PT – Cancelamento de registro

José Horta Manzano

A procuradoria da Justiça Eleitoral deu parecer favorável a um pedido de cassação do registro do PT – Partido dos Trabalhadores. A agremiação é acusada de ter recebido financiamento do estrangeiro, o que é proibido pela legislação eleitoral. Dificilmente o caso progredirá. As reações dos extremos do espectro político foram contrastadas.

Do lado dos populistas de direita, choveram aplausos; os apoiadores de doutor Bolsonaro estão soltando foguetes. Do lado dos populistas de esquerda, o que se ouve são protestos indignados; os simpatizantes de Lula da Silva estão soltando fogo pelas ventas.

Se eu fosse do time dos populistas de direita, deixaria de lado esse sentimento de vitória e refletiria com calma; se eu fosse do time dos populistas de esquerda, esqueceria essa sensação de orgulho ferido e pesaria os prós e os contras.

Para o projeto de reeleição de doutor Bolsonaro, o desaparecimento do PT não convém. O presidente foi eleito na onda do anti-petismo. Volta e meia, ele nos assusta com o perigo da volta ao poder do adversário. Ora, se o PT desaparecesse, quem encarnaria o espectro da volta dos ‘comunistas’ no discurso bolsonarista? Melhor que o partido da bandeira vermelha continue existindo. E, se seguir desidratado como está, melhor ainda. Nada de cassar-lhe o registro.

Estrela do PT formada com sálvias.
Foi plantada no Alvorada quando Lula era presidente. Descaracterizou o jardim, um projeto paisagístico oferecido ao Brasil pelo imperador do Japão.

Para o projeto dos petistas – com exceção de Lula da Silva –, o desaparecimento do partido é uma bênção. O PT, convenhamos, anda com o nome sujo na praça. Mensalão e petrolão deixaram marca pesada, indelével, que não sai nem lavando com água quente. Há que considerar que a extinção da legenda não significa a sumidura dos afiliados. Alguns eleitos migrarão para outras siglas. Os que permanecerem, simplesmente fundarão um novo PT, com outro nome. Seria até boa ocasião para ascenção de figuras novas, menos ‘lulodependentes’.

Em princípio, mudar de nome parece manobra grosseira e fadada ao fracasso. Mas não é assim. Vejam o caso do DEM: alguém ainda se lembra que é a continuação do antigo PFL, sucessor da Arena, partido da ditadura? E alguém se dá conta de que o Cidadania sucedeu ao antigo PPS, partido que reclamava a abolição da propriedade privada?

Se a reciclagem deu certo para eles, havia de dar também para o PT. A mudança de nome seria o melhor caminho pra surgir como partido novo, livre de vícios e de pecados.

Nota
Não sou petista e muito menos bolsonarista. Que fique claro.

Dissidência

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Meu reino de escriba por uma dissidência não gratuita!

Não peço explicitamente por um cavalo, mas tomo o cuidado de informar de antemão que a dissidência, um jeito diferente de pensar, argumentado com clareza e destemor, funciona para mim exatamente como um cavalo. Monto nela e volto à arena com o coração pulsando ainda mais forte, cheio de novos brios. Cavalgo a discordância em pleno gozo, sentindo meus músculos mentais se retesando e os ventos da paixão intelectual batendo na minha pele, me estimulando a seguir na luta.

Idade Media 3Nenhum governo se sustenta sem oposição. O regime do meu cérebro não é diferente. Precisa desesperadamente de um antagonista que o faça explorar contradições, limites, dúvidas e certezas. Que o force a pulsar, alternando momentos de expansão e de retraimento. Que encoste no seu peito a lâmina fria da espada de um outro intelecto.

Admito que hoje em dia não é nada fácil ser oposição. O contraditório é agora quase que um insulto, um tapa na cara de quem ousa se posicionar. Vivemos tempos de intolerância, de esgrima mental e verbal. Esquecemos que as palavras são meros instrumentos, cheios de som e fúria, mas que não significam nada em si mesmas. Temidas hoje como faca na mão de crianças, não mais na de cirurgiões.

É pena. Precisamos nos exercitar sempre. Pensar é desobedecer a Deus, disse Fernando Pessoa através da pluma de Álvaro de Campos. Acredito nisso. Pensar, para mim, é denunciar a onipotência do outro, ser iconoclasta, recusar-se a idolatrar o carneiro de ouro da superioridade moral ou intelectual. Contraditar é uma forma benfazeja de emparelhar ângulos de visão, redesenhar fronteiras, encontrar uma perspectiva própria.

