A Muralha da China e o Rio São Francisco

José Horta Manzano

A Muralha da China, também conhecida como Grande Muralha, é um conjunto de fortificações erigido pelos chineses para prevenir invasão de guerreiros vindos do norte. Era método eficaz na época em que foi concebido. Atualmente, Mr. Trump promete levantar um muro para proteger-se dos perigosos mexicanos. Conclui-se que o dirigente americano raciocina como se vivesse dois milênios atrás.

O muro da China não é um só nem se resume a faixa continua. Abrange uma série de construções lineares aparentemente desparelhadas. Uma rápida olhada no mapa deixa a impressão de que as obras foram planejadas por bêbados ‒ as linhas partem em todos os sentidos. A explicação é simples: as obras se estenderam por mais de 20 séculos, período durante o qual muita coisa aconteceu. Dinastias se sucederam, inimigos externos novos apareceram, mentalidades mudaram, necessidades evoluíram.

Grande Muralha da China
crédito: commons.wikimedia.org

Para sorte dos chineses, a intenção dos conceptores da muralha não era de se promover pessoalmente. Estavam sinceramente preocupados com a defesa do país. Pouco importava quanto tempo demorasse a construção, desde que o objetivo fosse alcançado. Não posso garantir, mas imagino que a inauguração de cada etapa não tenha dado lugar a festa com banda de música e discursos eleitorais.

Em nosso país, as coisas funcionam de outra maneira. Grandes obras têm de caber no período de um governo ou, no máximo, no período em que um grupo politico estiver no governo. Não passa pela cabeça de nenhum homem público brasileiro dar início a uma obra e deixar que seja concluída por seu sucessor. Afinal, a leviandade e a desonestidade de propósitos são parte integrante da política nacional.

Semana passada, doutor Temer & comitiva inauguraram um trecho da dita “transposição”(1) do Rio São Francisco. Não se esqueceram de convocar fotógrafos e cinegrafistas para garantir repercussão. Foi a conta. Nosso Guia ‒ sim, exatamente aquele que é hoje réu em cinco processos criminais ‒ farejou excelente ocasião para tentar reerguer a imagem decaída. Deixou passar uns dias, reuniu outras figuras de quilate semelhante ao seu, chamou a imprensa e reinaugurou exatamente o mesmo trecho.

Rio São Francisco
Lago da Hidroelétrica de Xingó

Mais uma vez, mostrou ignorância e ressentimento. Por mais que passem os anos, o demiurgo não consegue entender a sutileza da democracia, toda feita de movimentos oscilatórios. Como num desses relógios antigos, não se pode deter o pêndulo, sob risco de bloquear o mecanismo. Em princípio, homem público não deveria agir para a própria glória, mas para o bem do povo que o elegeu. Assim como o Lula se beneficiou da estabilidade político-econômica e de outras benesses herdadas do predecessor, o presidente atual entrega obras iniciadas na gestão anterior. É da vida.

A não-aceitação desse princípio elementar é grotesca. Ok, pedir honestidade a Nosso Guia é pedir muito, sabemos disso. No entanto, se coerente fosse, ele e sua turma deveriam dar a cara a tapa a cada vez que saem estatísticas de desemprego, de estouro orçamentário, de escândalo de rapina. Se pretende assumir a paternidade do legado do lulopetismo, que assuma tudo: o melhor e o pior. Ficar com o filé e empurrar o osso pra debaixo do tapete não vale. Se não estiver disposto a assumir erros e acertos, que saia de cena e nos deixe em paz.

(1) me pronunciei sobre a impropriedade da palavra «transposição», quando aplicada às obras do Rio São Francisco. Transpor é tirar de um lugar e levar para outro. Não é o caso. Mais vale dizer partição, bipartição, tripartição, subdivisão, partilha. Há outras expressões à escolha do freguês.

De transposições

José Horta Manzano

Notícias recentes vêm confirmar que, no Brasil, transposição ― conceito da vez ― nos cria dois problemas: um estratégico e um semântico.

Do lado estratégico
A dita «transposição do Rio São Francisco» expõe, para quem quiser ver, o resultado do descaso secular com que nossos dirigentes têm encarado a governança.

Tecnologia existe há muito tempo. O Canal de Suez foi escavado 150 anos atrás, entre 1859 e 1869, e o Canal do Panamá abriu suas comportas para o primeiro navio há exatos 100 anos. Se, no Brasil, o paliativo para as secas do Nordeste se resumiu a cavoucar açudes, não terá sido por falta de tecnologia, mas por abundância de negligência.

