SP-2

José Horta Manzano

Os anos 1970 eram tempos de Brasil Grande, militares no poder e pesada intervenção estatal na economia. A importação de bens de consumo era proibida. Com um bocado de restrições, controles e chicanas, até que se conseguia importar algum insumo. Já alimentícios, roupa, automóvel, nem em sonho se podia mandar trazer de fora.

Quando algum conhecido viajava para o exterior – viagens eram raras! – levava uma lista de chateações. Eram as encomendas de amigos e conhecidos, com artigos impossíveis de encontrar no mercado nacional. Um chocolate de tal marca, um livro de certo autor, um disco do artista tal, um accessório qualquer. Não tinha como escapar: era trazer ou perder a amizade.

Dado que a importação de carros estava proibida, compradores eram forçados a escolher entre os modelos nacionais, que eram poucos. Faltava um esportivo com ares do inaccessível Porsche. A Volkswagen do Brasil, que operava então com certa autonomia com relação à matriz, decidiu explorar esse nicho. Lançou a linha SP.

Os mais antigos talvez se recordem do SP1, do SP2 e do SP3, comercializados de 1972 a 1976. Foram feitos unicamente no Brasil, para o mercado interno. Nunca ficou claro o significado da sigla SP; as más línguas diziam que era “sem potência”. De fato, apesar da aparência simpática, o desempenho deles estava a anos-luz do que se obtém ao volante de um Porsche. Após quatro anos, a montadora deu por encerrada a fabricação. Cerca de 10.000 carros tinham saído da linha de montagem. Um punhado deles chegaram a ser levados à Europa como bens pessoais de estrangeiros de regresso à pátria.

Não sei se ainda circulam muitos SPs pelas estradas brasileiras quase meio século depois de terem sido fabricados. Na Europa, nunca vi nenhum. Fiquei sabendo que um exemplar esquecido nos gelos da Escandinávia está sendo posto à venda como raridade. Trata-se de carro bem conservado, que rodou apenas 16.000 km. Tudo é de origem inclusive os (poucos) accessórios.

O leiloeiro assegura que é um prazer dirigir a baratinha, graças à simplicidade da mecânica VW. O valor estimado é entre 270.000 e 320.000 coroas suecas (de R$ 135.000 a R$ 160.000). Muitos apreciadores suecos estão namorando o carrinho. Se alguém tiver interesse, ainda dá tempo. Aproveite que, no Brasil, já se pode importar carro. Imagine a alegria desse bijuzinho idoso se puder rever as terras tropicais onde nasceu! Favor entrar em contacto com o portal do automóvel sueco.

Bulindo com a bala

José Horta Manzano

Desde que a peça teatral L’Arlésienne, do escritor e dramaturgo francês Alphonse Daudet (1840-1897), foi encenada pela primeira vez, a palavra arlésienne entrou na linguagem comum do país.

L'Arlésienne com dedicatória do autor

L’Arlésienne
com dedicatória do autor

Em sentido próprio, designa uma mulher originária da cidade de Arles, no sul da França. Na peça, é o nome de uma personagem que não aparece nunca, que ninguém vê. Desde então, quando quer se aludir a algo ou a alguém que não se vê, que não periga aparecer, diz-se que «c‘est comme l‘arlésienne», é como a arlesiana.

Estes dias, foi anunciado o enésimo adiamento do leilão em que se pretende confiar, a um consórcio de empresas, a construção do famigerado trem-bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro, via São Paulo. Lembrei-me da arlesiana. Com sua sabedoria do século XIX, minha avó diria que esse trem aí só será inaugurado no dia de São Nunca.

O tempo passa e as coisas mudam. Quando esse projeto foi concebido, o País vivia tempos de euforia. Presidente taumaturgo, economia florescente, dinheiro entrando a rodo, céu de brigadeiro. Foi nessa onda que pareceu a nossos mandarins uma excelente ideia investir o que fosse necessário para convencer Fifa e CIO que os próximos megaeventos planetários tinham de se realizar no Brasil.

Trem de São Nunca

Trem de São Nunca

Não deve ter sido difícil convencer os comandantes mundiais do esporte. São gente muito compreensiva e bastante flexível. Aliás, desde que os fenícios inventaram a moeda, ficou bem mais fácil convencer.

No embalo de copona, copinha, jogos olímpicos, veio também o trem-bala. Sem falar em transposição(*) de rios. Obras faraônicas, de prestígio, vistosas, imponentes, que nem os generais chegaram a ousar nos tempos do Brasil grande.

Os ventos mudaram. Hoje seria impensável impor ao povo brasileiro o gasto de bilhões de reais em façanhas de tão pouca utilidade. Enfim, o que está feito, está feito. Não faz sentido demolir estádios modernosos nem anular a copa. No entanto, o trem-bala, que nem começado está, de certeza nunca se fará.

Bala

Bala

O artigo 5° de nossa Constituição deixa bem claro que todos os brasileiros nascem livres e iguais. Num país em que falta giz nas escolas e esparadrapo nos hospitais, numa terra onde milhões de cidadãos vivem expostos à fome, ao medo, à insegurança, ao atraso cultural, à desesperança, seria inadequado ― para dizer o mínimo ― torrar 35 bilhões na construção de um trem de luxo para beneficiar uma meia dúzia.

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(*) Transposição, palavra pomposa, não é o termo mais adequado. Bipartição, tripartição ou simplesmente partição reflete a realidade com mais precisão e cai muito melhor.