Parlamento UKQuando navego pelas redes sociais, não consigo ocultar de mim mesma o desconforto com aquele oceano de platitudes e de eterna reafirmação mútua. Pode soar presunçoso, mas não preciso de afagos a meu Narciso. Claro que sempre dá aquele calorzinho gostoso no peito descobrir que se tem almas gêmeas no mundo, mas sei que o demônio da vaidade costuma atacar por meio delas.

Preciso de alguém que dialogue comigo e que, aceitando o intercâmbio corajoso de opiniões, me devolva a sensação inebriante de estar viva, lúcida. A adesão irrefletida, sem contestação, a meus pontos de vista só faz dissolver aos poucos a atração que experimentei no início. Me emburrece, me empobrece emocionalmente. Tem um efeito tão deletério em meu psiquismo quanto a discordância pela mera discordância.

O confronto leal, por outro lado, tem o condão de me devolver a meu tamanho natural. Sinto-o como uma demonstração de respeito, uma forma de reconhecer a legitimidade de meus sentimentos e de minha maneira de pensar a vida. Reafirmo como um mantra para tentar salvar a mim mesma: a verdade liberta, a integridade seduz.

Idade Media 2Saibam todos os que me lerem que, para mim, os laços afetivos pressupõem a existência de duas pessoas inteiras e separadas. Se uma aceita se dissolver como ser pensante na outra em nome da preservação da relação, o jogo amoroso desaparece, vira tédio. E, lamentavelmente, nem todo mundo se dá conta hoje em dia que o melhor antídoto para realimentar o fogo do amor é a dissensão ocasional.

Duvida? Cantarole comigo:

“O amor da gente é como um grão,
Uma semente de ilusão,
Tem que morrer para germinar…”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Sem fronteiras

José Horta Manzano

Seja qual for o resultado da final de consolação deste 12 de julho, a Copa das copas já terminou. Chegou a hora do inventário. Quando o resultado é bom, distribuem-se os dividendos. Dado que o exercício foi catastrófico, é hora de apontar os culpados.

Certa de que o Brasil venceria o torneio, dona Dilma tinha-se atribuído, de antemão, a paternidade de glórias futuras. As glórias entraram em greve e não vieram. Todos agora lançam olhar interrogativo à presidente e perguntam: «Ué, a senhora não disse que ia dar tudo certo e que ia ser uma maravilha?». Presidenta que se preza não pode se esquivar alegando que foi traída, que não sabia de nada. Essa desculpa já está muito manjada.

Elefante 2Instruída por algum assessor, ela chegou à conclusão de que, para escapar, o melhor seria jogar a responsabilidade no colo de alguém. A CBF, responsável pela organização do futebol nacional, apareceu como culpada ideal pelo descalabro. Dona Dilma, sob a ameaça de ver suas «arenas» se transformarem em elefantes brancos, aceitou a sugestão. Já se pronunciou mais de uma vez declarando, em tom peremptório, que uma profunda reformulação do futebol brasileiro tem de ser empreendida.

Cabe a pergunta: por que, diabos, essa profunda reformulação não foi posta em prática faz sete anos, desde o momento em que o Brasil foi designado para abrigar a Copa das copas? Por que esperaram que a incúria desembocasse numa acachapante derrota?

Ainda que tardiamente, nossa presidente propõe que se criem escolas de futebol, como na Alemanha, para que nossos craquinhos possam desenvolver sua craquidão e tornar-se cracões sem ter de recorrer a escolas estrangeiras. Assim ― raciocina a mandatária ― jogadores brasileiros ficarão no Brasil, o nível do futebol nacional subirá e os estádios lotarão, afastando o espectro de elefantes albinos plantados em plena Amazônia Legal.

O raciocínio manca das duas pernas. Parte da falsa premissa de que nossos atletas vão jogar na Europa por causa da inexistência de escolas de futebol nacionais. Não é bem assim. Eles vão jogar onde o salário for mais vantajoso. Se os clubes brasileiros pagassem o que pagam os europeus, haveria fila de cracões mundiais à espera de uma chance.

Elefante 1A segunda leviandade é ignorar o custo da empreitada. Já imaginaram? Cria-se nova estatal, a Futebrax (ou SoccBras, de sabor mais americanizado). Em seguida, abrem-se 27 filiais da autarquia, uma em cada estado. Depois vêm as sedes, os campos de treinamento, os professores, os assessores, os olheiros, os fisioterapeutas, os médicos, os roupeiros, os treinadores, os psicólogos, os porteiros, os seguranças, a mulher do café. Sem esquecer os agregados, os nomeados, os apaniguados, os amigos do rei e a indispensável propaganda institucional ― um verdadeiro cabide de empregos. Para salvar elefantinhos (os estádios inúteis), cria-se um elefantão. Contrassenso.

