A passos largos

Pastor Sargento Isidório

José Horta Manzano

Pode-se dizer que o Pastor Sargento Isidório, deputado federal, é a versão baiana do catarinense Cabo Daciolo – lembra dele? Ambos são exemplos vivos dos valores que sustentam o bolsonarismo: têm um pé na hierarquia militar e outro no movimento neopentecostal. São ambos pastores evangélicos.

Até aí, nada de mais. Este é um país democrático, em que cada cidadão é livre de escolher o caminho que prefere seguir, desde que não confronte a lei.

Mais insistente que seu colega catarinense, o baiano Isidório tem se mostrado ativo em apresentar projetos de lei destinados a dar peso legal a suas convicções religiosas. Sua mais recente façanha leva a data de ontem, 23 de novembro. Conseguiu a aprovação de uma lei que proíbe alterações na Bíblia.

O artigo único do texto veda “qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada, composta pelo Antigo e pelo Novo Testamento em seus capítulos ou versículos, sendo garantida a pregação do seu conteúdo em todo território nacional.”

Parlamentares manifestaram preocupação com as imprecisões da nova lei. Qual é o texto-base que não pode mais ser modificado? Nova tradução do aramaico será proibida? Quem julgará se esta versão é melhor que aquela (ou vice-versa)?

Tirando o aspecto folclórico do episódio, que mais parece piada de mau gosto, minha preocupação é outra. O Brasil, como sabemos, é um país laico, o que significa que nenhuma religião será oficialmente apoiada nem entravada. Todo cidadão é livre de exercer sua fé (ou de não exercer nenhuma), desde que se mantenha dentro dos limites legais.

O Art. 19 da Constituição veda expressamente à União, às unidades federativas e aos municípios “estabelecer relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. O texto que acaba de ser aprovado fere claramente esse dispositivo, visto que legisla em matéria fora de sua competência. Fixar parâmetros de qualidade para a Bíblia equivale a legislar sobre a altura da batina de padres católicos ou sobre duração de cultos evangélicos. Um descabimento.

É surpreendente que, por um lado, a lei tenha sido aprovada e, por outro, que a oposição não tenha alçado veementemente a voz. Resta ao presidente de algum partido mais esclarecido (espero que haja alguém) apresentar ao Supremo uma ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade. Essa lei não resistirá ao escrutínio de nossa Corte Constitucional.

Se ninguém fizer nada e a lei entrar em vigor, terá sido dado mais um grande passo na consolidação de nossa teocracia tropical.

A lição do Gabão

José Horta Manzano

Anos atrás, no apogeu da popularidade, nosso guia se sentia acima do bem e do mal. Falava pelos cotovelos, dizia bobagens cabeludas e a maioria, anestesiada, achava graça e aplaudia. Convém lembrar que ele continua recitando bobagens, mas a plateia ‒ para azar dele ‒ despertou da letargia. O prazo de validade venceu e a fala do antigo guia perdeu o encanto: vai direto para o cesto de papel.

Em agosto de 2004, quando de uma viagem ao Gabão ‒ país da África equatorial, pequeno mas rico em petróleo e em minerais ‒ foi recebido com pompa e circunstância pelo então “presidente” Omar Bongo. Àquela altura, já fazia 37 anos que o figurão estava no topo do poder. Firme e forte, ainda ficaria cinco anos, até exalar o último suspiro, perfazendo um total de 42 anos de mando.

Chamada do Estadão, 17 ago 2004 Clique para ampliar

Chamada do Estadão, 17 ago 2004
Clique para ampliar

Encarnação do culto extremo à personalidade, prática comum em países mais atrasados, o ditador chegou a ser homenageado, em vida, com a mudança do nome de sua cidade de nascimento. Já em 1969, dois anos depois de Bongo tomar o poder, a pequena Ambombo natal passou a chamar-se Bongoville. Traduzindo para o tupiniquim, é como se Caetés tivesse sido rebatizada Lulópolis ou Lulândia. Dá pra sentir o ambiente?

Com a morte de Omar Bongo, o caminho da sucessão se abriu. E quem foi o ungido? Pois foi Ali Bongo, primogênito do velho guerreiro. Coincidência? Não parece. A máquina da ditadura hereditária, bem azeitada pelo patriarca durante quatro décadas, não tinha como falhar. À moda da Coreia do Norte, da China, de Cuba e de outros paraísos democráticos, eleições são só pra inglês ver. O poder passa de pai pra filho enquanto parlamentares são eleitos apenas para referendar decisões já tomadas pelos reais donos do país.

Após sete anos, chegou a hora de Ali Bongo convocar eleições presidenciais. Foi agora, mês passado. Os resultados são interessantíssimos. Monsieur Bongo saiu vencedor com uma apertada diferença de 6 mil votos, menos de um porcento do eleitorado.

Lula & Omar Bongo em 2004. Bongo foi "presidente" do Gabão durante 41 anos e meio, até sua morte, quando foi substituído pelo filho.

Lula & Omar Bongo em 2004.
Bongo foi “presidente” do Gabão durante 42 anos, até sua morte, quando foi substituído pelo filho.

As eleições, como em quase todo o mundo, são facultativas: vota quem quiser. Computadas as nove províncias do país, a participação média não chegou a 60% do eleitorado. O fato mais curioso vem agora: na província do Alto Ogouê, região natal do clã Bongo, a participação foi de 99,93% dos eleitores. Monsieur Bongo venceu ali com 95,46% dos votos, resultado staliniano.

O segundo colocado interpôs recurso junto à corte constitucional do país. Depois de semanas de suspense, o resultado final acaba de sair: a vitória de Monsieur Bongo não só fica confirmada, como a diferença aumentou de 6 mil para 12 mil votos. Um detalhe: a presidente da corte constitucional é a mãe do vencedor das eleições. Uma coincidência, sem dúvida.

Quando se fica sabendo de coisas assim, a gente sente que vive em país de Primeiro Mundo. Ainda bem que Monsieur Bongo não ensinou ao Lula como fazer para ficar eternamente no poder. Quem sabe tenha até ensinado, mas o aluno, para felicidade geral da nação, não conseguiu reter a lição.