhe jogar tinta no Churchill, botar fogo no Borba Gato, mandar para o porão o Thomas Jefferson. (Ainda não se sabe se dinamitarão o Monte Rushmore, como fizeram os talibãs com os Budas de Bamiyan).

Pregam o multiculturalismo, mas deitam e rolam no cronocentrismo, imaginando o presente como o ponto culminante da evolução, o momento em que se atingiu a Verdade e as civilizações pretéritas serão passadas a limpo. É (de novo!) o fim da História, com o triunfo das suas pautas e o vencimento do boleto da dívida histórica.

E pensar que estivemos mal-acostumados com aquele princípio jurídico que garantia que a lei não retroage, a não ser em benefício do réu. E acreditávamos ser todos reféns do implacável Zeitgeist.

Na obra de Machado de Assis, a escravidão, o patriarcado, o preconceito, a hegemonia da Igreja Católica são um pano de fundo naturalizado — e não tinha como ser diferente. Defender direitos iguais para brancos e pretos, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, crentes e incréus era uma exceção, uma extravagância. O que não significa que o autor fosse escravocrata, machista ou homofóbico. Mas é muito mais fácil exumar discriminações caducas que combatê-las, vivas, nas trincheiras do cotidiano.

O que pensarão os progressistas do século XXII dessa gente que, em 2021, ainda se vestia para tomar banho de mar, levava cães ao pet shop e vacas ao matadouro, torturava plantas com as refinadas técnicas da topiaria e do bonsai, pregava a tolerância sendo intolerante e se julgava a palmatória do mundo?

Convém ler Dickens: “Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; era a idade da sabedoria, era a idade da loucura; era a época da confiança, era a época da incredulidade; era a estação das Luzes, era a estação das Trevas; a primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós; íamos todos direto ao Paraíso, íamos todos no sentido contrário”.

A História não é o aqui e o agora, mas o conto de todas as cidades, de todos os povos, de todos os tempos.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Somos todos migrantes

Eduardo Affonso (*)

Existimos porque o Homo sapiens deixou a África e ganhou o mundo. Não havia, então, postos de fronteira, fossos, muros, passaportes. O ser humano circulava como ainda hoje fazem as outras espécies. Seguia adiante porque via um horizonte, e uma alternativa além dele.

Chegamos a novos continentes, movidos pelas mesmas esperanças com que hoje milhares de refugiados se lançam ao Mediterrâneo, cruzam a selva, atravessam rios e desertos: para sobreviver, escapar à dor, reconstruir a vida.

Fugimos – toda migração é fuga – das cheias e da escassez, do fogo e do frio, da falta de perspectivas, da intolerância.

E, ainda assim, migrantes congênitos, demos de inventar barreiras, fronteiras e privilégios. De nos julgar senhores de uma terra prometida por nós a nós mesmos. Uma terra que acreditamos nossa apenas por havermos migrado antes dos que querem migrar agora. Ou – pior – depois de haver expulsado (ou exterminado) os que aqui estavam antes de chegarmos.

(Minha bisavó atravessou o Atlântico, grávida, num navio. Os sobrenomes que carrego no sangue – Raposo, Medeiros, Magalhães, Souza, Silva, Costa, Coelho, Carvalho, Lopes, Faria, Vianna, Leal, Jacó – contam a história de muitos adeuses, embarques, chegadas, recomeços.)

Quantos de nós não pensaram em refazer a vida num país mais decente, para escapar à crise sem fim engendrada pela cleptocracia a que estivemos submetidos por mais de uma década ou pelos necromilicianos de agora? Como não nos solidarizarmos com os que se cansaram de viver à míngua sob o “socialismo do século XXI” e se arriscam em balsas pelo Caribe ou a pé através da Amazônia? Os que tentam escapar do fundamentalismo dos talibãs ou querem deixar de ser reféns da miséria atávica do Haiti?