Proponho a dona Dilma um caminho muito mais simples, rápido e barato. Que institua imediatamente a Bolsa-Futebol. Os craquinhos que demonstrarem talento serão contemplados. Passarão dois anos na Alemanha, estudando numa escola de futebol, com todas as despesas pagas. Depois disso, terão de honrar o compromisso de atuar no futebol brasileiro, obrigatoriamente, durante dois anos. A partir daí, estarão liberados para trabalharem onde bem entenderem.

A mim, parece-me uma solução de baixo custo e de fácil realização. Em vez de construir uma estrutura a partir do zero, cara e demorada, aproveita-se a estrutura já existente no estrangeiro. Não vejo desonra nisso.

Para disfarçar o estigma de assistencialismo embutido na palavra bolsa, melhor chamar o programa de Futebol sem fronteiras. Que tal?

Em estado de dúvida

José Horta Manzano

Estádio é estádio. Arena é arena. Picadeiro é picadeiro. Palco é palco. Palanque é palanque. Não viria à ideia de ninguém dizer que a peça de teatro será apresentada no picadeiro do teatro. Não seria concebível relatar que, para pronunciar seu discurso, o candidato subiu à arena. Ficaria ridículo contar que o jogo de vôlei teve lugar no palanque.

Picadeiro é termo ligado ao circo. Palco traz à mente o teatro. Palanque lembra imediatamente um comício político. Arena é expressão intimamente conectada a tourada, corrida de bigas, luta de gladiadores. Estádio é construção ― geralmente de grandes dimensões ― onde se praticam esportes atuais, entre os quais o futebol.

O povo brasileiro, sabe-se lá por que, sempre foi bastante permeável a modismos vindos do estrangeiro. Cem anos atrás, a linguagem era recheada de palavras e expressões francesas, a língua de cultura da época. Hoje é vez do inglês. Amanhã, só Deus sabe o que virá.

Há neologismos bem-vindos. Quando falta uma palavra em nosso vocabulário, por que não adotar aquela que já nos vem prontinha do exterior? Comprar feito é tããão mais fácil que inventar um similar nacional, não é mesmo? No entanto, há modismos que perturbam. Um deles, muito em voga atualmente, é o surpreendente e repentino abandono do tradicional termo estádio, substituído pelo bizarro arena.

Será que os brasileiros logo estarão dizendo que, domingo que vem, vão à arena assistir a um jogo? Pode ser, melhor não botar a mão no fogo. Os franceses são mais duros na queda. Naquele país, ninguém jamais em tempo algum conseguiria impor uma novidade desse calibre. Stade continua significando estádio. Arènes (que é normalmente usada no plural) é a palavra empregada para designar um campo de touradas.

Le Monde ― o jornal mais prestigioso da França, traz, em sua edição datada de 12 dez° 2013, artigo de Nicolas Bourcier sob o título Le Brésil au stade du doute. A expressão contém um jogo de palavras. Stade tanto significa estádio como estado (=situação). Portanto, tanto se pode traduzir por O Brasil em estado de dúvida, como por O Brasil no estádio da dúvida. Trocadilhos e brincadeiras com palavras são comuns na imprensa francesa.

O texto, naturalmente, tece considerações sobre a próxima Copa do Mundo e sua organização. Menciona o espetáculo horripilante que se viu recentemente num estádio de Joinville. Fala também do acidente que dizimou uma parte do estádio dito Itaquerão. Relata atraso na construção dos estádios de Curitiba, Manaus e Cuiabá. Para coroar, conta que a previsão de custo das construções esportivas teve aumento de um bilhão de reais de um ano para cá. Diz ainda que o total de investimentos em infraestrutura deve ultrapassar os 25 bilhões de reais. No finalzinho do escrito, fica no ar uma dúvida maliciosa sobre a serenidade do clima no qual ocorrerá o megaevento do ano que vem.

O artigo de página inteira está engalanado por vários desenhos humorísticos. Estão aqui abaixo.

