Bulindo com a bala

José Horta Manzano

Desde que a peça teatral L’Arlésienne, do escritor e dramaturgo francês Alphonse Daudet (1840-1897), foi encenada pela primeira vez, a palavra arlésienne entrou na linguagem comum do país.

L'Arlésienne com dedicatória do autor

L’Arlésienne
com dedicatória do autor

Em sentido próprio, designa uma mulher originária da cidade de Arles, no sul da França. Na peça, é o nome de uma personagem que não aparece nunca, que ninguém vê. Desde então, quando quer se aludir a algo ou a alguém que não se vê, que não periga aparecer, diz-se que «c‘est comme l‘arlésienne», é como a arlesiana.

Estes dias, foi anunciado o enésimo adiamento do leilão em que se pretende confiar, a um consórcio de empresas, a construção do famigerado trem-bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro, via São Paulo. Lembrei-me da arlesiana. Com sua sabedoria do século XIX, minha avó diria que esse trem aí só será inaugurado no dia de São Nunca.

O tempo passa e as coisas mudam. Quando esse projeto foi concebido, o País vivia tempos de euforia. Presidente taumaturgo, economia florescente, dinheiro entrando a rodo, céu de brigadeiro. Foi nessa onda que pareceu a nossos mandarins uma excelente ideia investir o que fosse necessário para convencer Fifa e CIO que os próximos megaeventos planetários tinham de se realizar no Brasil.

Trem de São Nunca

Trem de São Nunca

Não deve ter sido difícil convencer os comandantes mundiais do esporte. São gente muito compreensiva e bastante flexível. Aliás, desde que os fenícios inventaram a moeda, ficou bem mais fácil convencer.

No embalo de copona, copinha, jogos olímpicos, veio também o trem-bala. Sem falar em transposição(*) de rios. Obras faraônicas, de prestígio, vistosas, imponentes, que nem os generais chegaram a ousar nos tempos do Brasil grande.

Os ventos mudaram. Hoje seria impensável impor ao povo brasileiro o gasto de bilhões de reais em façanhas de tão pouca utilidade. Enfim, o que está feito, está feito. Não faz sentido demolir estádios modernosos nem anular a copa. No entanto, o trem-bala, que nem começado está, de certeza nunca se fará.

Bala

Bala

O artigo 5° de nossa Constituição deixa bem claro que todos os brasileiros nascem livres e iguais. Num país em que falta giz nas escolas e esparadrapo nos hospitais, numa terra onde milhões de cidadãos vivem expostos à fome, ao medo, à insegurança, ao atraso cultural, à desesperança, seria inadequado ― para dizer o mínimo ― torrar 35 bilhões na construção de um trem de luxo para beneficiar uma meia dúzia.

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(*) Transposição, palavra pomposa, não é o termo mais adequado. Bipartição, tripartição ou simplesmente partição reflete a realidade com mais precisão e cai muito melhor.

3 pensamentos sobre “Bulindo com a bala

  1. Sempre que vejo a expressão “transposição do São Francisco”, penso que alguém está pensando em simplesmente ATRAVESSÁ-LO. Transpor um rio, até onde vai minha parca sabedoria, significa vencê-lo, geralmente passando-o de um lado ao outro. Ou será que as poucas horas de sono da noite passada me embaralham o pensamento neste instante?

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    • Pois é, João, a palavra não é boa. Serve para indicar travessia do rio, como você diz, e serve também para designar sua deslocalização, sua mudança para outro lugar, seu posicionamento alhures.

      O que pretendem (pretendiam?) nossos mandachuvas não tem que ver com nenhuma dessa duas acepções.

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      • É isso mesmo, e esse governo que se prolonga pretendia viver de pompa e circunstância, além dessa “transposição” de águas, da Copa, da Olimpiada etc., tem transferido milhões para manter uma tropa de paz no Haiti, tudo para tentar ficar na História como a gestão que conseguiu a tão almejada cadeira na ONU. Nem precisarão disso para ficarem na História, ficarão por outros fatos recentes, muitos mais marcantes. Fatos esses, que nos fazem pensar: somos realmente emergentes ou era puro jogo de cena pago pela mídia petista com nosso dinheiro? E não se pode esquecer que outros partidos são iguais, mesmo aqueles não tão aliados ao atual governo. Ou algum partido não gostaria de um cargo hoje?

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