Volta e meia uma imagem traduz essa tragédia. O pequeno sírio-curdo Aylan, de bruços e já sem vida numa praia da Turquia. O contêiner repleto de cadáveres de chineses, abandonado na Inglaterra. O bebê passado de mão em mão até a cerca de arame farpado do aeroporto de Cabul. O agente de fronteira dos Estados Unidos – branco, a cavalo – tentando capturar o homem negro que entrara ilegalmente no Texas. E há as manchetes que nos deixam sem palavras: “Brasileira morre de fome e sede na travessia da fronteira entre México e EUA”.

Ela se chamava Lenilda. Era técnica em enfermagem. Saíra de Vale do Paraíso, Rondônia. Deixou um país construído por estrangeiros (99,5% dos brasileiros descendem de imigrantes) e decidiu seguir para onde os descendentes de estrangeiros correspondem a 98,5% da população. Ficou – como Aylan, como milhares – pelo caminho.

O imigrante traz sua força de trabalho e gera riqueza cultural e material. Acolhê-lo é um caso típico de altruísmo recíproco, um processo de cooperação em que todos saem ganhando. A alternativa à imigração não é impor obstáculos, mas investir em melhores condições de vida em seus países de origem – seja o Haiti, a Síria, a Venezuela, o Brasil. Jamais a humilhação, o abandono.

Somos todos descendentes do primeiro africano que migrou. Somos todos aquele bebê afegão, aquele haitiano que foge do homem a cavalo. Somos todos Lenilda. Todos, sem exceção.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Cuba seja aqui

Eduardo Affonso (*)

Você já foi a Cuba, companheiro? Não? Então, vá. Quem fez isso tem muita história para contar.

Fui ávido para mergulhar no Caribe e no comunismo. Encontrei-os em frente ao hotel. Um, aspergindo azul sobre o Malecón; o outro, na forma de um sujeito que veio oferecer charutos desviados das fábricas estatais. No, gracias. Será que eu não queria rum legítimo? Conhecer uma amiga dele? Um amigo, quem sabe? Essa cena se repetiu dezenas de vezes. Mas não era nos tempos de Fulgêncio Batista que o país se tornara o paraíso do contrabando e da prostituição? Cuba e seus paradoxos.

Nas sacadas dos sobrados da Habana Vieja (impossível estar em Cuba e não pensar na Bahia), há lembranças de uma já dilapidada elegância. Numa dessas quase ruínas, a orgulhosa militante faz questão de contar que falta manteiga, mas todos têm pão; que ela não teve boneca, mas a filha é cientista. Quantos no mundo — pergunta, retoricamente — podem dizer isso? Não sei. Adiante, na calçada onde se trocam tampas sem panela por panelas sem tampa, outra mulher, com dólares amarrotados na mão, me pede para comprar, numa loja exclusiva para estrangeiros, açúcar, sabonete, um pedaço de frango. Onde se aceita peso, falta quase tudo.

O analfabetismo foi praticamente erradicado. Mas educação, entendida como diálogo, reflexão, questionamento e construção ativa do conhecimento, isso não há. Há doutrinação — o oposto de preparar para o mundo, de proporcionar a experiência de saber o que existe mais longe.

Na teoria, em Cuba haveria livros a mancheias, edições baratas por causa do papel de baixa qualidade e do pouco- caso com direitos autorais. Na prática, bem fornidas só as prateleiras de marxismo. Mas tive experiências enriquecedoras em livrarias. Com um quê de filme de 007, elas tinham se tornado o lugar perfeito para câmbio ilegal. Trocavam-se olhares, acertava-se a taxa (dez vezes maior que a oficial) com gestos sutis. Pesos cubanos eram deixados entre as páginas ásperas de um volume sobre materialismo dialético, enquanto se encartava a cédula de dólar numa obra em papel-jornal sobre a concentração de capital. Depois, era só devolver os exemplares às estantes, disfarçar, e cada um folhear o livro alheio, recolhendo discretamente o que ali houvesse de valor.