Le Monde ― 12 dez° 2013 página inteira

Le Monde ― 12 dez° 2013
Artigo completo

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Le Monde ― 12 dez° 2013 O texto

Le Monde ― 12 dez° 2013
O texto

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Le Monde ― 12 dez° 2013 "Ainda bem que estão todos em frente à tevê!" by Mix & Remix, desenhista suíço

Le Monde ― 12 dez° 2013
“Não vejo a hora em que eles se sentem todos em frente à tevê!”
by Mix & Remix, desenhista suíço

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Le Monde ― 12 dez° 2013 by Payam Borumand, desenhista iraniano

Le Monde ― 12 dez° 2013
by Payam Borumand, desenhista iraniano

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by Boligan, desenhista mexicano

by Boligan, desenhista mexicano

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by Nicolas Vadot, desenhista franco-britânico

O custo da Copa 2014  –  by Nicolas Vadot, desenhista franco-britânico

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by Marcelo de Andrade, cartunista da Folha de São Paulo

by Marcelo de Andrade, cartunista da Folha de São Paulo

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Economia de palavras

Nas décadas de 60 e 70, quando foi prefeito de Salvador e senador pela Bahia, Heitor Dias (UDN e Arena) guardava um discurso na ponta da língua para responder aos pedidos de dinheiro que eram feitos por seus eleitores ― prática comum à época.

Ao ser abordado nas ruas da capital baiana ou em Brasília, Dias, que chamava seus interlocutores de “parentes”, costumava responder:

« ― Parente, eu tenho 14 motivos para não lhe emprestar dinheiro. O primeiro deles é que não tenho. Acho desnecessário explicar os outros 13.»

Do Painel de Vera Magalhães, in Folha de São Paulo, 2 out° 2013

Vaia

José Horta Manzano

Levar uma vaia, taí uma coisa desagradável. Ninguém deseja isso nem a seu pior inimigo. Isto é… bem… hããã… é melhor mudar de parágrafo.

Desagradável ou não, ela está na moda mas ninguém quer saber de enfrentá-la. Todos fogem, uns discretamente, outros na caradura.

Nossa presidente, escaldada pelos apupos de que foi alvo na cerimônia de abertura, anunciou, num primeiro momento, que pretendia peitar a multidão e se apresentar na final da copinha destemidamente in personam. Com os acontecimentos quentes que se seguiram àquele dia, ela mudou logo de ideia. Pelo menos, teve o mérito de ser clara: disse que tinha decido não ir. E pronto.

Vaia

Vaia

Já um antigo presidente, escaldado meia dúzia de anos atrás quando dos Jogos Panamericanos, esgueirou-se como pôde. Mandou-se para a África. Preferiu guardar uma respeitosa distância de 10 mil quilômetros dos estádios ― que hoje têm o sugestivo nome de «arenas».

Os torcedores hão de ter sentido muita falta do antigo mandatário. Logo ele, que tinha batalhado tanto para que esse torneio se realizasse em território nacional… É realmente uma pena que obrigações imperativas o tenham retido tão longe do carinho do povo que tanto o adora. Uma pena.

Outros mandarins valeram-se de, digamos assim, «malfeitos» para estar presentes. Para chegar ao Rio de Janeiro, requisicionaram avião da FAB, que ninguém é de ferro. Discretos,  confundiram-se com a multidão, julgando-se assim a salvo de olhares indiscretos. Tiveram de aprender de forma brutal que, nos dias de hoje, está cada vez mais difícil passar despercebido.

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Etimologia

Vaia é termo que utilizamos para demonstrar desagrado com o desempenho de um artista no palco. Accessoriamente, costuma-se vaiar para mostrar descontentamento com a simples presença de determinada pessoa em determinado lugar.

Dificilmente alguém vaia sozinho. É mais comum que vaias partam de uma multidão ou, pelo menos, de um grupo consistente. É mostra de desagrado coletivo, bem mais temível que o aborrecimento de um indivíduo só. O antigo palco vem sendo substituído por «arenas» e por telões. Sinal dos tempos.

Embora não se note à primeira vista, vaia é palavra de origem onomatopaica, daquelas que tentam imitar o som original. Aliás, várias outras línguas se valem de onomatopeia para dar nome à vaia.

Os ingleses dizem to boo e os franceses huer. Os espanhois preferiram abuchar, derivado do grito com que chamavam falcões amestrados.

Vaia

Vaia

Os italianos não seguiram a norma. Preferem dizer fischiare, assobiar. Os alemães vão pelo mesmo caminho quando dizem auspfeifen, assobiar.

Mas a raiz de nossa vaia não está plantada em terras brasileiras nem tampouco lusas. Vem de mais longe.

O italiano moderno guarda o termo baia (báia), derivado do verbo baiare, já obsoleto. Usa-se sobretudo na expressão «dare la baia» a alguém, com o sentido de zombar dessa pessoa.