Nascente do São Francisco

Nascente do Rio São Francisco

Apareceu, estes dias, nova «transposição», a ser arquitetada em regime de urgência urgentíssima. O caso agora é mais grave. A rarefação da água atinge a maior metrópole do país. No sufoco, surgiu a ideia de fazer vir água do Rio Paraíba do Sul.

Temos aí outro exemplo acabado de pouco caso. Setenta anos atrás, São Paulo já tinha passado a marca de 2 milhões de habitantes. Não cresceu da noite para o dia. Se nada se fez até hoje, foi por pura incapacidade de planejamento.

Para piorar, a obra levará 14 meses, quando faltam apenas 3 meses para o grande circo da «Copa das copas» montar seu picadeiro. Bala perdida na rua e água sumida no hotel ― taí um buquê de boas-vindas pra turista nenhum botar defeito.

Do lado semântico
O dicionário ensina que transpor (ou fazer uma transposição) significa mudar de um lugar para outro. Não é, que se saiba, o efeito desejado. Não está nos planos do mais descabeçado de nossos dirigentes transferir as águas do São Francisco para novo leito. Tampouco o Paraíba do Sul deverá deixar de correr de São Paulo até sua foz nos Campos dos Goitacases.

Bacia do Paraíba do Sul Fonte: Agência Nacional de Águas

Bacia do Rio Paraíba do Sul
Fonte: Agência Nacional de Águas

A palavra «transposição» está sendo utilizada erroneamente. A língua oferece numerosas opções bem mais adequadas. Partição, bipartição, tripartição, subdivisão, partilha, repartição, divisão, repartimento, redistribuição são algumas delas. Há outras.

Que fazer? O descaso ― com a governança e com a língua ― parece fazer parte da paisagem do país. Não muda nunca.

Bulindo com a bala

José Horta Manzano

Desde que a peça teatral L’Arlésienne, do escritor e dramaturgo francês Alphonse Daudet (1840-1897), foi encenada pela primeira vez, a palavra arlésienne entrou na linguagem comum do país.

L'Arlésienne com dedicatória do autor

L’Arlésienne
com dedicatória do autor

Em sentido próprio, designa uma mulher originária da cidade de Arles, no sul da França. Na peça, é o nome de uma personagem que não aparece nunca, que ninguém vê. Desde então, quando quer se aludir a algo ou a alguém que não se vê, que não periga aparecer, diz-se que «c‘est comme l‘arlésienne», é como a arlesiana.

Estes dias, foi anunciado o enésimo adiamento do leilão em que se pretende confiar, a um consórcio de empresas, a construção do famigerado trem-bala ligando Campinas ao Rio de Janeiro, via São Paulo. Lembrei-me da arlesiana. Com sua sabedoria do século XIX, minha avó diria que esse trem aí só será inaugurado no dia de São Nunca.

O tempo passa e as coisas mudam. Quando esse projeto foi concebido, o País vivia tempos de euforia. Presidente taumaturgo, economia florescente, dinheiro entrando a rodo, céu de brigadeiro. Foi nessa onda que pareceu a nossos mandarins uma excelente ideia investir o que fosse necessário para convencer Fifa e CIO que os próximos megaeventos planetários tinham de se realizar no Brasil.

Trem de São Nunca

Trem de São Nunca

Não deve ter sido difícil convencer os comandantes mundiais do esporte. São gente muito compreensiva e bastante flexível. Aliás, desde que os fenícios inventaram a moeda, ficou bem mais fácil convencer.

No embalo de copona, copinha, jogos olímpicos, veio também o trem-bala. Sem falar em transposição(*) de rios. Obras faraônicas, de prestígio, vistosas, imponentes, que nem os generais chegaram a ousar nos tempos do Brasil grande.

Os ventos mudaram. Hoje seria impensável impor ao povo brasileiro o gasto de bilhões de reais em façanhas de tão pouca utilidade. Enfim, o que está feito, está feito. Não faz sentido demolir estádios modernosos nem anular a copa. No entanto, o trem-bala, que nem começado está, de certeza nunca se fará.

Bala

Bala

O artigo 5° de nossa Constituição deixa bem claro que todos os brasileiros nascem livres e iguais. Num país em que falta giz nas escolas e esparadrapo nos hospitais, numa terra onde milhões de cidadãos vivem expostos à fome, ao medo, à insegurança, ao atraso cultural, à desesperança, seria inadequado ― para dizer o mínimo ― torrar 35 bilhões na construção de um trem de luxo para beneficiar uma meia dúzia.

.

(*) Transposição, palavra pomposa, não é o termo mais adequado. Bipartição, tripartição ou simplesmente partição reflete a realidade com mais precisão e cai muito melhor.