Ensaia-se agora, no verão de lá, uma “primavera de Havana”, com o povo — alegre e generoso como poucos — indo às ruas exigir liberdade, oportunidade, dignidade, comida. Quem derrubou há 62 anos uma tirania saberá como fazer uma nova revolução, trocando “Patria o muerte” por “Patria y vida”.

Estive na Hungria de Kádár, na Tchecoslováquia de Husák, na Iugoslávia de Dizdarevic. No Mianmar de uma junta militar, na Cuba de Fidel. E, para variar, no Chile de Pinochet. Muita sorte teve, muita sorte terá quem andou por lá como viajante, sabendo que as restrições eram por poucos dias, não sem data para acabar.

Na última noite em Havana, me apareceu no hotel a cubana para quem comprei comida e com quem comentei não ter encontrado os livros que queria. Trazia numa sacola todos os de Alejo Carpentier e Nicolás Guillén da sua estante.

Por isso, Cuba seja aqui. Uma gente tão parecida com a nossa, que não quer saber de ditadura. Seja a de Castro, seja a de Ustra.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Beijo planetário

Eduardo Affonso (*)

Volta e meia alguém olha atravessado quando escrevo “leiaute”, “becape” ou “apigreide” – possivelmente uma pessoa que não se avexa de escrever “futebol”, “nocaute” e “sanduíche”.

Deve se achar um craque no idioma, me esnobando sem saber que “craque” se escrevia “crack” no tempo em que “gol” era “goal”, “beque” era “back” e “pênalti” era “penalty”. E possivelmente ignorando que esnobar venha de “snob”.

Quem é contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu aportuguesamento) parece desconsiderar que todas as línguas do mundo se tocam, como se falar fosse um enorme beijo planetário.

As palavras saltam de uma língua para outra, gotículas de saliva circulando em beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade entre os falantes. E o português é uma língua que beija bem.

Quando falamos “azul”, estamos falando árabe. E quando folheamos um almanaque, procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria, colocamos um fio de azeite, espetamos um alfinete na almofada, anotamos um algarismo.

Falamos francês quando vamos ao balé, usamos casaco marrom, fazemos uma maquete com vidro fumê, quando comemos um croquete ou pedimos uma omelete ao garçom; quando acendemos o abajur pra tomar um champanhe reclinados no divã ou quando um sutiã provoca um frisson.

Falamos tupi ao pedir um açaí, um suco de abacaxi ou de pitanga; quando vemos um urubu ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no Tiririca, botamos o braço na tipoia, armamos um sururu, comemos mandioca (ou aipim), regamos uma samambaia, deixamos a peteca cair. Quando comemos moqueca capixaba, tocamos cuíca, cantamos a Garota de Ipanema.

Dá pra imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê, o vatapá, o axé, o afoxé, os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os babalorixás, as mandingas, os balangandãs? Tudo isso veio no coração dos infames “navios negreiros”.

As palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença, feito um tsunami. E muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.

Posso estar falando grego, e estou mesmo. Sou ateu, apoio a eutanásia, gosto de metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao telefone, já passei por várias cirurgias. E não consigo imaginar que palavras usaríamos para a pizza, a lasanha, o risoto, se a máfia da língua italiana não tivesse contrabandeado esse vocabulário junto com a sua culinária.

Há, claro, os exageros. Ninguém precisa de um “delivery” se pode fazer uma “entrega”, ou anunciar uma “sale” se se trata de uma “liquidação”. Pra quê sair pra night de bike, se dava tranquilamente pra sair pra noite de bicicleta?