O francês costumava usava o termo baie com o sentido de engodo, enganação. A palavra caiu em desuso há mais de 100 anos.

A hipótese mais provável da origem de nossa vaia é uma onomatopeia, uma imitação do uivo dos cães. É parente do italiano abbaiare e do francês aboyer, ambos significando ladrar.

Políticos não temem a lei, mas abominam a vaia. Vamos em frente, brava gente: povo que vaia unido chega lá!

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Malfeitos estrangeiros

José Horta Manzano

Às vezes a gente imagina que a corrupção é um mal exclusivamente brasileiro, que absurdos só acontecem em terra tupiniquim, que a malandragem é especificidade nacional.

É apenas meia verdade. Se é fato notório que corrupção, absurdos e malandragem correm soltos em nossas terras e fazem parte da paisagem, não é verdade que o Brasil seja o único lugar do planeta onde essas práticas são corriqueiras.Bola futebol

Sabemos todos que a próxima Copa do Mundo terá lugar em nosso País. Sabemos todos que irregularidades ― para usar um termo eufemístico ― têm ocorrido e que muitas mais ocorrerão nos meses que nos separam do evento.

É razoável imaginar que as edições do campeonato mundial de futebol hospedadas pela Alemanha, pela Coreia, pelo Japão não tenham sido manchadas por trambiques. Se os houve, foram menos escancarados.

Já de uns tempos para cá, parece que a Fifa resolveu tirar a máscara. Não bastasse a escolha da África do Sul e do Brasil, a Rússia está escalada para abrigar a edição seguinte.

O imenso país, que se estende do Báltico ao Pacífico, tem espaço, tem população, tem tradição futebolística. Não é por esse lado que se poderá criticar a escolha. O que atrapalha um pouco o quadro é o fato de a Rússia nunca ter conhecido um governo democrático.

Desde os tempos de Ivan, o Terrível, o território tem sido controlado com mão de ferro. De monarquia feroz, passaram a ditadura comunista. Seguiu-se um governo autoritário que ainda subsiste. A candidatura da Rússia não foi, portanto, apresentada por legítimos representantes do povo, mas pela nomenklatura. É verdade, não se usa mais esse termo, mas a realidade não mudou muito por aquelas bandas. As castas dirigentes ainda hão de continuar sobrevoando o populacho por um bom tempo.

Não é absurdo imaginar que algum mimo tenha sido oferecido aos integrantes do comitê que escolheu a Rússia. Dado que não é costume assinar recibo quando se recebem agrados desse jaez, ficaremos sem saber.
Camelo

Mas o que vem depois é bem pior. Os dirigentes da Fifa decidiram que a edição seguinte, a de 2022, vai-se realizar no Catar. O nome se escreve meio esquisito. Quem preferir, que use Qatar ou até Katar, que fica mais exótico.

Poucos já visitaram esse país, mas os meios de informação de que dispomos atualmente nos deixam a par de muita coisa. Não precisa ser nenhum especialista para saber que o Catar não tem tradição futebolística. Uma rápida pesquisa nos ensina que a superfície do país é de 11 mil km2, a metade de Sergipe, o menor estado brasileiro. Da população total de menos de dois milhões de almas, metade está concentrada na capital. As duas maiores cidades abrigam 80% dos habitantes.

Mas há pior ainda. O clima é desértico, sem árvores, sem vegetação. Para completar, a média das temperaturas diurnas em junho/julho, justamente quando a Copa será disputada, é de amenos 41°, 42°. Atenção: falo de média. Um dia mais abafado pode empurrar o mercúrio até os 48° ou 50°. Esses valores são, naturalmente, medidos à sombra. Mas nenhum visitante será obrigado a ficar à sombra.

Trinta e duas equipes participarão. Jogarão 64 partidas. Como é que vão se arranjar com as sedes? Todos os jogos no mesmo estádio? Ou novas arenas serão edificadas no deserto? Cá entre nós, nunca o termo «arena» terá sido tão bem utilizado. Em italiano e em espanhol, significa areia.

Dado que é impossível que esses detalhes tenham escapado aos nobres dirigentes do futebol mundial, alguma razão oculta tem de estar por detrás da designação desse micropaís. O fato é que a Fifa, inflexível, mantém sua escolha.

Como diziam os mineiros de antigamente, «debaixo do angu tem carne».

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Nota: Pode-se entrever um pedacinho da carne escondida debaixo do angu por este artigo. Decididamente, está instituído o programa Bolsa-futebol.