Mas a língua portuguesa também se insinua dentro das bocas falantes de outros idiomas. Os japoneses chamam capitão de “kapitan”, copo de “koppu”, pão de “pan”, sabão de “shabon”. Tudo culpa nossa. Como o café, que deixou de ser apenas o grão e a bebida, para ser também o lugar onde é bebido. E a banana, tão fácil de pronunciar quanto de descascar, e que por isso foi incorporada tal e qual a um sem-fim de idiomas. E o caju, que virou “cashew” em inglês (eles nunca iam acertar a pronúncia mesmo).

“Fetish” vem do nosso fetiche, e não o contrário. “Mandarim”, seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do portuguesíssimo verbo “mandar”. O americano chama melaço de “molasses”, mosquito de “mosquito” e piranha, de “piranha” – não chega a ser a conquista da América, mas é um começo.

Tudo isso é a propósito do 5 de maio, Dia da Língua Portuguesa(1), cada vez mais inculta e nem por isso menos bela. Uma língua viva, vibrante, maleável, promíscua – vai de boca em boca, bebendo de todas as fontes, lambendo o que vê pela frente.

Mais de oitocentos anos, e com um tesão de vinte e poucos.

(1) Texto preparado para um 5 de maio.

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.

Propostas afins

Eduardo Affonso (*)

Amigues,

Vocês já se divertiram à beça com a proposta estapafúrdia de se implantar uma linguagem neutra que, trocando um “O” por um “E”, acabaria com todes es problemes de machisme, misoginie, homofobie, transfobie etcétere.

Mas a ideia, em si, não é ruim. O que estraga é ser pouco abrangente e se limitar à questão de gênero. Há várias outras formas de opressão linguística – e a maior delas é… a opressão linguística.

Eu aproveitaria que todos os livros terão que ser reescritos e mandaria ver numa linguagem realmente inclusiva. Muita gente não entende, por exemplo, a diferença entre “mau” e “mal”. E deve se sentir muito mau contando a história do lobo mal para os filhos, sem saber quando está usando um adjetivo ou um advérbio.

Solução: uniformizamos a grafia, e daqui pra frente será “mao”. Tanto fará ser bom ou mao, andar bem ou mao acompanhado. Isso no singular, porque no plural continuará havendo males que vêm para o bem, e os bons acabarão pagando pelos maus.

De uma penada só, lá se vão 25% dos erros de português.

“Mas” e “mais” são outra desgraça que pode estar com os dias contados se adotarmos a grafia única “maes”.

O corretor ortográfico vai criar caso nos primeiros dias, maes nunca maes teremos dúvidas se é para usar a conjunção adversativa ou o advérbio de intensidade.

Outros 25% de erros eliminados.

“Menos” ou “menas”? Menes.

“Meio” ou “meia”? Meie, seja adjetivo, advérbio, numeral ou substantivo.

“Há” ou “a”? Ah!, seja artigo, verbo, preposição ou interjeição – e ah crase vai fazer companhia ao trema, ah fita para máquina de escrever e ao estado civil de “desquitada” no limbo das coisas que perderam ah razão de existir ah muito tempo.

Ah menes que você seja uma pessoa meie lenta, já terá percebido que ah inúmeras vantagens nessas alterações – ah maior delas sendo outros 25% de correções a menes ah fazer nas provas do Enem, nas matérias dos jornais, nos tuítes de ministros da Educação.

Finalmente, a pergunta que não quer calar: por que o português tem que ser tão complicado? Deve haver um porquê. Talvez porque um monte de filólogos mortos tenha decidido assim – mas por quê?

Não importa. Na reforma contra o preconceito linguístico tudo vai virar “pq”.

Pq? Pq sim. Não tem que ter pq.

E lá se vão os 25% de erros restantes.

Por isso, pensem duas vezes antes de criticar seus amigues progressistes e as fórmulas mirabolantes que eles inventaram para resolver os problemas do mundo com uma canetada. Eles podem ser çem noção mas não estão çem por cento errados. (O “ç” também é uma mão na roda, né não?)

(*) Eduardo Affonso é arquiteto, colunista do jornal O Globo e blogueiro.